quinta-feira, 25 de abril de 2024

20 ANOS DE DESOLAÇÃO

Mike Jones era um agente do MI6 que exagerava tanto na bebida que, vire e mexe, acabava se voluntariando como cobaia em experimentos obscuros. O motivo? Fugir do trabalho para passar semanas de molho, apenas dormindo. Entretanto, um dos testes fez exatamente o oposto: privou-lhe do sono por um ano e, de quebra, o deixou parcialmente sem sentidos[1], sem pigmentação da pele e alérgico à luz solar. 

Isso foi há alguns anos. Hoje, Mike faz parte de uma comunidade de operativos clandestinos, muitos dos quais também envolvidos em procedimentos similares, confinados na área que as autoridades de Los Angeles apelidaram de “Cidades dos Espiões”, mantendo-a selada e legalmente invisível. Essa seria, digamos, a origem secreta do protagonista de Desolation Jones, de Warren Ellis e J. H. Williams III; quadrinho publicado em 2005 pela WildStorm, mas que em dezembro próximo mudará de casa e ganhará uma reedição especial pela Image Comics.

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Continuando. O tal distrito é administrado por Jeronimus, um ex-agente da C.I.A considerado uma obra-prima cirúrgica: ele só precisa comer quatro vezes ao ano. Porém, quando precisa fazê-lo, tem que ingerir muita proteína. Grandes quantidades de proteína! Muita carne! O que ele faz? Ora, vai a uma região de UFOs, com histórico de sacrifícios massivos de vacas, e come carne na floresta. Por conta disso, é o único com permissão para sair dos limites de L.A – sob permanente vigilância armada, é claro.

O mesmo Jeronimus é uma espécie de empresário de Jones, que lhe arruma serviços de detetive dentro da comunidade. Eventualmente, também é assessorado por sua vizinha, Robina, capaz de improvisar e bolar qualquer tipo de situação, às vezes como uma “Q” baixa renda, quase sempre como um ombro amigo. Como disse, Jones é um investigador que presta serviços exclusivamente para os membros de sua comunidade. Certa feita, ele recebe o chamado de um velho coronel para investigar o furto de um vídeo pornô de sua propriedade, produzido, dirigido e estrelado por ninguém menos que Adolf Hitler.

A partir daí, o trabalho toma corpo quando começa a buscar informações nos últimos degraus do underground los angeleno. É nessa busca que somos apresentados a personagens ainda mais intrigantes. A começar por Filthy Sanchez, dona de uma loja que comercializa todo tipo de fitas pornô. Cercada de sodomitas, quando questionada por Jones sobre o tal “Santo Graal da Sacanagem Cinematográfica”, vira a casaca e tenta obtê-la para si própria.

E o que dizer de Emily Crowe? Uma ex-agente que também vive em exílio na cidade, mas sua condição por si só já funciona como cárcere. Seus atributos especiais? Ela deveria ser a femme fatale definitiva com o poder de superproduzir feromônios sexuais. Não funcionou, aliás, tal como Jones, o que aconteceu foi justo o inverso. Quem se aproxima dela sente medo e repulsa; algo indescritivelmente perturbador. A solidão que isso lhe resulta é patente. Apena Jones é imune aos seus dons e, obviamente, o único que tem contato físico com ela. Aliás, chega a ser tocante quando ela lhe implora para que fique em sua casa por pelo menos mais uma hora.

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Uma sequência em especial chama a atenção no gibi:

Durante a busca, Jones topa com uma atriz pornô veterana defendendo uma novata que está com alguma infecção. Ela se chama Nicole, tem 27 anos, e numa conversa de bar, acaba fazendo um verdadeiro check-in da profissão, relatando o cotidiano dessa indústria ao detetive. São seis páginas difíceis. No nível do texto bruto, a cena em si já é pouco convencional, mas ela é levada para outro nível graças à arte de J. H. Williams III e as cores de José Villarrubia; que confere as visões de Jones – consequências do experimento – algo que se pode ser comparada com as alucinações despertas de Rust Cohle em True Detective. As visões mais comuns são os anjos perdidos de Los Angeles, uma espécie de sensibilidade ao ambiente.

