quarta-feira, 27 de março de 2024

UM PSICODRAMA

Se você consultar o significado da palavra “psicodrama”, vai encontrar por aí que se trata de uma abordagem terapêutica que explora técnicas teatrais de dramatização. Seria como se o indivíduo, por vezes, paciente de psiquiatras ou psicólogos, fosse o protagonista no centro de um palco. Então, no psicodrama o sujeito revive/recria cenas vivenciadas para que numa eventualidade futura tenha à disposição ferramentas emocionais para lidar com situações problemáticas.

Esse conceito soa como algo moderno e sofisticado, mas a verdade é que o psicodrama já tem quase um século que foi criado pelo romeno Jacob Levy Moreno. Como era médico, filósofo e tinha um fascínio por teatro, ele acabou fazendo um bem bolado das três coisas e tornou-se o primeiro psicodramatista. Hoje é bem corriqueiro ver por aí essa metodologia sendo aplicada dentro de empresas, escolas, workshops e processos seletivos.

(Um) Psicodrama (2001) é também o título de uma historinha do Batman escrita por Alan Grant e desenhada por Charles Adlard,o grande artista por trás de The Walking Dead. Na realidade, o título original acabou sendo preterido pela Mythos Editora em favor de A Maldição de Scarface, publicada em 2002. Nela, Arnold Wesker, o Ventríloquo, se submete a uma sessão de psicodrama com o Doutor Arkham e queima o boneco marionete Scarface. A ideia era sepultar o lado sombrio do interno com aquele ato e neutralizar a personalidade homicida do pequeno mafioso de madeira.

Se isso vai dar certo ou não, é só um mero detalhe sobre o que eu quero abordar no texto de hoje. Para tanto, vamos começar rebobinando um pouco a fita, de 2001 para o comecinho de 1988.

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O trio que sempre foi uma dupla.

A revista Detective Comics vinha mal das pernas. Nesse tempo, o ponto de equilíbrio financeiro de um gibi mensal costumava ser uma vendagem de oitenta mil edições. Um número que hoje nos causa espanto, já que, hoje, ele representaria justo o inverso, catapultando o título para o ranking de mais vendidos nos EUA. Lembrando, claro, que na década de 1980, os quadrinhos ainda não eram vendidos exclusivamente em comic shops e o preço de capa era em torno de $ 0,75. Então, para não dar prejuízo, uma revista tinha que render ao menos sessenta mil dólares aos cofres da DC Comics. Era o limite da degola.

E aí, ali em 1988, a Detective Comics estava no vermelho, com uma vendagem de cerca de setenta e cinco mil edições por mês. Para melhorar as cifras da revista, a solução que o editor Dennis O’Neil chegou foi a mesma que já vinha dando certo dentro da editora: trazer gente de fora dos Estados Unidos[1], com novas ideias e liberdade criativa total. Nesse caso, porém, havia um certo ineditismo, visto que era a primeira vez que um personagem de Série A era transferido aos cuidados de um comando técnico estrangeiro. Logo, a bola da vez recaiu na dupla John Wagner e Alan Grant.

À época, os dois tinham a mesma idade (39) e vinham ganhando uma reputação na 2000 AD, especialmente com o Juiz Dredd, que era criação do Wagner. Não obstante, naqueles onze anos de publicação do personagem, Grant havia colaborado com muitas histórias; daí a parceria deles. De partida, a proposta de O’Neil era que eles fizessem um ano de histórias e depois sentassem juntos para analisar se continuariam a parceria. Wagner estava empolgado com a ideia dos royalties sobre as vendas; porque isso era um conceito mercadológico que não existia na Inglaterra. Quer dizer, não tinha esse romantismo de escrever histórias do Batman, o lance era meramente profissional e estritamente financeiro.

Para compor a equipe artística, eles teriam a arte do novato e autodidata Norm Breyfogle, de 28 anos. Para ser justo, o desenhista já havia trabalhado em três histórias do Batman, antes que os ingleses assumissem os roteiros. A primeira em um back-up dentro de Batman Annual nº 11, edição que ficou marcada pelo conto de Alan Moore com o Cara-de-Barro, muito embora a historinha de Max Allan Collins também tivesse seus momentos. Nela, o Pinguim era um ex-presidiário vivendo um romance com uma mulher que conheceu na sessão de cartas de uma revista de ornitologia.

