quinta-feira, 20 de março de 2025

VOCÊS ME PEGARAM!

 

O trecho acima pertence ao filme Lola, de Andrew Legge. Faz exatamente um ano que pesquei essa dica com o J.M. Straczynski. Como de praxe, adicionei na minha “lista” no Romênia + e por lá continuou até agorinha, em março de 2025. O meu interesse pelo mesmo foi subitamente ressuscitado quando vi amigos compartilhando o trailer de um tal de “A Máquina do Tempo”, que acabava de ser lançado nos cinemas brasileiros.

Para minha surpresa, trata-se do mesmo Lola que continuava sendo solenemente ignorado por mim. Corrigi isso em dois tempos, e já posso bater no peito que, para variar, o título nacional é genérico e não corresponde ao que de fato é o mecanismo "Lola". Quer dizer, o dispositivo criado pelas irmãs Hanbury – e batizado em homenagem a mãe – nada tem a ver com viagens temporais[1]. Muito pelo contrário, a tecnologia criada por Thomasina (Emma Appleton) e Martha (Stefanie Martini) no final dos anos 1930, tem como particularidade o fato de ser capaz de sintonizar sinais de rádio/televisão transmitidos do futuro.

Daí, o que as simpáticas irmãs fazem com isso? O que qualquer um faria: enriquecer com jogos de loteria e bisbilhotar a produção cultural de décadas a frente. Tudo ia muito bem para as Hanbury até o fatídico dia em que Adolf Hitler aconteceu e a Inglaterra passou a amargar duras derrotas no princípio da 2ª Guerra Mundial. Imaginando que poderiam mudar o curso do conflito e salvar milhares de vidas, sob o pseudônimo de “O Anjo de Portobello”, elas passam a fornecer dicas anônimas à inteligência militar sobre ataques e operações nazistas.

Chega-se a um ponto em que as previsões começam a mudar o rumo da guerra, e com ela o próprio futuro do qual já conheciam. Está instalado um efeito borboleta que leva às favas qualquer senso de previsibilidade anterior, e junto com ele, figuras notáveis como David Bowie, Stanley Kubrick e vários outros. Sem falar que o próprio nazifascismo torna-se um animal diferente.

Lola é curtinho. Tem nem 1h20min de duração e, quem diria, dá um trato daqueles na técnica batida do found footage. É que as irmãs registram seu cotidiano e todos os momentos que levarão ao clímax da história por meio de câmeras de 16 mm, como a Bolex e a Arriflex, equipadas com lentes do período. Já as cenas que simulam cinejornais da época foram capturadas com uma câmera Newman Sinclair de 35 mm, fabricada na década de 1930, usando filme Kodak Double X.

É um lance deveras criativo, que faz horrores pela imersão e autenticidade. Fino!

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Após assistir ao 4º episódio de Demolidor Renascido, tive a leve impressão que o Justiceiro repetirá a façanha da 2ª temporada da série original e ditará os rumos da história. Ora bolas, já estava ditando sem sequer aparecer, não acha?

Estou falando da banda podre da polícia nova-iorquina, adotando o memento mori de Frank Castle (Jon Bernthal) como inspiração leviana para seu “servir e proteger”. O tema, por sinal, atormenta a Marvel/Disney e não é de hoje. Se por um lado, a caveira estilizada já era uma iconografia cotidiana no exército norte-americano, com a autobiografia de Chris Kyle, o Sniper Americano, fica nítido que ela virou algo maior que o personagem. Uma ideia:

"- Nosso operador de comunicações sugeriu isso antes do destacamento. Todos nós achávamos que o que o Justiceiro fazia era incrível: ele corrigia injustiças. Ele matava caras maus. Ele fazia os malfeitores temê-lo. Era exatamente isso que representávamos. Então, adotamos o símbolo dele — um crânio — e o transformamos em algo nosso, com algumas modificações. Pintamos com spray em nossos Hummers, em nossos coletes balísticos, capacetes e em todas as nossas armas. E pintamos com spray em cada prédio ou muro que pudemos. Queríamos que as pessoas soubessem: estamos aqui e vamos acabar com vocês. Era a nossa versão de guerra psicológica. Estão vendo a gente? Somos os caras que estão detonando vocês. Temam-nos. Porque nós vamos matar vocês, seus filhos da puta. Vocês são maus — nós somos piores."