Assim, Jones tem delírios da garota emulando tudo que acabara de falar. Em alguns casos, a coisa é brutal, em outros, degradante num nível que faz Black Kiss de Howard Chaykin parecer um gibi carola. Piora quando você não resiste e acaba fazendo uma leitura anacrônica, trazendo o recente retrospecto de Warren Ellis para dentro das páginas. Quer dizer, em 2005, tínhamos apenas uma passagem excêntrica do celebrado escritor de Authority e Planetary, mas, em 2024, a coisa soa como se ele já estivesse transparecendo alguns fetiches e temas aos quais tinha interesse.

Enfim, não digo isso como alguém puritano, censurando uma obra ficcional. Longe de mim, porém, me pergunto se interessa ao Ellis desengavetar Desolation Jones em um momento onde sua presença (virtual) vem sendo retomada de forma discreta, passando longe de qualquer vespeiro. Afinal, o tribunal da internet não está para brincadeira, e de tão ameaçador, passamos do paradigma de um “SE” hipotético para a certeza do “QUANDOteremos outro Ed Piskor.

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Voltando aos desenhos do gibi, gostaria de dizer que nada contra John Cassaday, o vencedor do Eisner Awards 2006[2], mas o grande vencedor moral naquela sexta-feira do dia 21 de julho de 2006 foi J. H. Williams III. A sinergia do traço meticuloso em mosaico conferiu gradações oníricas únicas ao texto ácido de Warren Ellis. Só não digo que foi um casamento perfeito, porque o artista tem um fraco notável para roteiristas ingleses; vide sua excelência em Promethea (Alan Moore) e Sandman Prelúdio (Neil Gaiman).

No mais, me parece que Desolation Jones é um trabalho desconhecido, mas – mesmo na releitura - o julgo como um dos melhores que já li de ambos os autores. É uma verdadeira dedada no olho.

 

Outro detalhe interessante: Michael Jones parece que foi forjado sob encomenda para um dia ser vivido por Hugh Laurie. A semelhança é tanta – devido ao uso imoderado de ácidos para aliviar as alucinações -, que em dado momento, o tradicional Vicodin do mau bom doutor é até citado. Outros pontos de convergência entre Gregory House e Mike são: a indisfarçável fragilidade física e o fato que ambos estão cagando para o mundo.

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“Cavalheiros ingleses sempre deixam suas acompanhantes bêbadas e chapadas. É a única maneira de fazermos as pessoas dormirem conosco” (JONES, Michael). 


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[1] Uma condição que, em certa medida, me lembrou o agente Holden Carver, de Sleeper. No entanto, Jones ficou bem mais sequelado que o personagem de Ed Brubaker e Sean Phillips; dormindo, se tanto, apenas uma hora por noite e, embora imune a dor, seu sistema imunológico é uma porcaria. Tanto é que antes um beberrão inveterado, agora ele poderia sofrer um choque tóxico se tomasse uma gota sequer de álcool.

[2] Aliás, nessa época, o Cassaday foi tricampeão do Eisner Awards na Categoria Desenhista/Arte-Finalista, conquistando o troféu nos anos de 2004, 2005 e 2006.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

O SUPERMAN DE CADA UM

Se alguma vez tivéssemos de lidar com um incêndio, eu salvaria a capa do Superman de Christopher Reeve e o cartaz autografado que ficam no lobby de casa. Uma vez seguros, eu correria de volta para dentro e ajudaria minha esposa e filhos.”[1]

Esse trecho acima é só uma pequena amostra da devoção que o Mark Millar tem com o Homem de Aço. Na verdade, além dessa memorabilia milionária, ele diz ter em seu acervo o gatinho que personagem salvou no comecinho do filme de 78. “Gatinho?”, você me pergunta. Sim, o gatinho original... empalhado. Excentricidades à parte, no posfácio do encadernado de Wanted, o escritor resgata uma memória da infância e relembra de onde surgiu a história de Wesley Gibson. Para encurtar a conversa, ele diz que nos seus cinco anos de idade, afanou da minibiblioteca nos fundos da sala de aula, um livro capa dura sobre os Estados Unidos.