Já a outra, Detective Comics nº 579, é um barato e traz consigo a versão pós-crise do Doutor do Crime, assinada por Mike W. Barr. Novamente focada em um ex-presidiário, dessa vez, vemos um homem desesperado, sem conseguir prover sua família, negociando o próprio coração para ser transplantado em um mafioso às portas da morte. O tal cirurgião chama-se Dr. Bradford Thorne e, vejam só, protagoniza uma bela adaptação em Batman Animated (S2E25); no qual terá que operar Rupert, o irmão gangster. Assim como no gibi, o enredo da animação também conta com a participação da Dra. Leslie Thompkins, que é coagida a auxiliar Bradford na cirurgia.

A terceira história de Breyfogle pré-Wagner/Grant, Detective Comics nº 582, tem roteiro de Jo Duffy e traz consigo um tie-in da Saga Milênio. A trama se centra em torno de um Caçador de Oa que assume a identidade de Jim Gordon, mas o que me chamou a atenção foi a revelação desse passado do Comissário como oficial da Inteligência – militar ou CIA, já que não é especificado qual agência.

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Time completo. O agora trio começa a trabalhar em Detective Comics nº 583; que, a propósito, estampa uma belíssima capa de Mike Mignola. Nas páginas internas, o choque anafilático vem com cinismo e uma pegada seca, sem arrodeio, um Batman definitivamente “Dreddiano”. Tudo conspirava para ser uma fase inesquecível e será foi, só que, a partir da edição nº 587, a equipe criativa sofreria um grande revés.

Vamos lá... O problema, como disse acima, é que o título estava por baixo e, rapidamente, os roteiristas constatariam que os royalties só seriam dignos de notas – muitas nota$! – caso as vendas aumentassem consideravelmente. E aí, exatamente cinco edições depois da estreia, sem crer que eles receberiam os adicionais, John Wagner dá um passo em falso e sai de Detective Comics. Como o acordo firmado estabelecia que fossem roteiros a quatro mãos, Alan Grant decide encarar sozinho a produção dos textos, ainda que o compatriota não estivesse mais a bordo e tivessem a obrigação contratual de ter os nomes dos dois nos créditos da revista. Então, no papel, a “parceria” Grant e Wagner é levada adiante até o final do primeiro ano da Detective Comics.

No Brasil, até a publicação de Saga do Batman da Panini, a maioria desses números iniciais seguia inédito. Sim, a Editora Abril começa da edição nº 590 e ignora as sete anteriores (583-589); com um detalhe curioso. A capa da 590 tem aquela famosa arte de Breyfogle em que o Batman está de costas, olhando para o relógio Big Ben na torre do Palácio de Westminster, a sede do Parlamento Britânico em Londres.

No entanto, ela não foi aproveitada na edição nacional específica, onde saiu, e, sim, em um encadernado formatinho das Dez Noites da Besta; que, obviamente, não tem nada a ver com a história original do Alan Grant.

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Normalmente, quando leio gibis velhos fico fazendo movimentos de ida e volta. Pego uns lá na frente, depois volto ao começo e, às vezes, me sinto que nem um Chuck Noland e fico parado no meio do caminho, decidindo que direção tomar. Nesse aspecto, parece bobagem, mas eu teria adorado se Saga do Batman tivesse saído seguindo rigorosamente os line-ups de The Dark Knight Detective e The Caped Crusader; o primeiro com as edições de Detective e a segunda com as de Batman.

Na prática, a Panini fez um mix, alternando os materiais de ambas num mesmo volume e sempre de olho na cronologia das duas revistas. Ok. Tudo certo, porém, no alto dos meus quarenta e poucos, acho que já posso me dar ao luxo de algumas excentricidades. Quando leio Detectives, fecho questão com o título e só lerei Detective e o mesmo com Batman. Como disse, isso sou eu complicando o descomplicado, já que se trata de uma época bem acolhedora no sentido de que as histórias eram descompromissadas, sem uma exigência de continuidade que as equipes criativas contemporâneas costumam exigir.

Claro, continuidade no sentido de histórias presas a um arco maior e complexo, contado em runs cada vez mais longos[2]. Com Alan Grant, se muito, você chega a ler uma história que se passa dentro de três ou quatro edições e vida que segue. Fora que esse pequeno arco não trará repercussões ad infinitum, te forçando a ter que voltar ao que já se passou; e se for voltar, o próprio recordatório fará um esforço mínimo e circunstancial para lhe deixar a par do que precisas saber. É assim que eu gosto que seja. É por essas e por outras que essas histórias me marcaram; dos casos à moda O’Neil/Adams, quase como se Grant/Breyfogle fossem os melhores alunos egressos daquela escola setentista.

