sexta-feira, 3 de maio de 2024

AYRTON SENNA DO BRASIL

Em 2018, Lewis Hamilton sagrou-se pentacampeão de Fórmula 1 ao conquistar onze vitórias e onze poles positions nos vinte grandes prêmios da temporada. Muito provavelmente, isso não tem qualquer importância para os senhores, mas e se eu tivesse começado lhes dizendo que naquele momento, há 30 anos, em 1988, Ayrton Senna conquistava seu primeiro título de três na mais popular modalidade de automobilismo mundial? Seria melhor do que dizer que, há exatamente 30 anos, em 1994, sua morte era anunciada (oficialmente) às 13hs05min de um dos piores domingos de quem acompanhava a breve saga desse ídolo.

Naquele dia, eu tinha 13 anos de idade. Era fã incondicional do piloto. Culpa do meu pai. O velho curtia Fórmula 1. Não o via sempre, já que ele morava em João Pessoa e eu, a 120 km de distância, em Campina Grande, aqui na Paraíba. Ele me buscava no sábado e me deixava na casa dos meus avós no domingo à tarde. Na manhã do seu deadline, não era negociável, se tivesse Fórmula 1, aquelas horas eram sagradas. Tudo por causa do Ayrton. Então, a partir de 1990, joguei conforme as regras e passei a adorar toda a mecânica daquele esporte. Daí vieram os álbuns anuais de figurinhas, o interesse por artigos jornalísticos e a rivalidade entre pilotos/escuderias.

Até hoje, julgo o Ayrton como uma figura indecifrável. Sua morte prematura aos 34 anos o blindou das decepções que acompanham uma vida longa. Entra como uma luva na máxima imortalizada pelo Promotor Dent em 2008, sobretudo porque, à época, eu sequer tinha ferramentas e referências suficientes para defini-lo como outra coisa senão um herói. Por outro lado, não era incomum ouvir de comissários de corridas e rivais que o meu “herói” era um competidor tão aguerrido que, por vezes, passava do ponto e colocava a si e aos outros pilotos em risco[1]. Alain Prost até dizia que a fé de seu rival em Deus era algo perigoso, porque ele depositava sua segurança em um plano superior e se esquecia do plano daqui de baixo.

Se tivesse juízo, ou fosse minimamente como os demais mortais, esse texto não teria razão de existir e, hoje, ele estaria aí com 64 anos de idade, ainda trocando rusgas com aquele velho francês safado, de (reais) 69 anos. Como não tinha (juízo), isso o ajudou a construir uma reputação como “Mago da Chuva” e lendas em torno de pilotagens astuciosas em pistas molhadas. Por sinal, esse é o título do capítulo um (de quatro) do quadrinho Ayrton Senna: A Trajetória de um Mito, com roteiro de Lionel Froissart e arte a quatro mãos de Christian Papazoglakis e Robert Paquet.

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Tem 10 anos que esse gibi saiu no Brasil pela Nemo. Originalmente, pela franco-belga Glénat Éditions que, por sua vez, também entrega a nacionalidade da equipe criativa; Froissart, um jornalista esportivo francês, enquanto Papazo e Paquet são belgas. Se digitar o nome “Senna” na busca do Guia dos Quadrinhos, você vai encontrar o gibi deles como o primeiro título entre cinco. O segundo é Mickey nº 388 (Ed. Abril), enquanto que os três restantes são de origem institucional, vinculados ao Senninha. Quer dizer, com exceção do personagem à moda Turma da Mônica, o quadrinho nacional jamais se debruçou seriamente na figura de Ayrton Senna. Ao contrário, por exemplo, dos japoneses que dedicaram vários números da icônica Shonen Jump ao piloto; dentre os quais, o biográfico F no Senkou: Ayrton Senna no Chousen – algo como “O Brilho da Fórmula 1: O Desafio de Ayrton Senna".

Segundo quem leu[2], o destaque do quadrinho estava no “traço realista, narrativa cinematográfica e um impressionante desenho de máquinas, [sendo o mangá] que melhor soube passar a emoção de uma corrida real aos leitores”. Entretanto, o roteiro e a arte da dupla Katsuhiro Nagasawa e Hirohisa Onikubo trazem também um detalhe interessante: o enredo capitula a vida de Ayrton Senna à altura da temporada de 1991, coroando, por fim, o seu tricampeonato no GP do Japão, em Suzuka. O detalhe é que quando o gibi começou a ser produzido, o torneio já estava em curso e os autores sequer “imaginavam que o destino traçaria um roteiro tão perfeito e adequado aos valores japoneses”.