Revela que a imagem da Estátua da Liberdade o enfeitiçou e, ainda que não tivesse nada a ver com o Super, isso o levou longe: “[...] foi uma experiência tão grandiosa e transformadora quanto o momento em que Moisés, rumo a sei lá onde no deserto (histórias em quadrinhos cativavam muito mais o meu interesse que o Velho Testamento) recebe um telefonema divino transmitido por um arbusto em chamas. Eram tempos de vacas magras e pessoas, literalmente, magras, já que a população escocesa – segundo ele – era àquela altura a que tinha o mais baixo índice de obesidade do mundo ocidental. Sequer havia TV a cabo no Reino Unido, então todo o entretenimento que se tinha, você valorizava ao máximo.

E o tal livro sobre um país rico e moderno, lar do super-herói favorito, atiçou sua imaginação: O que aconteceu com o Superman? Por que a gente ainda vê desastres aéreos nos noticiários? Por que acontecem terremotos? Se o Superman é o maior herói norte-americano, por que não ajuda as pessoas na vida real, como faz nos gibis?”. Esses questionamentos foram regurgitados para Bobby, o irmão mais velho (17)[2], que em tom de troça lhe devolve como trágicos esclarecimentos: O que aconteceu com o Superman? Você nem ficou sabendo? Superman desapareceu depois de uma batalha colossal contra os supervilões. Superman, Batman, Homem-Aranha, Capitão América, Mulher-Maravilha... todos eles sumiram em meio a esse terrível conflito e nunca mais foram vistos novamente”. Desolado, o pequeno Mark virou pro lado e tentou dormir, porém, lhe restou uma pergunta sem resposta: “E o que aconteceu com os supervilões?.

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Corta para 2004. Millar tem 34 anos de idade. No final da segunda edição de Wanted, o Professor Solomon Seltzer responde as dúvidas de Wesley, explicando como os vilões eliminaram toda a comunidade super-heroica em 1986. O jovem Matador fica incrédulo por não existir qualquer resquício dessa Era e, claro, por que ninguém tem memórias disso. O cientista fala que não era o bastante derrota-los, eles queriam apagar qualquer lembrança dos civis sobre os super-heróis. Para tanto, tinham tecnologia e pessoal para reescrever a realidade. Mais que isso: "Nós temos duendes da sétima dimensão e supercomputadores extraterrestres em nossas fileiras, sabia? Se nos mantivermos sempre unidos, nada jamais será impossível pra nós". No fim, Seltzer  mostra ao rapaz a capa do que parecia ser o Superman dali, a prova cabal daquela vitória arrasadora.

Corta para 2024. Millar tem 54 anos de idade e, tal como o vilão acima, tem uma capa do azulão como prova de que venceu na vida, fez fortuna[3] e se tornou um dos únicos profissionais da indústria que diz publicamente que só trabalha com quadrinhos por amor à mídia. Hoje em dia, aparentemente, com muito tempo livre[4], o escritor tem uma forte presença no Twitter/X e adora jogar conversa fora com gente do meio no seu canal de You Tube.

Mais que isso, vive cornetando às duas editoras majors com soluções para resolver o declínio do mercado direto; que, segundo ele, sofreria uma revolução caso houvesse uma distribuição (séria) de royalties e, claro, remunerasse melhor os artistas, em especial os que ganham destaque e viram os favoritos dos leitores. Não bastasse isso, vinha alardeando que gostaria de voltar à DC Comics para fazer um projeto com o Superman, sem falar os momentos em que se porta como um mero fã, pedindo que algo do seu interesse fosse republicado. Enfim, quase todo dia, o falastrão escocês aparece com pílulas de conhecimento e cascata em proporções iguais; o que ninguém contava é que ele saísse da missa de domingo com uma bomba-relógio como essa:

Sim, a bomba está armada e em menos de uma década, não só Mark Millar, mas o mundo todo poderá publicar seu gibizinho do Superman. Isso, claro, desde que as histórias se atenham aos parâmetros de Action Comics nº 1, de junho de 1938. O que não é pouco. Um bom exemplo do poder de destruição em torno dos elementos da edição que cairá em domínio público reside justamente no relançamento da revista em 2011, quando Grant Morrison[5] fez questão de explorar apenas as ideias contidas ali, do personagem em sua versão 1.0: o imigrante definitivo, o jornalista, o amante platônico e, evidentemente, o street fighting man com superpoderes - porém, àquela altura, ainda desprovido das demais extrapolações sensoriais.

