terça-feira, 29 de agosto de 2023

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL ASSOMBRADA

Jung define sincronicidade como uma interconexão psíquica e física de acontecimentos que ocorrem sem que o indivíduo tenha consciência ou controle sobre a mesma. Do lado de cá, encaro isso só como um jeito mais intelectual de racionalizar o que chamamos de destino. Eu sei que soa dramático apertar essa tecla, mas, por vezes, me surpreendo quando um conceito se repete entre leituras consecutivas, bem aleatórias, com zero preocupação por uma temática central. 

No caso, foram três quadrinhos oriundos de tempos e lugares distantes; inclusive, de criativos de nacionalidades e domicílios distintos. A proposta em comum do nosso modesto triunvirato reside em aplicações da inteligência artificial (IA) que antecipam e/ou revelam temores do que está ou estará por vir.

A primeira menção vem de 1983, American Flagg, de Howard Chaykin, direto de Nova Jersey. Já a história tem lugar em 2031, num tempo em que os Estados Unidos e os Estados nacionais viraram, basicamente, pessoas jurídicas de direito privado e a segurança pública fica a cargo de Rangers não exatamente fuzileiros, mas “guardas de shopping center”, protegendo os interesses das multinacionais governantes. O protagonista, Reuben Flagg, é um Ranger novato, egresso de uma colônia espacial onde costumava ser o ator principal do seriado Mark Thrust.

A pegadinha por trás da demissão no programa de televisão é que o seu personagem continua no ar como um construto de inteligência artificial que emula a voz, imagem e trejeitos de Reuben. Quer dizer, embora sem a presença dele, a produção executiva do seriado seguiu filmando episódios inéditos, certamente através de alguma brecha contratual inobservada que abocanhava os direitos de imagem do intérprete.

Bom, e aí se você não esteve fora do planeta no último mês, está em curso nos EUA uma greve de atores e roteiristas sindicalizados, reivindicando junto a estúdios mudanças em relação à forma de pagamento de dividendos e meios de se protegerem de enrascadas como a do Reuben no futuro; com uma regulamentação mais clara sobre os usos de IA. Até o fechamento desse texto, nenhum acordo foi feito com os 160 mil paredistas e Hollywood vive sua maior paralisação em 60 anos.

Pelo visto, se eles não voltarem mais, os mortos vão.

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O segundo quadrinho lido veio do canadense Jeff Lemire e o espanhol Gabriel H. Walta. Publicada em 2019, Sentient: Consciência Artificial chegou a ser indicada ao Eisner Awards na categoria melhor série limitada, e narra uma história onde a Terra tornou-se inabitável e já está acontecendo uma migração para outro planeta viável. Porém, uma parcela significativa dos colonos originais se transformou em separatistas radicais e agora agem para que novos imigrantes não terminem sua viagem.

É o caso da espaçonave U.S.S Montgomery, que levava consigo famílias inteiras, e ao ingressar numa zona onde as comunicações sofrem uma interrupção programada, toda a tripulação adulta é morta por uma simpatizante dos terroristas. Num ato de desespero, a última sobrevivente retira todas as contramedidas sobre a IA Valarie – que até então servia apenas como uma assistente pessoal, nível “Alexa” – e pede que “ela” proteja as crianças.

O que acontece a seguir é uma versão moderna do Senhor das Moscas, onde a abstrata “Val” tenta consolar os órfãos e dar instruções e senso de propósito aos pequenos para que a nave chegue ao seu destino final. Claro que isso não será uma tarefa fácil. É um gibizaço, simples e sem arrodeios. Fez tanto sucesso de público e crítica que a equipe criativa está atualmente repetindo a parceria em Phantom Road, uma nova série igualmente interessante; e uma conversa para outro dia.