Fato é que a vitória sobre Nigel Mansell em 91, justamente ali, na corrida final em solo nipônico, era a quinta vez que o piloto brasileiro concluía o mundial de F1 na disputa do título. Porém, o que encantou realmente o Japão foram as quatro rinhas anteriores com Prost, com os dois num embate que marcaria para sempre a carreira de ambos; sendo o ponto de fervura máxima a prova de Suzuka no ano anterior, em 1990.

O bicampeonato de Ayrton foi resolvido em 15 segundos, após a largada, quando ele bateu na Ferrari do francês a quase 200 km/h. Assim, ao não pontuar, Prost sai do páreo e vê o astro da McLaren manter a vantagem de pontos que possuía. A preço de hoje, foi como ver um daqueles nocautes instantâneos de 1º round num UFC main event.

 

Sobre essa relação, ou quem sabe, a falta dela, assista ao próprio Prost, anos e anos no futuro, dando um depoimento sobre como ele encara as coisas hoje.

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Voltando ao nosso quadrinho franco-belga, não dá para cravar que é uma obra das mais memoráveis, mas, diante da falta de opções, é um belo trabalho. Embora um pouco duro, o texto tem certo charme confessional, passando a impressão que o protagonista fala ao seu leitor. São 50 páginas cirúrgicas, suficientes para atiçar a curiosidade e buscar aprofundamento na vastidão de conteúdos sobre o Ayrton; com zero gordura de relacionamentos privados (fofocas), e foco 100% do que ocorria nas pistas e nos seus bastidores. Acho um barato isso.  

Quanto à arte, a cinética que o duo belga transmite faz a sua virada de página ter um ritmo oposto à velocidade dos carros se digladiando. Em especial, quando desenham chuva. Sobre isso, a história começa exatamente entre flashbacks da infância de Ayrton no kart e o grande prêmio de Mônaco em 1984, debaixo de um pé d’água bíblico e uma improvável Toleman assumindo a ponta. De partida, A Trajetória de um Mito mostra a obsessão que ele tinha com pistas encharcadas; e como aproveitava o clima a seu favor:

Mônaco/84 também foi o primeiro mergulho de Ayrton no mar de lodo das politicagens da F1; no qual chegou em 1ª, mas por uma esperteza de Prost – ou, vá lá, prudência? – fez sinal para a direção da prova avaliar o término da corrida. Então, quando o brasileiro passou pela reta de chegada, já havia sido dada a bandeira vermelha e, portanto, concluído o GP. Logo, no instante da bandeirada, ele estava em segundo e não em primeiro. Foi o primeiro pódio de Ayrton Senna na Fórmula 1.

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No decorrer do gibi, vemos também os primórdios nas categorias de base até o ingresso na "Gangue dos Paulistas", na qual Emerson Fittipaldi assumia a figura de mentor; e o próprio Senna, posteriormente, assumiria seu papel de anfitrião nessa rede de solidariedade entre os brasileiros. Com exceção de Nelson Piquet, do qual Froissart revela apenas duas animosidades; uma quando foram apresentados, e outra quando se descobriu que o piloto da Brabham usara sua influência – de bicampeão em 84[3] – para que a patrocinadora Parmalat não contratasse Senna como seu companheiro de equipe. Na realidade, convenhamos, dois cafés pequenos perto das tretas subterrâneas aos quais estariam destinados.

De resto, vemos, o ingresso de Ayrton Senna na McLaren e recortes da já falada rivalidade histórica com Alain Prost; a trilogia dos GPs de Suzuka 1988, 1989 e 1990; em especial, o de 1989, com a intervenção [tendenciosa] de Jean-Marie Balestre; o tri em 1991 e a memorável vitória em Interlagos. A última parte do gibi mostra a melancólica[4] passagem pela Williams Renault, da qual, como sabemos, não sobreviveu.

Para contrabalancear a tristeza inevitável, o quadrinho dramatiza o primeiro contato de Ayrton com um carro de F1. E isso se deu a convite do próprio Frank Williams, o que dá ares de ironia do destino, como um trágico fechamento de ciclo.

