quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

VÁRIOS DIAS A MAIS

“De vez em quando, recebo pedidos de como ler os gibis do Homem-Aranha da maneira mais eficiente possível. Apenas as histórias essenciais, sem tapa-buracos, por favor. Apenas os pontos altos, o melhor material, o material importante. Essa é uma maneira terrível, chata e frustrante de curtir os gibis do personagem. Não é que não haja consenso a respeito de momentos “clássicos” do Homem-Aranha ou das fases longas e não tão badaladas de suas revistas. Mas a razão pela qual os trechos “importantes” são importantes é que eles alteram o curso do que veio antes deles. Reduzir a história de Peter Parker a uma coletânea de melhores momentos elimina o impulso, o desenvolvimento gradual e os floreios de temas e de variações que são grande parte do que é especial sobre ela. O que importa é a jornada.

Essa passagem e as próximas pertencem ao livro Todas as Aventuras Marvel, de Douglas Wolk (Conrad/2023). Trata-se do registro de uma façanha que um marvete maluco diz ter conseguido: ler tudo que a Casa das Ideias publicou do início até bem recentemente.

Ao fim da jornada, que não obedeceu necessariamente uma ordem cronológica de leitura, ele foi de Fantastic Four #1 (1961) até o especial Marvel Legacy (2017). O escritor até chega a brincar com isso, sugerindo que se o leitor partir rigorosamente dos anos sessenta, ele vai acabar desistindo do desafio em pouco tempo. Ainda assim, a peleja requeria recortes como, por exemplo, deixar deliberadamente de fora os materiais licenciados da Conan Properties, Hasbro (Transformers e G.I. Joe) ou gibis como a Origem do Papa João Paulo II, Mágico de Oz e qualquer adaptação em quadrinhos. Também ficaram de fora linhas editoriais dentro da Marvel Comics que não interagiam com o grosso do Universo 616, como Marvel Max, Epic, Age e outros.

Exceções: ROM (Hasbro), já que o Universo Marvel repercute na trajetória do personagem; e o Ultiverso que, em algum momento, se mescla ao 616.

No fim, Wolk computou 27 mil gibis em 3 anos de leitura. E no meu próprio fim, além de uma leitura deliciosa, o livro passou longe de ser algo acrítico e deslumbrado. Pelo contrário, tem raízes e rigores jornalísticos, já que o seu idealizador é um crítico musical, egresso da Rolling Stone, Vanity Fair, Washington Post, etc.

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Mas por que destaquei o excerto acima sobre o Homem-Aranha?

É que andei fazendo as minhas pazes com o herói. Não que eu tenha realmente abandonado o personagem em Um Dia a Mais, 17 anos atrás, mas a decepção engatilhada por aquela reviravolta me frustrou ao ponto de nunca mais priorizar o último número de Amazing Spider-Man entre as leituras do mês. Na realidade, virei um leitor bem esporádico, começando e abandonando arcos e fases ao menor sinal de descontentamento. Não me sentiria um viúvo do casamento de Peter e Mary Jane, não tivesse a magia de Joe Quesada Mefisto apagado da existência tantas histórias marcantes do aracnídeo; a exemplo do destino final de Harry, a esperada conversa reveladora entre tia e sobrinho ou todo aquele lindo rastro de destruição deixado após a aranha o gato sair do saco.

O que era um simples divórcio consensual perto do que perdemos naquele pacto?!

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“Várias vezes a história de Peter Parker lhe dá um momento em que ele tem uma espécie de trégua com seus conflitos, seguido por um fracasso catastrófico que o derruba — não ao ponto onde Peter começou, mas a um ponto em que não há nada a fazer além de aprender a engatinhar novamente.”

Vou mais longe, Um Novo Dia foi também sobre o velho leitor aprendendo a engatinhar, só que com a frustração de não ter mais pernas. A perspectiva dos anos, porém, me fez saltar da desolação para um destempero com Anansi e, finalmente, fazer minhas pazes com ele. Tanto é que acabei de colocar em dia a Amazing Spider-Man escrita por Zeb Wells, com as colaborações (rotativas) da equipe artística composta por John Romita Jr, Ed McGuinness, Patrick Gleason, Marcio Menyz e Scott Hanna.

