sexta-feira, 15 de março de 2024

O QUE ACONTECEU À LIGA DA JUSTIÇA?

Dezesseis números depois, em novembro último (2023), a Panini decretou o fim da 1ª encarnação da Saga da Liga da Justiça. O que, aparentemente, nasceu como uma iniciativa para republicar a tão pedida fase de Grant Morrison, teve ainda uma breve sobrevida trazendo consigo a sequência com Mark Waid. Aí como diz o ditado, “quem não se comunica, se trumbica”, o grosso dos leitores chegou a imaginar que a editora seguiria adiante, só que, dessa vez, focando nas histórias de Joe Kelly.

Era o raciocínio natural, porém, não muito tempo depois foi anunciado o lançamento de uma 2ª temporada, reiniciando o título a partir do run (curto) de Brad Meltzer e Ed Benes. Se você busca algum sentido nisso, lamento, mas não será nessas linhas que o encontrará. Da minha parte, só lamento. Ao total, JLA teve 125 números, de janeiro de 1997 a abril de 2005. Encerrou naquela batida niilista que Geoff Johns[1] chamou de Crise Infinita; uma sequência (pretensiosa) da Crise (clássica) de Marv Wolfman e George Pérez.

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Mas eu falava sobre a Saga da Liga do Kelly que não estava lá. Pode parecer uma opinião impopular, mas olhando em retrospecto todo o padrão de arcos maiores que a vida de Morrison e Waid, o meu Eu de 20 anos atrás se encantou de verdade foi com o investimento de Kelly e Doug Mahnke na intimidade do grupo. Quer dizer, 60 edições depois, era um feito e tanto ver aquele Panteão descer do Olimpo para interagir entre si em subtramas pessoais.

O que, até então, parecia uma zona editorial proibida já que apenas aos gibis solos permitiam-se perspectivas interiores dos heróis; à revista do grupo, no máximo, team-ups frívolos. Ouso até dizer que Joe Kelly andou para Brad Meltzer correr em Crise de Identidade e digo isso – hoje! – com certas ressalvas sobre o kraken liberto naquela minissérie. Se os relances da vida pessoal eram migalhas jogadas pelos autores, chega num ponto em que tudo vira divã e isso fica chato, choroso até.

Não obstante, Kelly teve seus (bons) momentos, a exemplo da historinha em que o Homem-Borracha era apresentando como um pai em fuga, desleixado e inconsequente que abandonou sua mulher e filho à própria sorte. Algo bem desconexo com sua faceta exageradamente cômica. Ou, quem sabe, aquela outra em que J'onn J'onnz se submete a um tratamento mútuo com Aubrey Sparks; ele a fim de superar a arsonfobia e ela o estresse pós-traumático de um ataque do Coringa.

Claro que os dois viveriam um amor proibido, por sinal, clichê, mas longe de ter um desenlace tão 8ª série quanto o de Bruce e Diana. Algo que, convenhamos, começa bem, com uma tensão febril no calor da Era Obsidiana e vai tão além que chega a repercutir até mesmo na série do Timmverso. Seu término, porém, zombou com a inteligência alheia e sequer teve uma pimenta biquinho para avivar o paladar.

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Se faltou pimenta no casal “Diabru”, a malagueta ardeu solta no triângulo amoroso formado por Aurora (esposa do Corno Corvo Manitu), Ronald "Ronnie" Raymond (Nuclear) e Oliver Queen (Arqueiro Verde).

Tudo começa quando Manitu e Aurora tornam-se membros residentes da Liga. Sempre isolado e atolado em trabalho, o índio não se adapta aos tempos modernos; diferente de sua esposa que procura se entrosar e, sem subterfúgios mágicos, deseja aprender a língua inglesa com seus colegas. O que ocorre aqui pode ser resumido com outro ditado, "quem não dá assistência, perde para a concorrência".

Ronnie, coitado, bateu as botas em Crise de Identidade e sequer teve chance de uma aproximação mais brusca. Ollie, por sua vez, sofreu uma série de flechadas e deu no que deu. Não que o run inteiro seja um Barrados no Baile, até porque as histórias do Kelly eram ricas em ironias políticas e um sarcasmo sorrateiro que davam gosto, ao ponto de contestar o tempo todo o papel da Liga diante de problemas mais próximos do mundo real. Afinal de contas, ele foi o 1º escritor que ousou cortar a bola que o Warren Ellis levantou em 1999.

Inclusive, a própria encarnação atual daquele grupo vanguardista é uma Elite travestida de Authority.

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Como podemos esperar ganhar sempre? Ou proteger nossos entes queridos? Como pudemos pensar que as chances jamais se voltariam contra nós? Talvez, esse dia fosse inevitável. Ele sempre esteve esperando por nós, em algum lugar do nosso futuro. É o preço alto de se fazer a coisa certa” (Ray Palmer).