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Mas voltando àquelas edições iniciais do então trio, a começar por Detective Comics nº 583 (Saga do Batman nº 5), a história mostra o Batman lidando com uma nova droga que caiu no gosto dos adolescentes: a Febre e, que por acaso, é também o nome do arco.

Para ilustrar os efeitos desse narcótico que, segundo relatos, costuma dar um pico forte de euforia e fúria, vemos uns viciados queimando um gato e, logo em seguida, ateiam fogo em um guardinha de rua idoso. O Batman fica perplexo por "crianças" terem cometido tal barbárie; e aí os policiais na cena do crime revelam que essa Febre é a sensação do momento nas ruas. Em outro lugar, descobrimos que o principal distribuidor do entorpecente é um homem chamado Arnold Wesker, ou melhor, o serviçal do fantoche Scarface.

À primeira vista, trata-se de um vilão muito simples que, numa leitura mais lúdica, poderia até ser um análogo do Homem dos Brinquedos, entretanto, Grant/Wagner trabalham maneirismos que mesmerizam até mesmo o leitor. Em outros termos, você chega a ficar em dúvida se o boneco realmente tem vida e Wesker não seria, de fato, um escravo, sobretudo porque Scarface sempre está no centro do palco, tirando do interlocutor no gibi a quebra da suspensão de descrença.

Primeiro que o boneco fala trocando algumas consoantes nas palavras e isso, vamos combinar, torna-se um recurso marcante, que se sobressai a voz vacilante do Ventríloquo. E quando isso não funciona e alguém deixa isso de lado, passando a se dirigir diretamente ao Arnold, o boneco fica consternado e manda que todos voltem a olhar para ele... Porque quem manda é o Scarface, ele é o chefão. E para contrapor essa figura do Wesker, de um homem aparentemente pacato, de certa idade, temos um fantoche endiabrado.

Eis uma pequena demonstração: ao perder uma carga de Febre, ele dá ordens a um capanga obeso para buscar outra fora da cidade. Até aí nem um problema. O problema é que, em off, Scarface ordenou sua morte e quer que usem o cadáver corpulento como mula.  Para tanto, é necessária a extração dos órgãos, vísceras e gordura para arrumar os tijolinhos. É doentio. No fim, o Batman inala um pouco de Febre e solta a mão no Wesker. Na cadeia, enquanto aguarda a transferência para o Arkham, Wesker diz que quer colaborar com a justiça, o que lhe rende, dessa vez, umas belas bofetadas do Scarface.

Em 1992, quando o Alan Grant está cuidando do título Batman, num arco em três partes dentro das edições nº 475-476 e Detective Comics nº 642 (Saga do Batman nº 28), temos A Volta de Scarface. Segundo o boneco, eles foram inocentados por conta de uma tecnicalidade jurídica e agora estão tentando reaver o território que perderam para uma gangue nova. Os DemônioZ da Rua, como se intitulam, metralham o fantoche e o dão como morto, com direito a velório e sepultamento. O que mostra o grau de convencimento que o Arnold Wesker exerce sobre todos ao seu redor; até porque as balas são disparadas em direção ao construto e não ao Ventríloquo. 

No fim da história, Scarface recupera o território e consegue redirecionar o Batman e a polícia para a captura dos rivais. Como disse lá em cima, a primeira história, Febre, era inédita por aqui até Saga do Batman nº 5, mas vejam só, A Volta de Scarface chegou a sair em 1995 dentro de Batman Anual nº 4 da Editora Abril. E isso, vale dizer, já com A Queda do Morcego em curso. Então, o primeiro contato do leitor brasileiro com Ventríloquo/Scarface se deu exatamente na segunda história desses personagens.