Piora quando Jon Bernthal passa a ser cobrado a dar esclarecimentos sobre fotos de manifestantes na invasão do Capitólio em 6 de janeiro (de 2021), usando a logomarca. Gerry Conway, cocriador do Justiceiro, chegou a dizer sobre policiais flagrados estampando-a em viaturas e/ou equipamentos:

“- Por definição, ele é o oposto do que eles deveriam ser, sabe? Ele é alguém que está fora da lei tomando a lei em suas próprias mãos. Então, se eles estão reivindicando o Justiceiro como seu símbolo, eles estão dizendo que são foras-da-lei e que eles são criminosos e que eles são inimigos da sociedade. É realmente isso que eles querem dizer? [...] Quero negar à polícia, à milícia e aos militares a oportunidade de usar isso como um símbolo de opressão. [...] A Disney sabe que isso é radioativo. Eles vão deixá-lo desaparecer. O que para mim é uma vergonha."[2]

Entretanto, acho que ninguém foi tão contundente e literal num contraponto quanto foi a dupla Matthew Rosenberg e Szymon Kudranski em The Punisher nº 13/2018 (ou Justiceiro, Vol. 3: Rua a Rua, Quadra a Quadra):

O que estou pensando: a Marvel/Disney está com a caveira bola na mão. O que quer que será do Justiceiro daqui para frente, virá do que estão planejando nos próximos episódios de Demolidor. Creio que a sequência acima tem boas chances de ser adaptada para a telinha, porém minha inquietação é outra. Me pergunto se o velho Frank terá munição suficiente para abrir caminho nos corações & mentes de tanta gente besta, deixar para trás os cafundós de Mefisto e, por fim, ter de volta um lugar no Universo 616. 

 A conferir.

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Links Afiliados


[1] Se fosse para arriscar uma referência pop dessa “máquina do tempo”, eu iria de Alta Frequência.

[2] Vire e mexe, Conway é instado a se manifestar sobre a apropriação da caveira do Justiceiro. Para fins desse texto, capturei excertos de matérias na Forbes e no CBR. Por outro lado, nunca vi o Garth Ennis falando a respeito, mas imagino que em Justiceiro MAX nº 49 (O Fazedor de Viúvas), o irlandês disse tudo em uma página só.

segunda-feira, 17 de março de 2025

A CULPA É SUA!

Fazendo uma rápida consulta na loja virtual da Panini, o preço (cheio) do omnibus da fase noventista do X-Factor comandada por Peter David é de R$ 349,90. Já os dois volumes gigantescos do Hulk assinados pelo mesmo, custam estratosféricos R$ 819,80. No lado da DC, as três edições capa dura de sua Supergirl correspondem a um investimento de R$ 424,70 e o vindouro Aquaman davidiano, em seu volume de estreia, “módicos” R$ 164,90.

Com alguns descontos de praxe e/ou parcelamentos mil, sua alma tende a ficar ligeiramente mais leve. Por outro lado, espero que ela – sim, a alma – pese bastante na hora de sacar o cartão de crédito e lembrar-se dessa foto acima do Sr. David.

O registro fotográfico encabeçou o artigo de Rich Johnston no Bleeding Cool, em 14 de março de 2025. O texto repercute a saúde fragilizada do escritor de 68 anos, pego para Judas em meio à insuficiência renal, derrames e um ataque cardíaco. Vítima de um país cujo capitalismo selvagem nutre um sonho (americano) que não permite a existência de algo como o (nosso) SUS, David se viu desamparado pelo Medicaid e, como sua esposa revela, está agora abandonado à própria sorte:

A versão curta é que estamos nadando em dívidas médicas devido à rejeição de Peter para o Medicaid – o que era uma das poucas coisas que estava dando certo. Como muitos de vocês sabem, o seguro só paga até certo ponto. Uma vez que se tenha usado isso, depende-se dos serviços sociais para permitir que se viva sem ficar sem teto e sem dinheiro. É isso que o Medicaid tem feito nos últimos dois anos.”