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Ao fim e ao cabo, A Trajetória de um Mito é a melhor HQ já publicada no Brasil sobre Ayrton Senna. O que é lamentável. O mercado nacional tem um ótimo material humano para criar em cima desse personagem (nosso). E isso vale para o audiovisual também, ou você acha que um Globoplay da vida não teria orçamento para produzir um filme ou uma série? Quer dizer, sem botar na conta do documental; fruto de acervo da própria empresa.

 

Eu e minha gloriosa calculadora corneta pensamos que sim, porém, o que há de concreto é que acaba de sair a primeira prévia da minissérie Netflix e, sim, parece que veremos algo à altura de Senna. Do lado de cá, torço que seja algo, no mínimo, como Rush ou tão descaradamente pop quanto um Dias de Trovão para pegar essa (nova) geração no tranco.

A julgar pela riqueza de histórias do Ayrton, olha que dá... E isso sem adentrarmos nas pole positions da vida. Essas, sim, andam em falta nos ídolos de hoje.



[1] Em 1982, na Fórmula 2000, ele chegou a guiar seu carro sem freios em Snetterton, Inglaterra. Normalmente, você diria que isso era a empolgação de começo de carreira falando mais alto, mas esse foi só um pequeno verbete no vasto vocabulário de improvisos perigosos de Ayrton Senna.

[2] Info extraída do texto de Ale Nagado para o Sushi Pop. Naquela oportunidade, o blog trouxe também detalhes sobre uma curiosa parceria entre Ayrton Senna e Akira Toriyama. Quer dizer, reza a lenda que o – também saudoso – criador de Dragon Ball era um grande fã do piloto.

[3] Piquet é tricampeão de F1, tendo vencido as temporadas de 1981, 1983 e 1987.

[4] Os anos de 1992 e 1993 representaram um penoso downgrade qualitativo do motor Honda da McLaren frente ao Renault da Williams; fora a polêmica por trás da suspensão ativa eletrônica. Com a ida de Ayrton para a Williams em 94, uma mudança no regulamento proibiu a utilização da suspensão ativa, colocando em xeque a hegemonia da escuderia de Frank Williams e iniciando a ascensão de Michael Shumacher na Benetton.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

20 ANOS DE DESOLAÇÃO

Mike Jones era um agente do MI6 que exagerava tanto na bebida que, vire e mexe, acabava se voluntariando como cobaia em experimentos obscuros. O motivo? Fugir do trabalho para passar semanas de molho, apenas dormindo. Entretanto, um dos testes fez exatamente o oposto: privou-lhe do sono por um ano e, de quebra, o deixou parcialmente sem sentidos[1], sem pigmentação da pele e alérgico à luz solar. 

Isso foi há alguns anos. Hoje, Mike faz parte de uma comunidade de operativos clandestinos, muitos dos quais também envolvidos em procedimentos similares, confinados na área que as autoridades de Los Angeles apelidaram de “Cidades dos Espiões”, mantendo-a selada e legalmente invisível. Essa seria, digamos, a origem secreta do protagonista de Desolation Jones, de Warren Ellis e J. H. Williams III; quadrinho publicado em 2005 pela WildStorm, mas que em dezembro próximo mudará de casa e ganhará uma reedição especial pela Image Comics.

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Continuando. O tal distrito é administrado por Jeronimus, um ex-agente da C.I.A considerado uma obra-prima cirúrgica: ele só precisa comer quatro vezes ao ano. Porém, quando precisa fazê-lo, tem que ingerir muita proteína. Grandes quantidades de proteína! Muita carne! O que ele faz? Ora, vai a uma região de UFOs, com histórico de sacrifícios massivos de vacas, e come carne na floresta. Por conta disso, é o único com permissão para sair dos limites de L.A – sob permanente vigilância armada, é claro.

O mesmo Jeronimus é uma espécie de empresário de Jones, que lhe arruma serviços de detetive dentro da comunidade. Eventualmente, também é assessorado por sua vizinha, Robina, capaz de improvisar e bolar qualquer tipo de situação, às vezes como uma “Q” baixa renda, quase sempre como um ombro amigo. Como disse, Jones é um investigador que presta serviços exclusivamente para os membros de sua comunidade. Certa feita, ele recebe o chamado de um velho coronel para investigar o furto de um vídeo pornô de sua propriedade, produzido, dirigido e estrelado por ninguém menos que Adolf Hitler.