Daí em diante, vez ou outra, o Alan Grant traz eles de volta, geralmente, num contexto em que: ou 1) os dois estão separados; ou 2) Wesker tenta se curar e acaba esbarrando no carma de Michael Corleone. Por sinal, uma das passagens mais doentias dos “dois” se dá em Queda do Morcego, quando Wesker está sem o boneco e aí improvisa um fantoche de meia. No entanto, quando o boneco mafioso é recuperado, o substituto e o original trocam farpas entre si até que um atira no outro! No último quadro, vemos Wesker inconsciente com as duas mãos estraçalhadas (Detective Comics nº 664):

Mais adiante em Filho Pródigo, quando Dick Grayson se torna momentaneamente o Batman, ele prende Wesker que, evidentemente, sobreviveu. Antes de ser preso, ele deixa um livro de ventriloquismo para Rino, seu fiel leão de chácara, aprender a cuidar do Scarface. Isso lá em Shadow of the Bat nº 32, de 1994. Essa história só teria sequência em Shadow nº 59 e 60, de 1997, ocasião em que Alan Grant resolveu revelar um trauma da infância de Wesker em torno do pássaro albatroz. É dito que na manhã que os pais foram atropelados, eles haviam acabado de ver essa ave[3].

Em paralelo, vemos Rino quebrando a cabeça para aprender ventriloquismo e dando um jeito de libertar o Wesker de Blackgate. Quando se reúnem, o Scarface quer encontrar um albatroz que foi avistado sobrevoando Gotham e fazer com que Wesker quebre seu pescoço, superando, por fim, aquele trauma. É mais ou menos um psicodrama, o que nos leva de volta à Maldição de Scarface.

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Como disse no início, o Doutor Arkham dá uma de psicodramatista e faz com que Wesker queime Scarface para, vamos dizer, incinerar seu lado sombrio. Mas aí é que está, nas histórias anteriores, a suposição que fazíamos é que a marionete era apenas o conduíte da loucura do Ventríloquo e ele, por seu turno, era a mente criminosa por trás da dupla. Só que aqui nesse especial, Alan Grant conta a origem do fantoche e insere um componente sobrenatural nessa relação homem versus boneco: a madeira ao qual foi esculpido era amaldiçoada.

Explica-se em flashback que na prisão Black Gate havia uma forca nos arredores da penitenciaria onde 313 prisioneiros foram executados. A contagem só parou porque um raio destruiu a estrutura de madeira, deixando apenas um toquinho no chão. Dá para supor também que, em algum momento, a pena de morte foi revogada, enfim... É a lacuna do texto que nos deixa livres para especular e discutir. O fato é que, não muito tempo depois, um preso chamado Donnegan pegou aqueles restos e esculpiu um bonequinho, o qual batizou como Tronquinho. O guarda que está com ele chaga a alertá-lo que nada de bom sairia daquela matéria-prima, já que Deus tinha virado as costas para todas aquelas almas.

Mais tarde, descobrimos que o companheiro de cela de Donnegan é ninguém menos que Arnold Wesker. E aí nos momentos em que o escultor dorme, Tronquinho conversa com o seu futuro cúmplice. A princípio, o próprio Wesker acredita que aquilo é uma voz projetada e está sendo tapeado por truques de ventriloquismo. Isso escalona de um jeito que ele acaba matando Donnegan e mais dois guardas, fugindo logo em seguida. Nesse ponto, o fantoche pede para que, dali em diante, fosse chamado de Scarface.

Nada disso dá indícios ainda que exista algo de paranormal naquela relação. Isso só viria à tona a partir daquela sessão de psicodrama, quando o boneco fora queimado. Ou melhor, logo após, quando a pira vira e o boneco cai no despenhadeiro rumo ao mar. Lá embaixo, dois amigos estão pescando e confundem Scarface com um bebê se afogando; quando um deles vai tentar salvá-la, ele dá um escorregão, bate a cabeça numa pedra e morre:

No outro dia, um menino que sofre bullying na escola e está ali na praia com os pais, acha o boneco e decide ficar com ele. Da mesma forma que o pescador morto, Scarface vai trazer mau agouro para aquela criança e passará de mão em mão até que, fatalmente, regressará às mãos de Arnold Wesker; que, naquele instante, estava em liberdade e fazendo shows como ventríloquo, agora com Lola, uma boneca – supostamente – "inofensiva".

Curiosamente, na série animada dos anos noventa, no episódio Double Talk (S3E4) – ou Identidade Dupla –, assistimos também a libertação e reintegração do Ventríloquo à sociedade, inclusive trabalhando como mensageiro nas indústrias Wayne. Não obstante, Rino e os antigos associados trabalham para que Scarface retorne e tentam a qualquer custo sabotar a sanidade do ex-interno do Arkham. Ao contrário de A Maldição de Scarface, o final da animação é feliz e Wesker se liberta dessa praga... ou seria pesadelo?!