O relato na íntegra de Kathleen David causa ainda mais desalento, e serve de apelo aos fãs numa campanha de financiamento coletivo para arrecadar US$ 150 mil. A julgar pelos mais de US$ 80 mil já doados, o prognóstico é de que nos próximos dias, felizmente, a meta seja atingida.

***

Não que isso sirva para aliviar sua consciência. Ela deveria, sim, pesar e muito. Afinal, quando se paga por aqueles gibis lá em cima, por uma particularidade arcaica e predatória dos contratos work for hire (trabalho sob encomenda), os autores Marvel/DC não recebem royalties nas vendas de reimpressões realizadas fora dos Estados Unidos.

Isso ocorre por dois motivos: 1) as duas editoras majors vendem os direitos internacionais para outras empresas (como a Panini no Brasil), e essas republicações, obviamente, não fazem parte da tiragem original do quadrinho nos EUA; e 2) no mais das vezes, os acordos não incluem pagamentos sobre republicações internacionais.

Desse modo, os escritores e desenhistas não recebem percentuais sobre esses novos contratos, a menos que seja algo especificamente negociado. A exemplo do feito conseguido por Neil Gaiman em Sandman que, embora nunca revelado os termos exatos, tem-se como certo tanto o recebimento dele de royalties internacionais pelas vendas, quanto de dividendos consideráveis em torno de adaptações e merchandising. Insight parecido teve Rob Liefeld que, enquanto esteve na crista da onda durante a febre mutante dos anos noventa, conseguiu emplacar direitos sob o copyright de algumas criações em Novos Mutantes/X-Force: Quando Deadpool explodiu no Fortnite, isso foi realmente bom para a educação privada dos meus filhos? Sim. Sim, foi. [...] Tenho fluxos de receita do Deadpool que existem desde 1991.[1]

***

Como David não conta mais com vigor para fazer aparições em eventos e a cognição deve estar agora em frangalhos após múltiplos AVCs, não consigo vê-lo produzindo novos roteiros para o seu empregador mais corriqueiro. Sem qualquer criação indie digna de nota, construindo uma carreira profícua, porém, majoritariamente atrelada a medalhões corporativos, é difícil crer que haverá uma reviravolta. Do mesmo modo que nunca houve para o grosso dos notáveis que criaram sem limites e, em algum momento futuro, esbarraram numa limitante realidade.[2]

O problema, entretanto, é que o leitor/consumidor não costuma dar bola para esses dilemas paradigmáticos da criação artística. Chega a ser ininteligível quando, por exemplo, a mão que acaricia a obra de Alan Moore, costuma ser a mesma que apedreja a animosidade do autor com a indústria do entretenimento e sua fome insaciável de buyout.

Reformulando para o espírito desse texto:

A mão que compra o omnibus do Hulk, é a mesma que faz vista grossa com o Peter David virando estatística na assistência social de Donald Trump.

Há que se botar a boca no trombone, mas mais importante que a(s) voz(es) solitária(s) do(s) autor(es), cabe ao leitor das “republicações internacionais” a iniciativa inédita de não pactuar mais com esse estado de coisas. Por mais quixotesco que isso possa parecer.

Não compre e veja a mágica acontecer.



[1] Especula-se que até 2024, Liefeld tenha lucrado entre US$ 10 milhões e US$ 20 milhões com sua cota-parte em Deadpool.

[2] Em Pulp, Ed Brubaker e Sean Phillips ilustraram um worst case scenario da experiência frustrante do primeiro em O Soldado Invernal, enredando uma trama onde um escritor de folhetim descobre que seu personagem não lhe pertence e não tem mais saúde ou finanças para seguir em frente. De repente, o ficcional Max Winters parece muito o verídico Peter David.

sábado, 15 de março de 2025

E O CORPO AINDA É POUCO

Nunca me esquecerei desse dia, doze anos atrás. Sofri uma fratura na mão direita após um acidente e precisei ser operado. Apesar da dor insuportável e a queda de pressão ao escorregar no banheiro, a cirurgia foi relativamente simples. Bem mais problemático foi o longo processo de recuperação, com sessões diárias de fisioterapia. Mas o tal dia inesquecível não foi do fato em si e, sim, de alguns minutos excruciantes na sala de recuperação. Quer dizer, sala é um eufemismo tardio para mesma.