A partir daí, o trabalho toma corpo quando começa a buscar informações nos últimos degraus do underground los angeleno. É nessa busca que somos apresentados a personagens ainda mais intrigantes. A começar por Filthy Sanchez, dona de uma loja que comercializa todo tipo de fitas pornô. Cercada de sodomitas, quando questionada por Jones sobre o tal “Santo Graal da Sacanagem Cinematográfica”, vira a casaca e tenta obtê-la para si própria.

E o que dizer de Emily Crowe? Uma ex-agente que também vive em exílio na cidade, mas sua condição por si só já funciona como cárcere. Seus atributos especiais? Ela deveria ser a femme fatale definitiva com o poder de superproduzir feromônios sexuais. Não funcionou, aliás, tal como Jones, o que aconteceu foi justo o inverso. Quem se aproxima dela sente medo e repulsa; algo indescritivelmente perturbador. A solidão que isso lhe resulta é patente. Apena Jones é imune aos seus dons e, obviamente, o único que tem contato físico com ela. Aliás, chega a ser tocante quando ela lhe implora para que fique em sua casa por pelo menos mais uma hora.

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Uma sequência em especial chama a atenção no gibi:

Durante a busca, Jones topa com uma atriz pornô veterana defendendo uma novata que está com alguma infecção. Ela se chama Nicole, tem 27 anos, e numa conversa de bar, acaba fazendo um verdadeiro check-in da profissão, relatando o cotidiano dessa indústria ao detetive. São seis páginas difíceis. No nível do texto bruto, a cena em si já é pouco convencional, mas ela é levada para outro nível graças à arte de J. H. Williams III e as cores de José Villarrubia; que confere às visões de Jones – consequências do experimento – algo que se pode ser comparada com as alucinações despertas de Rust Cohle em True Detective. As visões mais comuns são os anjos perdidos de Los Angeles, uma espécie de sensibilidade ao ambiente.

Assim, Jones tem delírios da garota emulando tudo que acabara de falar. Em alguns casos, a coisa é brutal, em outros, degradante num nível que faz Black Kiss de Howard Chaykin parecer um gibi carola. Piora quando você não resiste e acaba fazendo uma leitura anacrônica, trazendo o recente retrospecto de Warren Ellis para dentro das páginas. Quer dizer, em 2005, tínhamos apenas uma passagem excêntrica do celebrado escritor de Authority e Planetary, mas, em 2024, a coisa soa como se ele já estivesse transparecendo alguns fetiches e temas aos quais tinha interesse.

Enfim, não digo isso como alguém puritano, censurando uma obra ficcional. Longe de mim, porém, me pergunto se interessa ao Ellis desengavetar Desolation Jones em um momento onde sua presença (virtual) vem sendo retomada de forma discreta, passando longe de qualquer vespeiro. Afinal, o tribunal da internet não está para brincadeira, e de tão ameaçador, passamos do paradigma de um “SE” hipotético para a certeza do “QUANDOteremos outro Ed Piskor.

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Voltando aos desenhos do gibi, gostaria de dizer que nada contra John Cassaday, o vencedor do Eisner Awards 2006[2], mas o grande vencedor moral naquela sexta-feira do dia 21 de julho de 2006 foi J. H. Williams III. A sinergia do traço meticuloso em mosaico agregou gradações oníricas únicas ao texto ácido de Warren Ellis. Só não digo que foi um casamento perfeito, porque o artista tem um fraco notável para roteiristas ingleses; vide sua excelência em Promethea (Alan Moore) e Sandman Prelúdio (Neil Gaiman).

No mais, me parece que Desolation Jones é um trabalho desconhecido, mas – mesmo na releitura - o julgo como um dos melhores que já li de ambos os autores. É uma verdadeira dedada no olho.

 

Outro detalhe interessante: Michael Jones parece que foi forjado sob encomenda para um dia ser vivido por Hugh Laurie. A semelhança é tanta – devido ao uso imoderado de ácidos para aliviar as alucinações -, que em dado momento, o tradicional Vicodin do mau bom doutor é até citado. Outros pontos de convergência entre Gregory House e Mike são: a indisfarçável fragilidade física e o fato que ambos estão cagando para o mundo.