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A preço de hoje, dá até para fazer uma rima de Scarface com a boneca Annabelle, e mesmo com o sobrenatural instalado, creio que o leitor sempre ficará desconfiado se aquilo tudo não é só coisa da cabeça de Arnold Wesker. Eu prefiro que seja assim, a boa e velha loucura ditando os passos dos melhores vilões do morcego; e, se não ficou claro, adoro esses dois porque pertencem a uma safra em extinção. De antagonistas pequenos, que não têm a pretensão de destruir Gotham ou ser só análogos negativos do herói.

A própria estranheza deles já era o ingrediente perfeito para boas trocas com o Batman.



[1] Os estudiosos das Histórias em Quadrinhos chamaram essa iniciativa de Invasão Britânica. Alan Moore teria sido o primeiro com Monstro do Pântano, Grant Morrison com Homem-Animal, Neil Gaiman com Orquídea Negra e, consequentemente, com Sandman, etc.

[2] Por exemplo, a fase de Tom King na mensal Batman teve ao todo 85 edições + 12 edições da minissérie Batman/Mulher-Gato. Tudo é umbilicalmente interligado, de modo que o leitor precisa mesmo ler todos os números para saber onde a história vai desembocar. Se ela desembocou ou não, aí são outros quinhentos.

[3] Essas histórias saíram no Brasil na 5ª série do Batman nas edições nº 1 e 23 (Abril). Mais especificamente, aquela coleção pós-Zero Hora.

sexta-feira, 15 de março de 2024

O QUE ACONTECEU À LIGA DA JUSTIÇA?

Dezesseis números depois, em novembro último (2023), a Panini decretou o fim da 1ª encarnação da Saga da Liga da Justiça. O que, aparentemente, nasceu como uma iniciativa para republicar a tão pedida fase de Grant Morrison, teve ainda uma breve sobrevida trazendo consigo a sequência com Mark Waid. Aí como diz o ditado, “quem não se comunica, se trumbica”, o grosso dos leitores chegou a imaginar que a editora seguiria adiante, só que, dessa vez, focando nas histórias de Joe Kelly.

Era o raciocínio natural, porém, não muito tempo depois foi anunciado o lançamento de uma 2ª temporada, reiniciando o título a partir do run (curto) de Brad Meltzer e Ed Benes. Se você busca algum sentido nisso, lamento, mas não será nessas linhas que o encontrará. Da minha parte, só lamento. Ao total, JLA teve 125 números, de janeiro de 1997 a abril de 2005. Encerrou naquela batida niilista que Geoff Johns[1] chamou de Crise Infinita; uma sequência (pretensiosa) da Crise (clássica) de Marv Wolfman e George Pérez.

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Mas eu falava sobre a Saga da Liga do Kelly que não estava lá. Pode parecer uma opinião impopular, mas olhando em retrospecto todo o padrão de arcos maiores que a vida de Morrison e Waid, o meu Eu de 20 anos atrás se encantou de verdade foi com o investimento de Kelly e Doug Mahnke na intimidade do grupo. Quer dizer, 60 edições depois, era um feito e tanto ver aquele Panteão descer do Olimpo para interagir entre si em subtramas pessoais.

O que, até então, parecia uma zona editorial proibida já que apenas aos gibis solos permitiam-se perspectivas interiores dos heróis; à revista do grupo, no máximo, team-ups frívolos. Ouso até dizer que Joe Kelly andou para Brad Meltzer correr em Crise de Identidade e digo isso – hoje! – com certas ressalvas sobre o kraken liberto naquela minissérie. Se os relances da vida pessoal eram migalhas jogadas pelos autores, chega num ponto em que tudo vira divã e isso fica chato, choroso até.

Não obstante, Kelly teve seus (bons) momentos, a exemplo da historinha em que o Homem-Borracha era apresentando como um pai em fuga, desleixado e inconsequente que abandonou sua mulher e filho à própria sorte. Algo bem desconexo com sua faceta exageradamente cômica. Ou, quem sabe, aquela outra em que J'onn J'onnz se submete a um tratamento mútuo com Aubrey Sparks; ele a fim de superar a arsonfobia e ela o estresse pós-traumático de um ataque do Coringa.