Ao recuperar os sentidos, me vi imobilizado numa maca dentro no que, hoje, acredito ter sido um cubículo de almoxarifado. No meu ângulo de visão, só enxergava esfregões, material de limpeza e documentos empilhados numa estante. Não tenho certeza se isso foi alguma confusão mental diante dos resquícios da anestesia me pregando uma última peça, mas o que veio a seguir pareceu tão vívido quanto o que o etéreo Patrick Swayze “vivenciou” em Ghost: Do Outro Lado da Vida (1990).

Pois, à medida que ficava lúcido, me inquietava com o local onde supunha estar, fora a necessidade desesperadora de urinar, porém, incapaz de fazê-lo por estar imobilizado. Então, quando vi e ouvi pessoas conversando próximas de mim, tentei chamá-las. Como estava sendo deliberadamente ignorado, aos poucos fui aumentando o tom, até que o desespero bateu e ameacei descarregar uma chuva dourada ali mesmo. Ainda assim, ninguém parecia se importar com isso.

Por alguns longos instantes, passei a cogitar que alguma coisa havia dado errado no procedimento... Um choque anafilático? Um infarto fulminante? Uma parada cardíaca...?! Qualquer coisa inesperadamente mortal que tivesse abreviado minha existência e, naquele momento, meu espírito estava preso e invisível no lado de cá.

Uma eternidade mais tarde, uma enfermeira – visivelmente preocupada em ter que dar conta de um paciente todo mijado – deu sinal de “vida” e me trouxe um urinol. Nunca fiquei tão aliviado. Literal e figurativamente falando.

***

Enquanto lia Dylan Dog: Mater Morbi (Mythos/2024), essa memória insólita veio de novo a mim. No quadrinho de Roberto Rechionni e Massimo Carnevale, o Investigador do Pesadelo se vê prostrado em meio a uma internação hospitalar para tratar de doença sem diagnóstico. Hipocondríaco clássico, ele se apavorado com os exames sem fim, a desorientação pela perda recorrente dos sentidos e procedimentos mil que levam a uma massa de matéria obscura.

Como se isso já não fosse o bastante, ele passa a ter contato com uma estonteante figura de espartilho que se identifica como a Mãe das Doenças. Quase uma figura intermediária entre os Perpétuos Desespero e Morte; o que a propósito, não parece ser um mero “devaneio” de minha parte.

Ao contrário do grosso das tramas do Oldboy bonelliano, o humor nada sutil[1] fica de lado, dá vazão às investidas sadomasoquistas da tal matriarca e, no canto do olho, um olhar byroniano sobre a perda da saúde. Uma visão, por sinal, tão sensível quanto cruel sobre o triste processo de desumanização das pessoas em meio a enfermidades incuráveis. Some-se a isso o horror psicológico traduzido nas belas páginas de Carnevale, com uma excentricidade pré-existente de Rechionni em redigir posts sobre doenças.  

Originalmente, Mater Morbi saiu na edição nº 280, de 2012. Segundo os extras assinados por Júlio Schneider, a forte introspecção desse enredo ganhou projeção na mídia italiana, chegando a alavancar uma discussão (séria) sobre ética médica e eutanásia nos jornais e na TV.

Do lado de cá, penso que é uma ótima isca para novos leitores do personagem.



[1] Costumeiramente levado a cabo pelo insuportável Groucho Marx.

 

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

HABEMUS FILMAÇO!

"Deixem-me dizer-lhes, há um pecado, que vim a temer mais que todos os outros: Certeza. A certeza é a maior inimiga da unidade. A certeza é a inimiga mortal da tolerância. Mesmo Cristo não estava seguro no final. Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? Ele clamou em sua agonia na nona hora na cruz. Nossa fé é algo vivo, exatamente por caminhar de mãos dadas com a dúvida. Se houvesse apenas certeza e não dúvida... Não haveria mistério e, portanto, nenhuma necessidade de fé. Vamos rezar a Deus que nos garanta um Papa que duvide. Um Papa que peque e peça perdão, e que prossiga em frente."

Essa passagem é registrada pelo Decano Lawrence (Ralph Fiennes) em sua homilia, três meses após a morte do Papa. O discurso inaugura as deliberações para o Conclave e as subsequentes votações que resultarão na escolha do novo Sumo Pontífice. A mensagem é uma clara alfinetada a um dos cardeais que postulava o cargo, que horas antes, em off, destilava ao próprio Lawrence uma intolerância velada aos avanços da Igreja em pautas progressistas e o desejo de que o papado voltasse a ser comandado por italianos natos.