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“Cavalheiros ingleses sempre deixam suas acompanhantes bêbadas e chapadas. É a única maneira de fazermos as pessoas dormirem conosco” (JONES, Michael). 


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[1] Uma condição que, em certa medida, me lembrou o agente Holden Carver, de Sleeper. No entanto, Jones ficou bem mais sequelado que o personagem de Ed Brubaker e Sean Phillips; dormindo, se tanto, apenas uma hora por noite e, embora imune a dor, seu sistema imunológico é uma porcaria. Tanto é que antes um beberrão inveterado, agora ele poderia sofrer um choque tóxico se tomasse uma gota sequer de álcool.

[2] Aliás, nessa época, o Cassaday foi tricampeão do Eisner Awards na Categoria Desenhista/Arte-Finalista, conquistando o troféu nos anos de 2004, 2005 e 2006.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

O SUPERMAN DE CADA UM

Se alguma vez tivéssemos de lidar com um incêndio, eu salvaria a capa do Superman de Christopher Reeve e o cartaz autografado que ficam no lobby de casa. Uma vez seguros, eu correria de volta para dentro e ajudaria minha esposa e filhos.”[1]

Esse trecho acima é só uma pequena amostra da devoção que o Mark Millar tem com o Homem de Aço. Na verdade, além dessa memorabilia milionária, ele diz ter em seu acervo o gatinho que personagem salvou no comecinho do filme de 78. “Gatinho?”, você me pergunta. Sim, o gatinho original... empalhado. Excentricidades à parte, no posfácio do encadernado de Wanted, o escritor resgata uma memória da infância e relembra de onde surgiu a história de Wesley Gibson. Para encurtar a conversa, ele diz que nos seus cinco anos de idade, afanou da minibiblioteca nos fundos da sala de aula, um livro capa dura sobre os Estados Unidos.

Revela que a imagem da Estátua da Liberdade o enfeitiçou e, ainda que não tivesse nada a ver com o Super, isso o levou longe: “[...] foi uma experiência tão grandiosa e transformadora quanto o momento em que Moisés, rumo a sei lá onde no deserto (histórias em quadrinhos cativavam muito mais o meu interesse que o Velho Testamento) recebe um telefonema divino transmitido por um arbusto em chamas. Eram tempos de vacas magras e pessoas, literalmente, magras, já que a população escocesa – segundo ele – era àquela altura a que tinha o mais baixo índice de obesidade do mundo ocidental. Sequer havia TV a cabo no Reino Unido, então todo o entretenimento que se tinha, você valorizava ao máximo.

E o tal livro sobre um país rico e moderno, lar do super-herói favorito, atiçou sua imaginação: O que aconteceu com o Superman? Por que a gente ainda vê desastres aéreos nos noticiários? Por que acontecem terremotos? Se o Superman é o maior herói norte-americano, por que não ajuda as pessoas na vida real, como faz nos gibis?”. Esses questionamentos foram regurgitados para Bobby, o irmão mais velho (17)[2], que em tom de troça lhe devolve como trágicos esclarecimentos: O que aconteceu com o Superman? Você nem ficou sabendo? Superman desapareceu depois de uma batalha colossal contra os supervilões. Superman, Batman, Homem-Aranha, Capitão América, Mulher-Maravilha... todos eles sumiram em meio a esse terrível conflito e nunca mais foram vistos novamente”. Desolado, o pequeno Mark virou pro lado e tentou dormir, porém, lhe restou uma pergunta sem resposta: “E o que aconteceu com os supervilões?.

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Corta para 2004. Millar tem 34 anos de idade. No final da segunda edição de Wanted, o Professor Solomon Seltzer responde as dúvidas de Wesley, explicando como os vilões eliminaram toda a comunidade super-heroica em 1986. O jovem Matador fica incrédulo por não existir qualquer resquício dessa Era e, claro, por que ninguém tem memórias disso. O cientista fala que não era o bastante derrota-los, eles queriam apagar qualquer lembrança dos civis sobre os super-heróis. Para tanto, tinham tecnologia e pessoal para reescrever a realidade. Mais que isso: "Nós temos duendes da sétima dimensão e supercomputadores extraterrestres em nossas fileiras, sabia? Se nos mantivermos sempre unidos, nada jamais será impossível pra nós". No fim, Seltzer  mostra ao rapaz a capa do que parecia ser o Superman dali, a prova cabal daquela vitória arrasadora.