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O terceiro e último quadrinho é uma leitura ainda em andamento, mas se continuar assim, faço questão de dizer que Injection será o novo Planetary do britânico Warren Ellis. E assim como aquela obra-prima, essa aqui também conta com um artista pra lá de qualificado: o irlandês Declan Shalvey, seguramente um dos melhores desenhistas de quadrinhos em atividade. Em se tratando de concepção de cenários, eu nem hesito, porque, sim, ele é o melhor na atualidade. Por sinal, alguns anos atrás, a dupla causou alvoroço na reformulação do Cavaleiro da Lua.

Antes de comentar a artimanha da IA em Injection, preciso dizer que a sensação de estranhamento do gibi nos primeiros números é normal. Você vai ler e entender bulhufas, mas por volta da 5ª edição, as coisas começarão a fazer sentido e aí quando rebobinar a fita, seguramente, irá reler/rever certas passagens com outros olhos; inclusive, a sacada genial por trás do narrador off nos recordatórios. Simplificando um pouco, Injection é uma espécie de “Liga Extraordinária” de Ellis, recrutada e financiada por uma parceria público-privada difícil de individualizar, mas cujos interesses giram em torno de uma busca pouco ortodoxa pelo progresso da humanidade. 

Na tradução do grupo que disponibilizou gratuitamente o quadrinho nas redes[1], o nome dessa Liga chama-se “Unidade de Contaminação Cruzada Cultural” e o objetivo dos cinco integrantes que a compõem é chegar a uma solução arrojada que impeça de se concretizar as previsões sobre um declínio social e tecnológico; tal qual o de Fundação, de Isaac Asimov.

E essa solução seria a convergência dos intelectos de análogos[2] de Elsa Bloodstone (Maria Kilbride), John Constantine (Robin Morel), Sherlock Holmes (Vivek Headland), James Bond (Simeon Winters) e Lisbeth Salander (Brigid Roth) na criação de uma “Injeção”, uma inteligência artificial assombrada, que passaria a desafiar, secretamente, o elemento humano a não ficar pelo caminho e seguir em frente na roda da evolução. O quadrinho começa com o pressuposto que eles tiveram sucesso nessa empreitada e, anos depois, isso começa a dar indícios que deu muito errado.

O Ellis está afiadíssimo e a narrativa visual de Shalvey é um assombro. De tudo que interpretei até agora, embora enrolada com o embrulho de sense of wonder, a mensagem é a mesma de Mary Shelley: “Não sabe brincar de Deus, não desce pro play”.

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Outro dia, estive também no terreno das especulações…

…mas será que isso ainda é só ficção especulativa?

A conferir.

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Off-topic, mas nem tanto: no final da edição #5 de Injection, o Robin Morel – ênfase no sobrenome! – invoca o mítico Weyland. Note o visual corpulento com a barba espessa. Claro, faz parte da iconografia da lenda, mas substitua o discurso místico, presente no quadrinho, pela luta de classes travada solitariamente por Alan Moore contra a Indústria Cultural.

Percebe? O Ellis homenageia o Moore, fazendo ele emergir na página como o insólito ferreiro em diálogo com “John Constantine”, uma de suas maiores criações.

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Como disse, ainda não li todas as quinze edições de Injection, mas já sei que a série – iniciada em 2015 – está paralisada desde 2017. O último registro sobre o retorno do título data de setembro de 2022, quando Ellis assegurou que o gibi não estava morto e Shalvey ainda comprometido com o projeto. Pelo visto, o problema não passa de um impasse de agendas lotadas. Não tem problema, toda a espera por Planetary valeu a pena. Injection também merece o benefício da dúvida.

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Link Afiliado


[1] Tendo em vista que Injection ainda não foi publicado oficialmente no Brasil.

[2] Isso não é exatamente verdade. O Ellis revelou na Newsletter Orbital Operations, de 16 de julho de 2017, que cada volume de Injection é focado em um dos personagens desse quinteto, só que inspirado em correspondentes da ficção inglesa. Logo, o volume um é sobre Bernard Quatermass; o volume dois, Sherlock Holmes; volume três, Doctor Who; e os ainda inéditos volumes quatro serão sobre James Bond e o cinco com Thomas Carnacki.