Lawrence preside a eleição e não anseia o cargo em disputa, mas vota abertamente no Cardeal Bellini (Stanley Tucci), um amigo próximo, crítico do retrocesso e talvez um bom sucessor do finado Santo Padre. Num passado recente, Lawrence passou por uma crise de fé, não em Deus, mas na instituição e, agora, diante de vários homens que desejam mais do que tudo o poder papal, ele terá que andar na corda bamba, entre a isenção que o pleito exige e a (dura) realidade que se apresenta.

O que me impressionou de verdade no filme de Edward Berger foi o fato de que, no frigir dos ovos, trata-se de uma história de detetive. Sim, existem mistérios - ou seriam esqueletos nos armários? - em torno dos candidatos e eles devem ser elucidados - ou desentocados dos armários? - para garantir uma eleição limpa. Ou, vá lá, evitar que o homem errado vire Papa?

Isso quem tem que responder é o espectador que, do outro lado da tela, se vê tenso e perplexo no enredo mais improvável dos Oscarizáveis de 2025. E se quer saber, por ora, minha torcida para a estatueta de melhor ator é toda do Decano Fiennes[1]. Afinal, o que ele precisa entregar aqui não é pouco: transmitir controle emocional em meio a situações limítrofes onde um exausto Lawrence tem que domar egos, pacificar ímpetos e contemporizar sua fé cristã.

Dada a inesperada humanização de um ritual que paralisa o mundo (real), não é de se espantar que o roteiro de Peter Straughan e Robert Harris esteja causando furor nas premiações mundo afora. E nem vamos comentar a ousadia daquele desfecho...

Habemus filmaço... e bolas!



[1] Atualizado após o Oscar 2025: não foi dessa vez. O vitorioso da noite foi o agora bicampeão Adrien Brody, por sua atuação em O Brutalista. Porém, a dupla que citei acima levou a estatueta de Melhor Roteiro Adaptado; a única dentre as oito a que estava concorrendo.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

O TRIUNFO DE SUE

Relutei um pouco em assistir A Substância (The Substance, 2024). Em algum momento do ano passado, o filme virou assunto nos meus círculos, fora a onipresença nas redes sociais via Gifs e Memes. Porém, o fato de ter visualizado - contra a minha vontade - cenas de gore e a óbvia percepção que se tratava de um body horror, me tiraram do caminho tortuoso percorrido por Elisabeth Sparkle (Demi Moore).

Nunca me dei bem com o subgênero, a despeito de apreciar a visceralidade do cinema de David Cronenberg. Com a indicação ao Oscar na categoria melhor filme, fiquei genuinamente curioso e decidi me submeter a tal experiência tão alardeada no enredo de Coralie Fargeat. Na trama, a personagem de Moore é uma estrela de um tradicional programa de ginástica na TV, tão conhecida no meio que seu nome foi adicionado à Calçada da Fama.

O problema é que os índices de audiência andam em baixa e o produtor (Dennis Quaid, asqueroso em cada frame) bota isso na conta da idade de Sparkle. Para o executivo, ela estaria velha e era hora de procurar uma substituta mais jovem. Demitida, Sparkle se via agora na rua da amargura, tendo que aceitar a aposentadoria forçada, até o dia em que recebe anonimamente o convite para participar de um experimento.

Ela injetaria uma substância ativadora que, a partir de sua coluna cervical, daria origem ao que parecia ser uma versão jovem de si mesma. A ideia era que, como "Matriz", Sparkle trocaria de lugar com seu outro Eu em rodízios rigorosamente pré-determinados. Enquanto uma hibernava, a outra assumiria. No caso de "Sue" (Margaret Qualley) - o Eu mais jovem -, em segredo, decide competir pelo lugar de Sparkle na TV e não só consegue, como passa a ser a nova queiridinha do canal.

Em dado momento, quando o revezamento começa a dar errado - especialmente para Sparkle -, a subjetividade entra em cena e te leva a questionar se as duas realmente são a mesma pessoa, ou melhor, uma só pessoa diante de um worst case scenario de autossabotagem.