Tudo (re)começa na edição nº 895, ou melhor, nº 1 do 5º relançamento da série. A primeira página é provocante e a seguinte, nem se fala. Vemos o Homem-Aranha em frangalhos no interior de uma cratera na Pensilvânia. Os (cinco) quadros se aproximam em close-up até restar um Peter Parker prostrado, proferindo um grito gutural. O que você vê a seguir é uma splash page com a informação em letras garrafais: seis meses depois.

Não sabemos o que o levou àquela circunstância da vala, a 320km de Nova Iorque. Não sabemos por que o Quarteto Fantástico e o Capitão América parecem decepcionados com o Homem-Aranha. Não sabemos por que até a Tia May está com uma pulga atrás da orelha com o sobrinho. E, principalmente, não sabemos onde diabo a Mary Jane arrumou um marido e dois filhos.

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“Por que, por exemplo, Peter mora com os tios e não com os pais — que só são mencionados anos depois? Esse detalhe fundamenta o personagem, pois implica que há algo doloroso em seu passado. Também duplica o impacto da morte do tio e estabelece um tema principal dos primeiros ciclos da história do Homem-Aranha: por mais dedicado que seja à sua frágil e amorosa tia May, Peter Parker está desesperadamente em busca de uma figura paterna. Lidos sob esse prisma, os primeiros anos de The Amazing Spider-Man se concentram em apresentar um péssimo pai em potencial atrás do outro para Peter.”

Não bastassem esses mistérios envoltos no salto temporal, vemos uma insólita aproximação entre Peter e Norman Osborn. Na verdade, um legado herdado do run anterior, de Nick Spencer, no qual o vilão teve seus pecados retirados pelo... aham, Devorador de Pecados e redirecionados para a Dra. Ashley Kafka; que viraria a Rainha Duende[1]. Não me perguntem!

Sob a batuta de Wells, esse contexto é reutilizado e trabalhado agora como uma parceria. O regenerado Norman quer que a Oscorp – agora com instalação e pessoal reduzido em Nova Jersey; já que ninguém em NY quis alugar seu imóvel para um ex-vilão – se dedique a projetos de engenharia e deseja que Peter trabalhe com ele na construção de uma turbina de plasma. Em algum momento, a parceria começa a acontecer, com direito a traje com dispositivos à moda Duende Verde.

É o papo da figura paterna do Douglas Wolk em curso e com requintes de tragédia anunciada.

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“Durante a maioria de suas primeiras trezentas edições, The Amazing Spider-Man foi, em parte, um gibi de romance; com Peter casado com Mary Jane, essa abordagem da história tinha sido cumprida. Fazia muito tempo que o personagem não era procurado pela polícia ou evitado por seus colegas. Então, em vez de figuras paternas péssimas — pessoas que poderia ter se tornado, mas resistiu em ser —, os títulos do Homem-Aranha da década de 1990 estão cheios de versões alternativas de si mesmo, personagens que representavam as partes da própria identidade que ele abandonou ou reprimiu.

Antes desse re-recomeço, das edições nº 876 a 894, Wells chegou a trabalhar com o ressurreto Ben Reilly como estrela da série mensal. Também não me pergunte. Da última vez que tive notícias do Sr. Reilly, para alegria de muitos e tristeza só minha, ele tinha virado uma sopa genética de roteirismo.

Enfim, no arco Beyond, ele vira um Homem-Aranha que trabalha para uma corporação tecnológica que, espertamente, registrou o nome do herói e é proprietária do seu copyright. O Peter nem tem tempo de se indispor com a sacanagem porque sofre uma sobrecarga radioativa ao enfrentar o grupo Os Alienígenas – vilões clássicos do Hulk – e acaba passando meses sob cuidados médicos. Na reta final dessa saga, Reilly perde todas as memórias que eram de Peter, restando-lhe apenas as dele próprio, após ganhar consciência como clone.

Sem o mantra do poder & responsabilidade, ele se ressente e adota o codinome Abismo; além de um uniforme bem exótico e manifestações telecinéticas do sentido de aranha. Algo que, por sinal, o Miles Morales parece também ter acessado e deixado o mentor de queixo caído.

