sábado, 15 de março de 2025

E O CORPO AINDA É POUCO

Nunca me esquecerei desse dia, doze anos atrás. Sofri uma fratura na mão direita após um acidente e precisei ser operado. Apesar da dor insuportável e a queda de pressão ao escorregar no banheiro, a cirurgia foi relativamente simples. Bem mais problemático foi o longo processo de recuperação, com sessões diárias de fisioterapia. Mas o tal dia inesquecível não foi do fato em si e, sim, de alguns minutos excruciantes na sala de recuperação. Quer dizer, sala é um eufemismo tardio para mesma.

Ao recuperar os sentidos, me vi imobilizado numa maca dentro no que, hoje, acredito ter sido um cubículo de almoxarifado. No meu ângulo de visão, só enxergava esfregões, material de limpeza e documentos empilhados numa estante. Não tenho certeza se isso foi alguma confusão mental diante dos resquícios da anestesia me pregando uma última peça, mas o que veio a seguir pareceu tão vívido quanto o que o etéreo Patrick Swayze “vivenciou” em Ghost: Do Outro Lado da Vida (1990).

Pois, à medida que ficava lúcido, me inquietava com o local onde supunha estar, fora a necessidade desesperadora de urinar, porém, incapaz de fazê-lo por estar imobilizado. Então, quando vi e ouvi pessoas conversando próximas de mim, tentei chamá-las. Como estava sendo deliberadamente ignorado, aos poucos fui aumentando o tom, até que o desespero bateu e ameacei descarregar uma chuva dourada ali mesmo. Ainda assim, ninguém parecia se importar com isso.

Por alguns longos instantes, passei a cogitar que alguma coisa havia dado errado no procedimento... Um choque anafilático? Um infarto fulminante? Uma parada cardíaca...?! Qualquer coisa inesperadamente mortal que tivesse abreviado minha existência e, naquele momento, meu espírito estava preso e invisível no lado de cá.

Uma eternidade mais tarde, uma enfermeira – visivelmente preocupada em ter que dar conta de um paciente todo mijado – deu sinal de “vida” e me trouxe um urinol. Nunca fiquei tão aliviado. Literal e figurativamente falando.

***

Enquanto lia Dylan Dog: Mater Morbi (Mythos/2024), essa memória insólita veio de novo a mim. No quadrinho de Roberto Rechionni e Massimo Carnevale, o Investigador do Pesadelo se vê prostrado em meio a uma internação hospitalar para tratar de doença sem diagnóstico. Hipocondríaco clássico, ele se apavorado com os exames sem fim, a desorientação pela perda recorrente dos sentidos e procedimentos mil que levam a uma massa de matéria obscura.

Como se isso já não fosse o bastante, ele passa a ter contato com uma estonteante figura de espartilho que se identifica como a Mãe das Doenças. Quase uma figura intermediária entre os Perpétuos Desespero e Morte; o que a propósito, não parece ser um mero “devaneio” de minha parte.

Ao contrário do grosso das tramas do Oldboy bonelliano, o humor nada sutil[1] fica de lado, dá vazão às investidas sadomasoquistas da tal matriarca e, no canto do olho, um olhar byroniano sobre a perda da saúde. Uma visão, por sinal, tão sensível quanto cruel sobre o triste processo de desumanização das pessoas em meio a enfermidades incuráveis. Some-se a isso o horror psicológico traduzido nas belas páginas de Carnevale, com uma excentricidade pré-existente de Rechionni em redigir posts sobre doenças.  

Originalmente, Mater Morbi saiu na edição nº 280, de 2012. Segundo os extras assinados por Júlio Schneider, a forte introspecção desse enredo ganhou projeção na mídia italiana, chegando a alavancar uma discussão (séria) sobre ética médica e eutanásia nos jornais e na TV.

Do lado de cá, penso que é uma ótima isca para novos leitores do personagem.



[1] Costumeiramente levado a cabo pelo insuportável Groucho Marx.

 

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