Claro que os dois viveriam um amor proibido, por sinal, clichê, mas longe de ter um desenlace tão 8ª série quanto o de Bruce e Diana. Algo que, convenhamos, começa bem, com uma tensão febril no calor da Era Obsidiana e vai tão além que chega a repercutir até mesmo na série do Timmverso. Seu término, porém, zombou com a inteligência alheia e sequer teve uma pimenta biquinho para avivar o paladar.

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Se faltou pimenta no casal “Diabru”, a malagueta ardeu solta no triângulo amoroso formado por Aurora (esposa do Corno Corvo Manitu), Ronald "Ronnie" Raymond (Nuclear) e Oliver Queen (Arqueiro Verde).

Tudo começa quando Manitu e Aurora tornam-se membros residentes da Liga. Sempre isolado e atolado em trabalho, o índio não se adapta aos tempos modernos; diferente de sua esposa que procura se entrosar e, sem subterfúgios mágicos, deseja aprender a língua inglesa com seus colegas. O que ocorre aqui pode ser resumido com outro ditado, "quem não dá assistência, perde para a concorrência".

Ronnie, coitado, bateu as botas em Crise de Identidade e sequer teve chance de uma aproximação mais brusca. Ollie, por sua vez, sofreu uma série de flechadas e deu no que deu. Não que o run inteiro seja um Barrados no Baile, até porque as histórias do Kelly eram ricas em ironias políticas e um sarcasmo sorrateiro que davam gosto, ao ponto de contestar o tempo todo o papel da Liga diante de problemas mais próximos do mundo real. Afinal de contas, ele foi o 1º escritor que ousou cortar a bola que o Warren Ellis levantou em 1999.

Inclusive, a própria encarnação atual daquele grupo vanguardista é uma Elite travestida de Authority.

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Como podemos esperar ganhar sempre? Ou proteger nossos entes queridos? Como pudemos pensar que as chances jamais se voltariam contra nós? Talvez, esse dia fosse inevitável. Ele sempre esteve esperando por nós, em algum lugar do nosso futuro. É o preço alto de se fazer a coisa certa” (Ray Palmer).

Recentemente, reli Justiça, de Jim Krueger, Doug Braithwaite & Alex Ross. A primeira releitura em dezessete anos de gibi. Saio, portanto, de uma leitura ingênua para crítica[2] e, dessa vez, me pego pensando especificamente na narrativa do gibi; no qual, em recordatórios, cada um dos doze números dá voz aos personagens e/ou antagonistas da equipe. Se reparar, é o modus operandi da maioria dos episódios da versão Timmverso. Melhor dizendo, as tramas centram no indivíduo e repercutem no desafio que atinge – ou atingirá – a todos.

É uma boa fórmula que inexiste nas Eras Morrison/Waid e funciona no nível de O Bravo & O Audaz. No âmbito dessa minissérie, pode-se dizer também que o enredo parece compor uma linha do tempo própria do Alex Ross, um “Rossverso DC”, onde temos um passado das origens, um presente estabelecido e um futuro sombrio. Se juntassem tudo num omnibus, arrisco dizer que superfície alguma seria capaz de conter o volume, não pelo peso físico, mas, sim, pela incomensurável carga emocional.

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Em suma, de 2007 para cá, ainda não vi algo da Liga com uma proposta tão bem delimitada, com minúcias engenhosas – fruto de pesquisa séria – e o senso de timing para lidar com um sem número de heróis e vilões. Os frutos disso são construtos em suas formas mais clássicas, que funcionam como engrenagens lubrificadas dentro do mecanismo maior (UDC). A exemplo da interpretação mais madura que se tem notícia dos parceiros mirins: vistos como “seguros de vida" que os “oficiais seniores” têm na manga caso venham a tombar em ação.

Melhor que isso é a forma como se aborda e esmiúça o background dos atores, sem inventos mirabolantes, apenas olhares mais profundos sobre os mesmos. É o que acontece com os dons telepáticos e a fisiologia única do Aquaman, equiparada aos melhores exemplares da fauna marinha; a ligação sensitiva do Caçador de Marte com as espécies que esporadicamente emula e toma para si suas formas; o fato de que Diana, na pior das hipóteses, não passa de uma prima distante do Cara-de-Barro; e os rompantes megalomaníacos de Hal Jordan[3] quando confinado em uma dimensão vazia (similar a um cárcere na Zona Fantasma).