O desafio do atual proprietário do Copyright é usar esse tempo que lhe resta para trabalhar formas que integrem o personagem ainda mais às especificidades do Universo DC. Na prática, isso já está acontecendo bem debaixo dos nossos narizes, ao ampliar o número de produtos culturais onde Clark Kent está associado a outras propriedades intelectuais, numa verdadeira relação sine qua non. O exemplo mais óbvio é o do patriarca de uma superfamília ou as histórias com grande elenco; ou você acredita realmente que todas as participações especiais no vindouro filme de James Gunn são só um capricho pessoal do diretor?

Por outro lado, falando em capricho, o manifesto de intenções só soa inédito para quem chegou agorinha no Millarworld; nesse caso, literalmente. Afinal, ele já assinou diversos roteiros para o personagem, entre eles os elogiados Superman Adventures e Entre a Foice e o Martelo; e extraoficialmente nos autorais Legado de Júpiter, Superior e Huck.

Na verdade, tanto a DC quanto Millar querem a mesma coisa. Um deseja produzir um Superman relevante, que ainda se destaque perante a concorrência; o outro, mesmo tendo realizado tudo e conquistado uma conta bancária invejável, parece saudoso dos tempos em que fora relevante, irreverente e seus quadrinhos não parecessem um looping irrefreável de repetição temas.

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Do lado de cá, se ainda seguir vivo e (ir)relevante, prometo voltar em 2033 para atualizar esse texto. Até lá.

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 Links Afiliados


[1] Postagem de Mark Millar no Facebook no dia 22 de outubro de 2020.

[2] Millar era o caçula de cinco, sendo quatro irmãos e uma irmã.

[3] Não dá para precisar quanto abocanhou na venda de dezessete franquias à Netflix em 2017, porque, obviamente, os valores foram rateados entre vários artistas, mas é seguro dizer que Mark Millar foi quem ficou com a maior fatia dos 25 milhões de libras; ou, vá lá, 31 milhões de dólares americanos.

[5] Amigo, mentor, desafeto e, para piorar, ainda dono do melhor gibi do Super com o Frank Quietely.

quarta-feira, 27 de março de 2024

UM PSICODRAMA

Se você consultar o significado da palavra “psicodrama”, vai encontrar por aí que se trata de uma abordagem terapêutica que explora técnicas teatrais de dramatização. Seria como se o indivíduo, por vezes, paciente de psiquiatras ou psicólogos, fosse o protagonista no centro de um palco. Então, no psicodrama o sujeito revive/recria cenas vivenciadas para que numa eventualidade futura tenha à disposição ferramentas emocionais para lidar com situações problemáticas.

Esse conceito soa como algo moderno e sofisticado, mas a verdade é que o psicodrama já tem quase um século que foi criado pelo romeno Jacob Levy Moreno. Como era médico, filósofo e tinha um fascínio por teatro, ele acabou fazendo um bem bolado das três coisas e tornou-se o primeiro psicodramatista. Hoje é bem corriqueiro ver por aí essa metodologia sendo aplicada dentro de empresas, escolas, workshops e processos seletivos.

(Um) Psicodrama (2001) é também o título de uma historinha do Batman escrita por Alan Grant e desenhada por Charles Adlard,o grande artista por trás de The Walking Dead. Na realidade, o título original acabou sendo preterido pela Mythos Editora em favor de A Maldição de Scarface, publicada em 2002. Nela, Arnold Wesker, o Ventríloquo, se submete a uma sessão de psicodrama com o Doutor Arkham e queima o boneco marionete Scarface. A ideia era sepultar o lado sombrio do interno com aquele ato e neutralizar a personalidade homicida do pequeno mafioso de madeira.

Se isso vai dar certo ou não, é só um mero detalhe sobre o que eu quero abordar no texto de hoje. Para tanto, vamos começar rebobinando um pouco a fita, de 2001 para o comecinho de 1988.

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O trio que sempre foi uma dupla.