Recentemente, reli Justiça, de Jim Krueger, Doug Braithwaite & Alex Ross. A primeira releitura em dezessete anos de gibi. Saio, portanto, de uma leitura ingênua para crítica[2] e, dessa vez, me pego pensando especificamente na narrativa do gibi; no qual, em recordatórios, cada um dos doze números dá voz aos personagens e/ou antagonistas da equipe. Se reparar, é o modus operandi da maioria dos episódios da versão Timmverso. Melhor dizendo, as tramas centram no indivíduo e repercutem no desafio que atinge – ou atingirá – a todos.

É uma boa fórmula que inexiste nas Eras Morrison/Waid e funciona no nível de O Bravo & O Audaz. No âmbito dessa minissérie, pode-se dizer também que o enredo parece compor uma linha do tempo própria do Alex Ross, um “Rossverso DC”, onde temos um passado das origens, um presente estabelecido e um futuro sombrio. Se juntassem tudo num omnibus, arrisco dizer que superfície alguma seria capaz de conter o volume, não pelo peso físico, mas, sim, pela incomensurável carga emocional.

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Em suma, de 2007 para cá, ainda não vi algo da Liga com uma proposta tão bem delimitada, com minúcias engenhosas – fruto de pesquisa séria – e o senso de timing para lidar com um sem número de heróis e vilões. Os frutos disso são construtos em suas formas mais clássicas, que funcionam como engrenagens lubrificadas dentro do mecanismo maior (UDC). A exemplo da interpretação mais madura que se tem notícia dos parceiros mirins: vistos como “seguros de vida" que os “oficiais seniores” têm na manga caso venham a tombar em ação.

Melhor que isso é a forma como se aborda e esmiúça o background dos atores, sem inventos mirabolantes, apenas olhares mais profundos sobre os mesmos. É o que acontece com os dons telepáticos e a fisiologia única do Aquaman, equiparada aos melhores exemplares da fauna marinha; a ligação sensitiva do Caçador de Marte com as espécies que esporadicamente emula e toma para si suas formas; o fato de que Diana, na pior das hipóteses, não passa de uma prima distante do Cara-de-Barro; e os rompantes megalomaníacos de Hal Jordan[3] quando confinado em uma dimensão vazia (similar a um cárcere na Zona Fantasma).

Falando em mania de grandeza, são esplêndidas as anotações de Batman sobre os membros da equipe e os respectivos arqui-inimigos (ao fim de cada número). Em especial, os ditos sobre a ingenuidade de Ray Palmer na edição nº 6: "Apesar de todas as descobertas e experiência combatendo o crime, ele ainda tem de encontrar algo em um nível subatômico que sugira uma propensão ao crime. Crime é uma escolha, uma questão de vontade. A sociologia moderna é o crime de sugerir que não é bem assim".

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Outros dois bat-momentos:

1º) O interrogatório de Leonard Snart (Capitão Frio). Mesmo sem a contumaz aura sombria do anonimato, já que, nesse ponto, os inimigos já tinham conhecimento de sua identidade civil, o Batman ameaça usar a mesma pistola congelante nos dedos do malandro. Ok. O que tem de mais nisso? Não é uma mera bravata, o Bruce, de fato, levaria isso a cabo. Pois, quando o diz, ele diz com o Laço de Héstia enrolado sobre o seu corpo; e como é de conhecimento comum, ninguém pode mentir quando o toca;

2º) O raciocínio mordaz acerca do uso sutil do medo pelo Super-Homem.

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No que atine à trama, é impossível não associar o plot da já citada Crise de Identidade de Brad Meltzer e Rags Morales, ou seja, a descoberta das identidades secretas dos super-heróis por uma confraria de vilões. A diferença é que o ataque em Justiça é cirúrgico e assinado por uma Legião do Mal que realmente se leva a sério. Dessa vez, mais que violência insensata por parte de Lex Luthor e Cia, são empregados joguetes de psicologia reversa, atos de messianismo e manipulação da mídia, mudando gradativamente a maneira como as pessoas encaram a Liga da Justiça. Pela primeira vez, impedi-los talvez torne certo que a Terra não será salva.

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Dois momentos que não curtia e ainda não curto:

1º) Como sugeri agorinha, o roteiro de Krueger coroa o argumento de Ross para que Justiça sirva ao seu projeto de cronologia ideal para a Liga. É o meio do caminho e não uma história que se fecha em si mesmo, daí a impossibilidade de concluí-la com um fato que comprometesse o desenlace da “trilogia”. Mesmo com isso em mente, até hoje não gosto da resolução que se chegou ao arco da Mulher-Maravilha; que, envenenada pela Mulher-Leopardo, gradativamente volta ao seu aspecto original (barro) até sua fatídica morte.

Fosse mesmo seu destino final, teria sido marcante e, claro, heroico, tendo ela pago o alto preço pela vitória da Liga. Como foi revivida cinco minutos depois, o simbolismo desse sacrifício caiu por... aham... terra.

2º) Ross sustenta em off que tirou a ideia de apagar a memória (global) sobre as identidades secretas de um artifício que os anéis dos Lanternas Verdes tinham no passado. Provavelmente, uma extrapolação recuperada da Era de Prata. Ainda que ele tenha o regulamento debaixo do braço, não gosto da solução. É outra passagem que ganharia pontos comigo se não servisse única e exclusivamente à manutenção do status quo.