Moore e Qualley estão impossíveis em atuações com mais fisicalidade do que trocas intensas de diálogos. São silêncios, por vezes, incômodos e uma sexualidade propositalmente fútil; essa última reforçada pelo close-up extremo da câmera da diretora Fargeat. O clímax de A Substância é difícil de assistir e se tiveres uma resistência ao body horror parecida com a minha, te adianto que serão vinte minutos de pura agonia.

Uma agonia que, acredito, deve ser catártica para os fãs desse tipo de horror. Por último, me surpreende (positivamente) a Academia[1] trocar seu arroz com feijão básico pelos sabores fortes desse baião de dois & queijo gorgonzola.



[1] Atualizado após o Oscar 2025: das três indicações a que concorreu, entre melhor filme, atriz e maquiagem & cabelo, o único êxito foi na última. O que, confesso, foi uma surpresa. Imaginava que essa categoria seria batata para Nosferatu, porém, a produção de Robert Eggers saiu de mãos abanando. Já Moore tinha um páreo duro com Fernanda Torres e Mikey Madison; o que não diminui nem um pouco o impacto do plot twist, vendo a jovem Su-- Anora abocanhando a estatueta das veteranas.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

VOE COMO A ÁGUIA, MANFREDI

2025 mal começou e já sinto náuseas antes de pegar no smartphone. Afinal, ultimamente, ele só tem se comportado como um mensageiro portador de más notícias. Fosse vivo, eu o mataria. Também pudera, foi este maldito aparelho que matou David Lynch, matou em vida Neil Gaiman, deu posse a Donald Trump, mas, como única exceção, salvou seu pescoço ao consagrar Fernanda Torres e Ainda Estou Aqui com suas indicações ao Oscar.

Então, estava tudo bem entre nós, talvez estivéssemos, inclusive, caminhando rumo a um #Sextou satisfatório. De repente, o aparelho desgraçado rompe nosso armistício e traz a notícia do falecimento de Gianfranco Manfredi. Aí não...

***

Falando sério... Nem tenho cultura para comentar superficialmente o tamanho da perda desse roteirista. Para mim, um escritor genial, com um nível de erudição, fluidez e traquejo na mecânica gibizeira à altura dos imortais da 9ª arte. Para o povo italiano, além da expertise nos fumetti, um autor prolífico e multifacetado, compositor, romancista, ensaísta.

Estou triste e, sincronicidade ou não, acredite, ontem à noite estava lendo Mágico Vento nº 74. Quando bateu o sono, fechei o tablet exatamente nessa sequência:

Diana, a filha mais velha de três, escreveu o seguinte: Artistas como ele nunca nos deixam. [...] Gianfranco sempre viverá através de tudo o que nos deixou e isso alivia nossa dor. Hoje, lembrando-se dele ouvindo uma de suas músicas, lendo uma das milhares de páginas que ele escreveu, ou pensando em um momento passado juntos, certamente o faria feliz."

Eu sei que ainda o farei muito feliz, dado o meu compromisso atual de ler as 57 edições de Mágico Vento que me restam, fora os vários números de Tex, as minisséries Face Oculta, Shanghai Devil e o que mais puder encarar em sua vasta bibliografia Bonelli. Será uma boa vida de leituras.

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Obrigado por tudo, Signore Manfredi.

Mitakuye Oyasin.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

NEGÓCIO NO FIO DO BIGODE

Costuma-se dizer que quando uma história se liberta de seu criador, da segurança do manuscrito, e passa a ser publicada e/ou exibida sob quaisquer suportes, enredo e personagens já não mais pertencem àquele entusiasta de outrora. Tornam-se parte do imaginário coletivo, a despeito do que o Copyright tenha a dizer sobre isso. Drácula de Bram Stoker que o diga, publicado originalmente em 1897, foi tomado de assalto no roteiro de Henrik Galeen para o filme Nosferatu (1922), de Friedrich Murnau.