A revista Detective Comics vinha mal das pernas. Nesse tempo, o ponto de equilíbrio financeiro de um gibi mensal costumava ser uma vendagem de oitenta mil edições. Um número que hoje nos causa espanto, já que, hoje, ele representaria justo o inverso, catapultando o título para o ranking de mais vendidos nos EUA. Lembrando, claro, que na década de 1980, os quadrinhos ainda não eram vendidos exclusivamente em comic shops e o preço de capa era em torno de $ 0,75. Então, para não dar prejuízo, uma revista tinha que render ao menos sessenta mil dólares aos cofres da DC Comics. Era o limite da degola.

E aí, ali em 1988, a Detective Comics estava no vermelho, com uma vendagem de cerca de setenta e cinco mil edições por mês. Para melhorar as cifras da revista, a solução que o editor Dennis O’Neil chegou foi a mesma que já vinha dando certo dentro da editora: trazer gente de fora dos Estados Unidos[1], com novas ideias e liberdade criativa total. Nesse caso, porém, havia um certo ineditismo, visto que era a primeira vez que um personagem de Série A era transferido aos cuidados de um comando técnico estrangeiro. Logo, a bola da vez recaiu na dupla John Wagner e Alan Grant.

À época, os dois tinham a mesma idade (39) e vinham ganhando uma reputação na 2000 AD, especialmente com o Juiz Dredd, que era criação do Wagner. Não obstante, naqueles onze anos de publicação do personagem, Grant havia colaborado com muitas histórias; daí a parceria deles. De partida, a proposta de O’Neil era que eles fizessem um ano de histórias e depois sentassem juntos para analisar se continuariam a parceria. Wagner estava empolgado com a ideia dos royalties sobre as vendas; porque isso era um conceito mercadológico que não existia na Inglaterra. Quer dizer, não tinha esse romantismo de escrever histórias do Batman, o lance era meramente profissional e estritamente financeiro.

Para compor a equipe artística, eles teriam a arte do novato e autodidata Norm Breyfogle, de 28 anos. Para ser justo, o desenhista já havia trabalhado em três histórias do Batman, antes que os ingleses assumissem os roteiros. A primeira em um back-up dentro de Batman Annual nº 11, edição que ficou marcada pelo conto de Alan Moore com o Cara-de-Barro, muito embora a historinha de Max Allan Collins também tivesse seus momentos. Nela, o Pinguim era um ex-presidiário vivendo um romance com uma mulher que conheceu na sessão de cartas de uma revista de ornitologia.

Já a outra, Detective Comics nº 579, é um barato e traz consigo a versão pós-crise do Doutor do Crime, assinada por Mike W. Barr. Novamente focada em um ex-presidiário, dessa vez, vemos um homem desesperado, sem conseguir prover sua família, negociando o próprio coração para ser transplantado em um mafioso às portas da morte. O tal cirurgião chama-se Dr. Bradford Thorne e, vejam só, protagoniza uma bela adaptação em Batman Animated (S2E25); no qual terá que operar Rupert, o irmão gangster. Assim como no gibi, o enredo da animação também conta com a participação da Dra. Leslie Thompkins, que é coagida a auxiliar Bradford na cirurgia.

A terceira história de Breyfogle pré-Wagner/Grant, Detective Comics nº 582, tem roteiro de Jo Duffy e traz consigo um tie-in da Saga Milênio. A trama se centra em torno de um Caçador de Oa que assume a identidade de Jim Gordon, mas o que me chamou a atenção foi a revelação desse passado do Comissário como oficial da Inteligência – militar ou CIA, já que não é especificado qual agência.

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Time completo. O agora trio começa a trabalhar em Detective Comics nº 583; que, a propósito, estampa uma belíssima capa de Mike Mignola. Nas páginas internas, o choque anafilático vem com cinismo e uma pegada seca, sem arrodeio, um Batman definitivamente “Dreddiano”. Tudo conspirava para ser uma fase inesquecível e será foi, só que, a partir da edição nº 587, a equipe criativa sofreria um grande revés.

Vamos lá... O problema, como disse acima, é que o título estava por baixo e, rapidamente, os roteiristas constatariam que os royalties só seriam dignos de notas – muitas nota$! – caso as vendas aumentassem consideravelmente. E aí, exatamente cinco edições depois da estreia, sem crer que eles receberiam os adicionais, John Wagner dá um passo em falso e sai de Detective Comics. Como o acordo firmado estabelecia que fossem roteiros a quatro mãos, Alan Grant decide encarar sozinho a produção dos textos, ainda que o compatriota não estivesse mais a bordo e tivessem a obrigação contratual de ter os nomes dos dois nos créditos da revista. Então, no papel, a “parceria” Grant e Wagner é levada adiante até o final do primeiro ano da Detective Comics.