Voltando a Reilly, o ranço o faz unir forças com a Madelyne Pryor; que também busca reaver memórias com Jean Grey, a dona de seu código genético. Isso desemboca em Teia Sombria, uma versão pocket de “Inferno” com demônios do limbo invadindo Nova Iorque. No decorrer da trama, Pryor se arrepende e se entende com Jean, mas Reilly, incontrolável, quer de volta o que julga ser seu. No fim, o clone do Homem-Aranha é aprisionado na embaixada do Limbo na Terra.

Trata-se de uma história medíocre que redime a saída da sopa no clímax da Saga do Clone. Correndo por fora, o Dr. Otto Octavius é outro que quer também o tutano de Peter para acessar as lembranças de sua vida como o Homem-Aranha Superior.

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Zeb Wells não é nenhum roteirista badalado e, para ser franco, a revista Amazing Spider-Man sempre foi um antro para escritores – como um bom amigo gosta de chamar – “chão de fábrica”. Isto é, nomes sem tanto apelo mercadológico, porém, ótimos cumpridores de prazo e conhecedores da identidade editorial do título. É gente que herda patacoadas como aquela do Norman lá em cima e no lugar de tentar corrigir ou renegá-la, joga com as cartas que têm. Algo que requer caráter, sobretudo numa época em que a maioria dos players assume um gibi major procurando ressignificá-lo, querendo deixar sua marca nos personagens.

Às vezes, mudanças vêm pelo bem e por conta de um fracasso retumbante do roteirista anterior. Entretanto, eu respeito muito quem pega a deixa do antecessor e dá o melhor de si. Demolidor sempre foi por aí; de um escritor entregar o carro pegando fogo e o outro chegar com gasolina para apagar. Nesse ponto, penso que Wells teria se saído bem com o mandate sobre o fim do matrimônio de Peter e MJ; já que a revelação sobre o mistério da cratera na Pensilvânia se mostrou um remédio bem menos amargo que o de Um Dia a Mais. Explico.

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Na verdade, tudo começa entre as edições nº 555 a 557 em Um Novo Dia, do próprio Wells e arte de Chris Bachalo; basicamente num Team-Up com Wolverine. A trama girava em torno de uma forte nevasca e a ameaça de Wayep, invasão de um Deus maia da morte. 360 números depois – Uau! –, em Amazing Spider-Man nº 915, surge um matemático chamado Benjamin Rabin com a ideia fixa de se tornar o emissário daquela deidade. Peter fora marcado por vingança e MJ como um sacrifício para a invocação da entidade.

Na luta, os três vão parar num mundo desolado, à moda Mundo Invertido, onde Wayep prosperou e dali seguiria para a Terra 616. No breve período em que estiveram lá, Peter e MJ conhecem Paul Rabin, filho de Benjamin, nativo daquele lugar e completamente avesso às obsessões do pai. Igualmente gênio, ele e o Homem-Aranha constroem um dispositivo similar ao que os Guerreiros da Teia (do Aranhaverso) usam para saltar entre as dimensões. Entretanto, só há energia suficiente para um usuário e Peter seria a melhor alternativa para voltar com reforços.

Quando retorna, precisamente no instante daquela página inicial da edição nº 895, ele entra em desespero ao notar que o tempo naquele lugar passava bem mais rápido que na Terra 616. Daí, não dava para fazer as coisas com calma ou ser cortês com ninguém. Peter precisava reunir recursos para reconstruir o dispositivo, de modo que ele pudesse fazer saltos com mais gente. É nesse contexto que ele acaba traindo a confiança do Quarteto Fantástico, ao roubar um minirreator de fusão, e o Capitão América, ao se negar - com muita contundência! - a fazer esclarecimentos sobre o incidente da Pensilvânia. O único disposto a ajudá-lo, sem fazer perguntas ou pré-julgamentos, é Norman Osborn e assim o faz.

Então, quando o Homem-Aranha regressa àquele universo para resgatar MJ e Paul,  o que foram dois ou três dias na sua realidade, na verdade, passaram-se quatro anos lá e os resgatados agora eram – como disse lá em cima – um casal com dois filhos!

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"O terceiro e último ano de Um Novo Dia se volta, finalmente, para a grande massa da história do Homem-Aranha: as ansiedades envolvendo pais e filhos e pais devorando filhos, temas que se espalharam pela coisa toda."

De repente, não dá para discutir com a “Sorte dos Parker”, de racionalizar uma circunstância impossível como a que MJ se deparou. Ninguém é de aço, ou melhor, alguns até são, mas os meros mortais são de carne e osso; e, felizmente, a carne é fraca.