Quer dizer, sem ter autorização para isso, todos os tropos do clássico de Stoker foram explorados na icônica película do cinema mudo. Ironicamente, é no derivado extraoficial que se acrescenta à trama do Conde vampiro, o plot do interesse amoroso - ou chame-o do que quiser. Ironicamente², já em domínio público há três décadas, em 1992, Francis Ford Coppola fez um combinado, utilizando os elementos característicos de ambos. Ironicamente³, Coppola chamou seu "Frankenstein" de "Drácula de Bram Stoker".

Corta para 2024, nos créditos finais do mais novo remake de Nosferatu, vemos a informação que o filme fora inspirado tanto no controverso script de Galeen quanto no livro de Stoker. Trata-se de um sarrafo muito alto para o diretor Robert Eggers saltar, sobretudo quando se tem ainda muito vívida a marca imagética do que Coppola alcançou, especialmente nos dois primeiros atos. Então, na minha cabeça, enquanto assistia, um duelo interno estava sendo travado: Gary Oldman vs. Bill Skarsgård; Winona Ryder vs. Lily-Rose Depp; Keanu Reeves vs. Nicholas Hoult; Anthony Hopkins vs. Willem Dafoe e Monica Bellucci vs...?!

Enfim, o time de 92 sempre estava vencendo os desafios contra o de 24, inclusive, no nível do roteiro, porém, com uma única exceção: o terceiro e último ato, que trata das três pragas de Nosferatu. Acho que elas conferem tetricidade, uma sensação de desolação, como se as vítimas de Wisborg tivessem acabado de sobreviver a um desastre natural. Uma desesperança ao qual espectador (ou leitor) nenhum havia se deparado até então.

O que quero dizer é que, tenho minhas restrições[1] com o Orlok - humanizado por um bigode? - e a sensação incômoda de que aquela Ellen[2] é uma Regan (de O Exorcista) no filme errado, mas o Nosferatu 2024 tem, sim, arroubos estéticos/góticos merecedores de elogios[3] e, claro, aquele desejo irrefreável de recontar as grandes histórias que permeiam à coletividade. Um desejo que atiçou os ímpetos de Murnau, Coppola e, agora, Eggers também.

E isso eu respeito[4].



[1] Confesso que antipatizei também com Van Franz, o análogo de Van Helsing. Na versão revista, Eggers o transforma numa figura vacilante, que jamais chega a ser determinante para a resolução da praga de Nosferatu. É como se o (ótimo) Willem Dafoe estivesse ali apenas para fazer react como intelectual atestando que ia dar merda. Já o Orlok me divide. Aprecio todo o esmero na caracterização do personagem, tanto do ator quanto da produção, mas em momento algum o achei assustador. Aliás, depois que vi isso... Sem chance!

[2] Dediquei quatro anos da minha vida a Mina Murray de Bram Stoker e, em especial, a subversão apócrifa da mesma por Alan Moore e Kevin O’Neill em A Liga Extraordinária. Então, modéstia à parte, creio que possa me indispor um pouco com essa Ellen amuada de Robert Eggers.

[3] [...] e as quatro indicações que recebeu no Oscar 2025, quais sejam: melhor fotografia, melhor figurino, melhor cabelo & maquiagem e melhor design de produção.

[4] Só não respeito esse ar um pouco pretensioso que esse diretor exala quando dispara coisas como a ideia de ter que fotografar um carro me deixa doente.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

O VENENO DE MAX CADY

Por volta dos 36min de Cabo do Medo (Cape Fear, 1991), existe um frame do ex-presidiário Max Cady que sempre via reproduzido em casting calls de fãs, elegendo o ator Robert De Niro como uma caracterização perfeita do anti-herói Wolverine. Se você tocar o play nesse exato momento, não tenho dúvidas que terá náuseas e ficará horrorizado com a mera sugestão de que alguém cogitou que o (honrado) Logan poderia habitar aquela pele.

No enredo, após 14 anos, Max deixou a penitenciária e está decidido a transformar em um inferno a vida de Sam Bowden (Nick Nolte), o defensor público que o representou à época da condenação. É que durante o julgamento, o réu respondia pela acusação de estupro e Sam deliberadamente ignorou uma dica importante que poderia tê-lo inocentado. Porém, não era a percepção do defensor e, como veremos no filme, por mais antiético que parecesse aquilo, no fim, Sam pode ter feito algum bem ali. Por outro lado, enquanto cumpria pena, Max afirma que transcendeu através da dor e do conhecimento, sendo ele próprio vítima de estupros e, outrora analfabeto, encontrou o dom da erudição nos livros (e quadrinhos!); fora a transformação do corpo, levando-o a cultivar músculos e tatuagens com mensagens alusivas à vingança que se dedicaria.