Corta para 2024. Millar tem 54 anos de idade e, tal como o vilão acima, tem uma capa do azulão como prova de que venceu na vida, fez fortuna[3] e se tornou um dos únicos profissionais da indústria que diz publicamente que só trabalha com quadrinhos por amor à mídia. Hoje em dia, aparentemente, com muito tempo livre[4], o escritor tem uma forte presença no Twitter/X e adora jogar conversa fora com gente do meio no seu canal de You Tube.

Mais que isso, vive cornetando às duas editoras majors com soluções para resolver o declínio do mercado direto; que, segundo ele, sofreria uma revolução caso houvesse uma distribuição (séria) de royalties e, claro, remunerasse melhor os artistas, em especial os que ganham destaque e viram os favoritos dos leitores. Não bastasse isso, vinha alardeando que gostaria de voltar à DC Comics para fazer um projeto com o Superman, sem falar os momentos em que se porta como um mero fã, pedindo que algo do seu interesse fosse republicado. Enfim, quase todo dia, o falastrão escocês aparece com pílulas de conhecimento e cascata em proporções iguais; o que ninguém contava é que ele saísse da missa de domingo com uma bomba-relógio como essa:

Sim, a bomba está armada e em menos de uma década, não só Mark Millar, mas o mundo todo poderá publicar seu gibizinho do Superman. Isso, claro, desde que as histórias se atenham aos parâmetros de Action Comics nº 1, de junho de 1938. O que não é pouco. Um bom exemplo do poder de destruição em torno dos elementos da edição que cairá em domínio público reside justamente no relançamento da revista em 2011, quando Grant Morrison[5] fez questão de explorar apenas as ideias contidas ali, do personagem em sua versão 1.0: o imigrante definitivo, o jornalista, o amante platônico e, evidentemente, o street fighting man com superpoderes - porém, àquela altura, ainda desprovido das demais extrapolações sensoriais.

O desafio do atual proprietário do Copyright é usar esse tempo que lhe resta para trabalhar formas que integrem o personagem ainda mais às especificidades do Universo DC. Na prática, isso já está acontecendo bem debaixo dos nossos narizes, ao ampliar o número de produtos culturais onde Clark Kent está associado a outras propriedades intelectuais, numa verdadeira relação sine qua non. O exemplo mais óbvio é o do patriarca de uma superfamília ou as histórias com grande elenco; ou você acredita realmente que todas as participações especiais no vindouro filme de James Gunn são só um capricho pessoal do diretor?

Por outro lado, falando em capricho, o manifesto de intenções só soa inédito para quem chegou agorinha no Millarworld; nesse caso, literalmente. Afinal, ele já assinou diversos roteiros para o personagem, entre eles os elogiados Superman Adventures e Entre a Foice e o Martelo; e extraoficialmente nos autorais Legado de Júpiter, Superior e Huck.

Na verdade, tanto a DC quanto Millar querem a mesma coisa. Um deseja produzir um Superman relevante, que ainda se destaque perante a concorrência; o outro, mesmo tendo realizado tudo e conquistado uma conta bancária invejável, parece saudoso dos tempos em que fora relevante, irreverente e seus quadrinhos não parecessem um looping irrefreável de repetição temas.

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Do lado de cá, se ainda seguir vivo e (ir)relevante, prometo voltar em 2033 para atualizar esse texto. Até lá.

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[1] Postagem de Mark Millar no Facebook no dia 22 de outubro de 2020.

[2] Millar era o caçula de cinco, sendo quatro irmãos e uma irmã.

[3] Não dá para precisar quanto abocanhou na venda de dezessete franquias à Netflix em 2017, porque, obviamente, os valores foram rateados entre vários artistas, mas é seguro dizer que Mark Millar foi quem ficou com a maior fatia dos 25 milhões de libras; ou, vá lá, 31 milhões de dólares americanos.

[5] Amigo, mentor, desafeto e, para piorar, ainda dono do melhor gibi do Super com o Frank Quietely.