Falando em mania de grandeza, são esplêndidas as anotações de Batman sobre os membros da equipe e os respectivos arqui-inimigos (ao fim de cada número). Em especial, os ditos sobre a ingenuidade de Ray Palmer na edição nº 6: "Apesar de todas as descobertas e experiência combatendo o crime, ele ainda tem de encontrar algo em um nível subatômico que sugira uma propensão ao crime. Crime é uma escolha, uma questão de vontade. A sociologia moderna é o crime de sugerir que não é bem assim".

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Outros dois bat-momentos:

1º) O interrogatório de Leonard Snart (Capitão Frio). Mesmo sem a contumaz aura sombria do anonimato, já que, nesse ponto, os inimigos já tinham conhecimento de sua identidade civil, o Batman ameaça usar a mesma pistola congelante nos dedos do malandro. Ok. O que tem de mais nisso? Não é uma mera bravata, o Bruce, de fato, levaria isso a cabo. Pois, quando o diz, ele diz com o Laço de Héstia enrolado sobre o seu corpo; e como é de conhecimento comum, ninguém pode mentir quando o toca;

2º) O raciocínio mordaz acerca do uso sutil do medo pelo Super-Homem.

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No que atine à trama, é impossível não associar o plot da já citada Crise de Identidade de Brad Meltzer e Rags Morales, ou seja, a descoberta das identidades secretas dos super-heróis por uma confraria de vilões. A diferença é que o ataque em Justiça é cirúrgico e assinado por uma Legião do Mal que realmente se leva a sério. Dessa vez, mais que violência insensata por parte de Lex Luthor e Cia, são empregados joguetes de psicologia reversa, atos de messianismo e manipulação da mídia, mudando gradativamente a maneira como as pessoas encaram a Liga da Justiça. Pela primeira vez, impedi-los talvez torne certo que a Terra não será salva.

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Dois momentos que não curtia e ainda não curto:

1º) Como sugeri agorinha, o roteiro de Krueger coroa o argumento de Ross para que Justiça sirva ao seu projeto de cronologia ideal para a Liga. É o meio do caminho e não uma história que se fecha em si mesmo, daí a impossibilidade de concluí-la com um fato que comprometesse o desenlace da “trilogia”. Mesmo com isso em mente, até hoje não gosto da resolução que se chegou ao arco da Mulher-Maravilha; que, envenenada pela Mulher-Leopardo, gradativamente volta ao seu aspecto original (barro) até sua fatídica morte.

Fosse mesmo seu destino final, teria sido marcante e, claro, heroico, tendo ela pago o alto preço pela vitória da Liga. Como foi revivida cinco minutos depois, o simbolismo desse sacrifício caiu por... aham... terra.

2º) Ross sustenta em off que tirou a ideia de apagar a memória (global) sobre as identidades secretas de um artifício que os anéis dos Lanternas Verdes tinham no passado. Provavelmente, uma extrapolação recuperada da Era de Prata. Ainda que ele tenha o regulamento debaixo do braço, não gosto da solução. É outra passagem que ganharia pontos comigo se não servisse única e exclusivamente à manutenção do status quo.

Aliás, toda vez que uma identidade é revelada, algum editor inicia a contagem regressiva para que ela volte a ser secreta. Nem adianta esquentar a cabeça.

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Também não adianta procurar uma revista mensal da Liga para ler. Lamentavelmente, a equipe por excelência do UDC foi preterida em prol de uma reencarnação dos Titãs por Tom Taylor. No fim, entristecido pelos amigos ausentes[4], preciso novamente perguntar: O que aconteceu à Liga da Justiça?  

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[1] Mal sabia o editorial DC que ao permitir isso, estaria inflando o ego de um bom escritor e lhe dando cheque em branco para cometer outras continuações apócrifas; ao exemplo de O Relógio do Juízo Final (Watchmen) e Os Três Coringas (Piada Mortal).

[2] Isso foi uma coisinha que ficou comigo após ler o livro Conversas com um professor de Literatura, de Gustavo Bernardo.

[3] Das duas, uma: ou um alerta ao que viria acontecer mais tarde em Crepúsculo Esmeralda ou uma crítica tardia ao evento em si.

[4] O pior é constatar que nos quadros da DC existem escritores como o Phillip Kennedy Johnson. Se você esteve fora da Terra no último ano, talvez num tour ao Mundo Bélico, esse escritor deu em Action Comics uma pequena e visceral amostra de como entregar a mensal da LJA que todos gostariam de ler.