Mais que física, a retribuição de Max é psicológica, a princípio, tornando-se um stalker e depois uma sombra constante no cotidiano da família Bowden. No lado da direção, Martin Scorsese parece evocar a imagética opressiva e sonora do cinema hitchcockiano e, se me permite a indiscrição, com algumas pitadinhas de Sam Raimi na mistura.

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O tema de Bernard Herrmann é o prelúdio magistral desse pesadelo.

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Consultando os vencedores do Oscar de melhor ator, creio que em qualquer ano, De Niro teria levado a estatueta com uma mão nas costas, mas, em 1992, ele tinha pela frente ninguém menos que Anthony Hopkins e seu imbatível Dr. Lecter. Com Cabo do Medo quentinho na cachola, não deixo de imaginar que se o resultado tivesse sido diferente, também não seria nenhuma injustiça. Era apenas uma questão de "escolha o seu veneno".

No caso de Max Cady, um veneno bem forte.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

VIDAS PASSADAS

Desisti de comprar Mágico Vento. Por ter números espaçados da série original, a princípio, me animei com a possibilidade de colecionar as edições capa dura (em cores terríveis). Comprei. Quando passaram a rarear, dei uma chance para as versões em formato italiano. Comprei também. Em algum momento, vi as duas fracassarem “mythicamente”. Eis que surge a Editora 85, reiniciando novamente a roda e, agora, com a ideia de publicar cinco volumes em um. Tenho simpatia e torço pelo êxito dos novos publishers, mas fechei definitivamente essa porta; o que, contudo, não me fez desistir da leitura dos gibis por outros meios.

Dos 131 fascículos da série regular, nesse momento que digito essas linhas, acabei de ler o 66º. E como sempre, um sentimento vem à tona: o fascínio pela minúscula seção de cartas, o maldito bendito Correio de Poe. A despeito da excelência das histórias, nenhuma das três republicações chega perto de empatar a experiência que é ler o gibi com o contraponto dos leitores e causos como o registrado abaixo:

Numa era em que uma parcela expressiva dos novos desenhistas mal consegue entregar suas 22 internas no mercado editorial US, com mais presença virtual que nos quadrinhos onde supostamente deveriam estar, é curioso se deparar com o (bom) motivo dos atrasos do artista sérvio Darko Perovic.

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Curiosamente, quem fica a cargo da arte desse mesmo número é o croata Goran Parlov. Um dos nomes mais marcantes ligados a Mágico Vento e, indubitavelmente, o grande desenhista do Justiceiro no século 21. E ainda que mereça destaque o traço, mais que a estética, merece aplausos o argumento de Gianfranco Manfredi. Dessa vez, depois de um período considerável entregando faroestes históricos, o roteirista volta ao místico que é, na minha opinião, a temática por excelência do título.

Aqui, Ned Ellis se vê as voltas com uma regressão de vidas passadas, onde ele se transfere para o corpo de Ehecatl (ou Vento Sagrado), 800 anos no passado. Na trama, acuado pelos sacerdotes dos Mounds, esse ancestral foge rumo à segurança do Rio Mississipi ao lado da amada Janira o irmão Sethua, indicando que o destino de Mágico Vento sempre estaria atrelado aos ameríndios.

Uma bela história, com ares lovecraftianos e um pano de fundo que é um verdadeiro mistério arqueológico.

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A única coisa que me frustra é não contar com esse recurso do Mágico Vento para acessar memórias perdidas – quiçá, de vidas passadas. Na verdade, como mero mortal, tenho uma memória desgraçada de ruim e percebei que, enquanto lia, algo estava faltando ou me era minimamente familiar. Sim, e era verdade. A premissa dos sacerdotes dos Mounds (ou os Antigos) já havia sido trabalhada anteriormente por Manfredi, especificamente através do relato de Nuvem Vermela a Ned em MV nº54 – por sinal, também com a arte de Parlov.

Preciso escrever mais sobre esse gibi, até para evitar outros futuros transtornos. 

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