O arco tem lá suas reviravoltas mais a frente, e a Sra. Watson-Rabin vê sua maternidade sendo negada uma vez mais. Na 2ª vez, há requintes de Wanda Maximoff e a 1ª vez, sigo imaginando que a bebezinha perdida algum dia voltará como Damian Wayne voltou. Ilações, inclusive, que ainda rendem assunto na seção de cartas em Amazing.

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De mais a mais, Wells segue sem dar indícios que deixará tão cedo o título, mesmo com algumas coisas atabalhoadas por aí e uma guerra de gangues que já vimos umas 616 vezes, mas tá um barato de acompanhar; com direito a Romitinha me entregando cliffhangers de ranger os dentes.

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[1] Uma bobagem só comparável com a transformação de Mary Jane na super-heroína Loteria; ou sandices como o fato de J. Jonah Jameson saber quem é o Aranha e estar de boa com isso. Aliás, essa sequência deve dar tilt no leitor xiita.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

O DILEMA DOS JOHNNIE WALKER

Essa passagem acima pertence ao filme American Fiction, escrito e dirigido por Cord Jefferson. Nela, o editor Arthur (John Ortiz) surpreende o romancista Thelonious 'Monk' Ellison (Jeffrey Wright) com uma proposta de 750 mil dólares feita por uma editora pelos direitos de publicação sobre um livro que ele – sob pseudônimo – tinha acabado de escrever. Isso seria motivo de alegria para onze em cada dez autores, mas Monk não vê bem por aí já que o texto era apenas uma espécie de piada interna, uma história que explorava propositalmente os piores estereótipos das periferias afro-americanas.

Então, o autor envergonha-se que algo feito como uma anedota, expressando tudo o que ele despreza como intelectual e homem negro, esteja sendo aclamado por público e crítica; e mais que isso, que ele esteja ganhando o dinheiro que jamais ganhou com sua bibliografia oficial. Chega num ponto que Monk – ou “Stagg R. Leigh” – recebe 4 milhões de dólares de um produtor para adaptar a obra para o cinema. E aí todas as ofertas passam a ser tentadoras, sobretudo pelo péssimo momento que ele e sua família estão atravessando; com o diagnóstico de Alzheimer da mãe viúva, a morte da irmã que cuidava dela e o irmão caçula, totalmente falido, vivendo uma fase caótica após sair do armário.

Para complicar, mais duas coisas: 1) sua namorada anda lendo o maldito bendito livro – chamado provocativamente de “Fuck” para desencorajar sua publicação – e está adorando; e 2) Monk é convidado para ser jurado de um prêmio literário e, de última hora, o romance de Stagg R. Leigh[1] entra na lista de indicados. E o pior melhor, mesmo a contragosto, “Fuck” tem grandes chances de ser o vencedor.

Na vida real, American Fiction também chamou a atenção da Academia e recebeu cinco indicações no Oscar 2024, quais sejam: melhor filme, melhor ator (Jeffrey Wright), melhor ator coadjuvante (Sterling K. Brown; vivendo o irmão Cliff), melhor roteiro adaptado (Cord Jefferson; pela transposição do livro Erasure, de Percival Everett) e melhor trilha original.

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O filme é uma sátira mordaz à produção artística, à crítica erudita, à indústria do entretenimento, ao próprio público, ao privilégio branco, ao mito da democracia racial... Tem alfinetada para todos os bumbuns. Contudo, o que ficou de verdade comigo após os créditos finais foi essa cena da metáfora dos Johnnie Walker.

Dá para esticar, puxar e administrá-la em múltiplos cenários; de editoras que se esquecem da existência de leitores menos abastados (RED) e centram poder de fogo em edições luxo (omniBLUEs); de linhas editoriais que querem ser BLUE, mas são BLACK... literalmente; de escritores BLUE que passaram a ver os quadrinhos como RED OLD EIGHT...

Cara, deu até vontade de tomar uma cerveja um RED agora.



[1] Inicialmente, Stagg R. Leigh era apenas um pseudônimo, mas o editor Arthur vende a lorota que ele seria atualmente um foragido da justiça; o que aumenta ainda mais seu apelo comercial e ideológico.