No Brasil, até a publicação de Saga do Batman da Panini, a maioria desses números iniciais seguia inédito. Sim, a Editora Abril começa da edição nº 590 e ignora as sete anteriores (583-589); com um detalhe curioso. A capa da 590 tem aquela famosa arte de Breyfogle em que o Batman está de costas, olhando para o relógio Big Ben na torre do Palácio de Westminster, a sede do Parlamento Britânico em Londres.

No entanto, ela não foi aproveitada na edição nacional específica, onde saiu, e, sim, em um encadernado formatinho das Dez Noites da Besta; que, obviamente, não tem nada a ver com a história original do Alan Grant.

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Normalmente, quando leio gibis velhos fico fazendo movimentos de ida e volta. Pego uns lá na frente, depois volto ao começo e, às vezes, me sinto que nem um Chuck Noland e fico parado no meio do caminho, decidindo que direção tomar. Nesse aspecto, parece bobagem, mas eu teria adorado se Saga do Batman tivesse saído seguindo rigorosamente os line-ups de The Dark Knight Detective e The Caped Crusader; o primeiro com as edições de Detective e a segunda com as de Batman.

Na prática, a Panini fez um mix, alternando os materiais de ambas num mesmo volume e sempre de olho na cronologia das duas revistas. Ok. Tudo certo, porém, no alto dos meus quarenta e poucos, acho que já posso me dar ao luxo de algumas excentricidades. Quando leio Detectives, fecho questão com o título e só lerei Detective e o mesmo com Batman. Como disse, isso sou eu complicando o descomplicado, já que se trata de uma época bem acolhedora no sentido de que as histórias eram descompromissadas, sem uma exigência de continuidade que as equipes criativas contemporâneas costumam exigir.

Claro, continuidade no sentido de histórias presas a um arco maior e complexo, contado em runs cada vez mais longos[2]. Com Alan Grant, se muito, você chega a ler uma história que se passa dentro de três ou quatro edições e vida que segue. Fora que esse pequeno arco não trará repercussões ad infinitum, te forçando a ter que voltar ao que já se passou; e se for voltar, o próprio recordatório fará um esforço mínimo e circunstancial para lhe deixar a par do que precisas saber. É assim que eu gosto que seja. É por essas e por outras que essas histórias me marcaram; dos casos à moda O’Neil/Adams, quase como se Grant/Breyfogle fossem os melhores alunos egressos daquela escola setentista.

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Mas voltando àquelas edições iniciais do então trio, a começar por Detective Comics nº 583 (Saga do Batman nº 5), a história mostra o Batman lidando com uma nova droga que caiu no gosto dos adolescentes: a Febre e, que por acaso, é também o nome do arco.

Para ilustrar os efeitos desse narcótico que, segundo relatos, costuma dar um pico forte de euforia e fúria, vemos uns viciados queimando um gato e, logo em seguida, ateiam fogo em um guardinha de rua idoso. O Batman fica perplexo por "crianças" terem cometido tal barbárie; e aí os policiais na cena do crime revelam que essa Febre é a sensação do momento nas ruas. Em outro lugar, descobrimos que o principal distribuidor do entorpecente é um homem chamado Arnold Wesker, ou melhor, o serviçal do fantoche Scarface.

À primeira vista, trata-se de um vilão muito simples que, numa leitura mais lúdica, poderia até ser um análogo do Homem dos Brinquedos, entretanto, Grant/Wagner trabalham maneirismos que mesmerizam até mesmo o leitor. Em outros termos, você chega a ficar em dúvida se o boneco realmente tem vida e Wesker não seria, de fato, um escravo, sobretudo porque Scarface sempre está no centro do palco, tirando do interlocutor no gibi a quebra da suspensão de descrença.