Aliás, toda vez que uma identidade é revelada, algum editor inicia a contagem regressiva para que ela volte a ser secreta. Nem adianta esquentar a cabeça.

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Também não adianta procurar uma revista mensal da Liga para ler. Lamentavelmente, a equipe por excelência do UDC foi preterida em prol de uma reencarnação dos Titãs por Tom Taylor. No fim, entristecido pelos amigos ausentes[4], preciso novamente perguntar: O que aconteceu à Liga da Justiça?  

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[1] Mal sabia o editorial DC que ao permitir isso, estaria inflando o ego de um bom escritor e lhe dando cheque em branco para cometer outras continuações apócrifas; ao exemplo de O Relógio do Juízo Final (Watchmen) e Os Três Coringas (Piada Mortal).

[2] Isso foi uma coisinha que ficou comigo após ler o livro Conversas com um professor de Literatura, de Gustavo Bernardo.

[3] Das duas, uma: ou um alerta ao que viria acontecer mais tarde em Crepúsculo Esmeralda ou uma crítica tardia ao evento em si.

[4] O pior é constatar que nos quadros da DC existem escritores como o Phillip Kennedy Johnson. Se você esteve fora da Terra no último ano, talvez num tour ao Mundo Bélico, esse escritor deu em Action Comics uma pequena e visceral amostra de como entregar a mensal da LJA que todos gostariam de ler.

4 comentários:

doggma disse...

Quero muito ler a LJ do Kelly/Mahnke desde quando você postava a respeito no Pulse Primordial. O que a Panini fez aí foi... Paninice.

Bem lembrada a cena do Hal matutando a ideia de construtos sencientes. Sempre achei essa passagem perturbadora, pura teoria do solipsismo. E dario pano pra manga: aquele conto do Andy Weir ("The Egg") é um exemplo.

(em tempo... tenho uma pastinha só de "socos invertidos" dos gibis e confesso que passei batido por esse safanão do Hal no Sinestro... acabei de adicionar, he he)

O Ross descascando a "ressurreição" do Bucky no Off foi de lascar. A HQ foi uma das raras que conseguiu fazer isso com fundamento e qualidade. Duvido que chegou a ler.

Luwig, você seria um puta editor da DC na Panini, caso o critério ali fosse além da conversa entre compadres.

Abração!

Luwig Sá disse...

Salve, Dogg!

Você nunca... nunca leu a Liga do Kelly?! Paninice sua também, viu?! A Liga Elite é a sua cara. Na verdade, dá p/ pegar a (icônica) Action Comics 775 saltar p/ JLA 100 e seguir daí p/a mini em doze edições do grupo. Coisa finíssima. Incrível que isso esteja fora de catálogo lá fora também.

Hummm... Não conheço esse conto do Andy Weir. Só conheço os (3) livros mesmo. Vou atrás.

Sobre o quebra do LV e Sinestro... Pra mim fica claro que o Ross cai também naquela do "quem desdenha quer comprar". Porque ele detesta publicamente o que Ron Marz fez com o Hal, mas tá nítido que ele se apropriou de uns tropos de Crepúsculo Esmeralda e foi além nessa sequência, quando o personagem chega a usar o anel amarelo.

Também acho que ele não leu a saga do Soldado Invernal; talvez nem o Jeph Loeb tinha também, na época que produziu Branco c/ Tim Sale. Mas sobre o Ross, como é gênio, ele tem lá seu direito de ser um chato de galochas. Viu (naquela página) também o comentário dele sobre a Lois?!

Quanto a meu futuro como editor DC na Panini... Sem jeito. Eu mesmo vivo dinamitando pontes*, fora que botaria os caras p/ usar régua nas lombadas, faria quiz, ressuscitaria seção de cartas, convidaria a galera p/ enviar arte do leitor, faria pequenas matérias e quebraria com uma clava qualquer maldito que me sugerisse publicar porra de capa variante. Não, não... Eu seria um péssimo nome para esses tempos de editorial Nutella.

Abração.

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(*) https://x.com/osescapistas/status/1760996540494049316?s=20

Marlo de Sousa disse...

Já desisti de tentar entender a lógica que fez a Panini saltar a fase do Kelly em favor da curta (e meia-boca) fase do Meltzer. É o mesmo sentimento de quando a Lendas do UDC dos Titãs parou imediatamente antes da fase do Tom Grummett - e ressurgiu, como Saga dos Titãs, com a vexaminosa fase do Geoff Johns. Talvez não precisemos perder a esperança, porém. Talvez a falta de compromisso cronológico da editora se reverta em nosso favor, com essas fases voltando em alguma temporada posterior. Torçamos.

Luwig Sá disse...

O run do Kelly, eu até tomo um remedinho da pressão a mais e passa... Agora, os Titãs do Grummett ali de Caça aos Titãs, Ardil de Jericó e Caos Total... é princípio de infarto na certa. Por outro lado, tem também isso que vc falou, o lance da falta de compromisso cronológico. Pode ser que isso saia mais tarde sem qualquer cerimônia. Oremos.