Primeiro que o boneco fala trocando algumas consoantes nas palavras e isso, vamos combinar, torna-se um recurso marcante, que se sobressai a voz vacilante do Ventríloquo. E quando isso não funciona e alguém deixa isso de lado, passando a se dirigir diretamente ao Arnold, o boneco fica consternado e manda que todos voltem a olhar para ele... Porque quem manda é o Scarface, ele é o chefão. E para contrapor essa figura do Wesker, de um homem aparentemente pacato, de certa idade, temos um fantoche endiabrado.

Eis uma pequena demonstração: ao perder uma carga de Febre, ele dá ordens a um capanga obeso para buscar outra fora da cidade. Até aí nem um problema. O problema é que, em off, Scarface ordenou sua morte e quer que usem o cadáver corpulento como mula.  Para tanto, é necessária a extração dos órgãos, vísceras e gordura para arrumar os tijolinhos. É doentio. No fim, o Batman inala um pouco de Febre e solta a mão no Wesker. Na cadeia, enquanto aguarda a transferência para o Arkham, Wesker diz que quer colaborar com a justiça, o que lhe rende, dessa vez, umas belas bofetadas do Scarface.

Em 1992, quando o Alan Grant está cuidando do título Batman, num arco em três partes dentro das edições nº 475-476 e Detective Comics nº 642 (Saga do Batman nº 28), temos A Volta de Scarface. Segundo o boneco, eles foram inocentados por conta de uma tecnicalidade jurídica e agora estão tentando reaver o território que perderam para uma gangue nova. Os DemônioZ da Rua, como se intitulam, metralham o fantoche e o dão como morto, com direito a velório e sepultamento. O que mostra o grau de convencimento que o Arnold Wesker exerce sobre todos ao seu redor; até porque as balas são disparadas em direção ao construto e não ao Ventríloquo. 

No fim da história, Scarface recupera o território e consegue redirecionar o Batman e a polícia para a captura dos rivais. Como disse lá em cima, a primeira história, Febre, era inédita por aqui até Saga do Batman nº 5, mas vejam só, A Volta de Scarface chegou a sair em 1995 dentro de Batman Anual nº 4 da Editora Abril. E isso, vale dizer, já com A Queda do Morcego em curso. Então, o primeiro contato do leitor brasileiro com Ventríloquo/Scarface se deu exatamente na segunda história desses personagens.

Daí em diante, vez ou outra, o Alan Grant traz eles de volta, geralmente, num contexto em que: ou 1) os dois estão separados; ou 2) Wesker tenta se curar e acaba esbarrando no carma de Michael Corleone. Por sinal, uma das passagens mais doentias dos “dois” se dá em Queda do Morcego, quando Wesker está sem o boneco e aí improvisa um fantoche de meia. No entanto, quando o boneco mafioso é recuperado, o substituto e o original trocam farpas entre si até que um atira no outro! No último quadro, vemos Wesker inconsciente com as duas mãos estraçalhadas (Detective Comics nº 664):

Mais adiante em Filho Pródigo, quando Dick Grayson se torna momentaneamente o Batman, ele prende Wesker que, evidentemente, sobreviveu. Antes de ser preso, ele deixa um livro de ventriloquismo para Rino, seu fiel leão de chácara, aprender a cuidar do Scarface. Isso lá em Shadow of the Bat nº 32, de 1994. Essa história só teria sequência em Shadow nº 59 e 60, de 1997, ocasião em que Alan Grant resolveu revelar um trauma da infância de Wesker em torno do pássaro albatroz. É dito que na manhã que os pais foram atropelados, eles haviam acabado de ver essa ave[3].

Em paralelo, vemos Rino quebrando a cabeça para aprender ventriloquismo e dando um jeito de libertar o Wesker de Blackgate. Quando se reúnem, o Scarface quer encontrar um albatroz que foi avistado sobrevoando Gotham e fazer com que Wesker quebre seu pescoço, superando, por fim, aquele trauma. É mais ou menos um psicodrama, o que nos leva de volta à Maldição de Scarface.

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Como disse no início, o Doutor Arkham dá uma de psicodramatista e faz com que Wesker queime Scarface para, vamos dizer, incinerar seu lado sombrio. Mas aí é que está, nas histórias anteriores, a suposição que fazíamos é que a marionete era apenas o conduíte da loucura do Ventríloquo e ele, por seu turno, era a mente criminosa por trás da dupla. Só que aqui nesse especial, Alan Grant conta a origem do fantoche e insere um componente sobrenatural nessa relação homem versus boneco: a madeira ao qual foi esculpido era amaldiçoada.

Explica-se em flashback que na prisão Black Gate havia uma forca nos arredores da penitenciaria onde 313 prisioneiros foram executados. A contagem só parou porque um raio destruiu a estrutura de madeira, deixando apenas um toquinho no chão. Dá para supor também que, em algum momento, a pena de morte foi revogada, enfim... É a lacuna do texto que nos deixa livres para especular e discutir. O fato é que, não muito tempo depois, um preso chamado Donnegan pegou aqueles restos e esculpiu um bonequinho, o qual batizou como Tronquinho. O guarda que está com ele chaga a alertá-lo que nada de bom sairia daquela matéria-prima, já que Deus tinha virado as costas para todas aquelas almas.

Mais tarde, descobrimos que o companheiro de cela de Donnegan é ninguém menos que Arnold Wesker. E aí nos momentos em que o escultor dorme, Tronquinho conversa com o seu futuro cúmplice. A princípio, o próprio Wesker acredita que aquilo é uma voz projetada e está sendo tapeado por truques de ventriloquismo. Isso escalona de um jeito que ele acaba matando Donnegan e mais dois guardas, fugindo logo em seguida. Nesse ponto, o fantoche pede para que, dali em diante, fosse chamado de Scarface.

Nada disso dá indícios ainda que exista algo de paranormal naquela relação. Isso só viria à tona a partir daquela sessão de psicodrama, quando o boneco fora queimado. Ou melhor, logo após, quando a pira vira e o boneco cai no despenhadeiro rumo ao mar. Lá embaixo, dois amigos estão pescando e confundem Scarface com um bebê se afogando; quando um deles vai tentar salvá-la, ele dá um escorregão, bate a cabeça numa pedra e morre:

No outro dia, um menino que sofre bullying na escola e está ali na praia com os pais, acha o boneco e decide ficar com ele. Da mesma forma que o pescador morto, Scarface vai trazer mau agouro para aquela criança e passará de mão em mão até que, fatalmente, regressará às mãos de Arnold Wesker; que, naquele instante, estava em liberdade e fazendo shows como ventríloquo, agora com Lola, uma boneca – supostamente – "inofensiva".

Curiosamente, na série animada dos anos noventa, no episódio Double Talk (S3E4) – ou Identidade Dupla –, assistimos também a libertação e reintegração do Ventríloquo à sociedade, inclusive trabalhando como mensageiro nas indústrias Wayne. Não obstante, Rino e os antigos associados trabalham para que Scarface retorne e tentam a qualquer custo sabotar a sanidade do ex-interno do Arkham. Ao contrário de A Maldição de Scarface, o final da animação é feliz e Wesker se liberta dessa praga... ou seria pesadelo?!

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A preço de hoje, dá até para fazer uma rima de Scarface com a boneca Annabelle, e mesmo com o sobrenatural instalado, creio que o leitor sempre ficará desconfiado se aquilo tudo não é só coisa da cabeça de Arnold Wesker. Eu prefiro que seja assim, a boa e velha loucura ditando os passos dos melhores vilões do morcego; e, se não ficou claro, adoro esses dois porque pertencem a uma safra em extinção. De antagonistas pequenos, que não têm a pretensão de destruir Gotham ou ser só análogos negativos do herói.

A própria estranheza deles já era o ingrediente perfeito para boas trocas com o Batman.



[1] Os estudiosos das Histórias em Quadrinhos chamaram essa iniciativa de Invasão Britânica. Alan Moore teria sido o primeiro com Monstro do Pântano, Grant Morrison com Homem-Animal, Neil Gaiman com Orquídea Negra e, consequentemente, com Sandman, etc.

[2] Por exemplo, a fase de Tom King na mensal Batman teve ao todo 85 edições + 12 edições da minissérie Batman/Mulher-Gato. Tudo é umbilicalmente interligado, de modo que o leitor precisa mesmo ler todos os números para saber onde a história vai desembocar. Se ela desembocou ou não, aí são outros quinhentos.

[3] Essas histórias saíram no Brasil na 5ª série do Batman nas edições nº 1 e 23 (Abril). Mais especificamente, aquela coleção pós-Zero Hora.