Mike
Jones era
um agente do MI6 que exagerava tanto na bebida que, vire e mexe, acabava se voluntariando
como cobaia em experimentos obscuros. O motivo? Fugir do trabalho para passar semanas
de molho, apenas dormindo. Entretanto, um dos testes fez exatamente o oposto:
privou-lhe do sono por um ano e, de quebra, o deixou parcialmente sem sentidos[1],
sem pigmentação da pele e alérgico à luz solar.
Isso foi há
alguns anos. Hoje, Mike faz parte de uma comunidade de operativos clandestinos,
muitos dos quais também envolvidos em procedimentos similares, confinados na
área que as autoridades de Los Angeles apelidaram de “Cidades dos Espiões”,
mantendo-a selada e legalmente invisível. Essa seria, digamos, a origem secreta
do protagonista de Desolation Jones, de Warren Ellis e J. H. Williams
III; quadrinho publicado em 2005 pela WildStorm, mas que em dezembro próximo
mudará de casa e ganhará uma reedição especial pela Image Comics.
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Continuando.
O tal distrito é administrado por Jeronimus, um ex-agente da C.I.A
considerado uma obra-prima cirúrgica: ele só precisa comer quatro vezes ao ano.
Porém, quando precisa fazê-lo, tem que ingerir muita proteína. Grandes
quantidades de proteína! Muita carne! O que ele faz? Ora, vai a uma região de
UFOs, com histórico de sacrifícios massivos de vacas, e come carne na floresta.
Por conta disso, é o único com permissão para sair dos limites de L.A – sob
permanente vigilância armada, é claro.
O mesmo
Jeronimus é uma espécie de empresário de Jones, que lhe arruma serviços de
detetive dentro da comunidade. Eventualmente, também é assessorado por sua
vizinha, Robina, capaz de improvisar e bolar qualquer tipo de situação, às
vezes como uma “Q” baixa renda, quase sempre como um ombro amigo. Como disse,
Jones é um investigador que presta serviços exclusivamente para os membros de
sua comunidade. Certa feita, ele recebe o chamado de um velho coronel para
investigar o furto de um vídeo pornô de sua propriedade, produzido, dirigido e
estrelado por ninguém menos que Adolf Hitler.
A partir
daí, o trabalho toma corpo quando começa a buscar informações nos últimos
degraus do underground los angeleno. É nessa busca que somos apresentados a
personagens ainda mais intrigantes. A começar por Filthy Sanchez, dona
de uma loja que comercializa todo tipo de fitas pornô. Cercada de sodomitas,
quando questionada por Jones sobre o tal “Santo Graal da Sacanagem
Cinematográfica”, vira a casaca e tenta obtê-la para si própria.
E o que
dizer de Emily Crowe? Uma ex-agente que também vive em exílio na cidade,
mas sua condição por si só já funciona como cárcere. Seus atributos especiais?
Ela deveria ser a femme fatale definitiva com o poder de superproduzir feromônios
sexuais. Não funcionou, aliás, tal como Jones, o que aconteceu foi justo o
inverso. Quem se aproxima dela sente medo e repulsa; algo indescritivelmente
perturbador. A solidão que isso lhe resulta é patente. Apena Jones é imune aos
seus dons e, obviamente, o único que tem contato físico com ela. Aliás, chega a
ser tocante quando ela lhe implora para que fique em sua casa por pelo menos
mais uma hora.
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Uma sequência em especial
chama a atenção no gibi:
Durante a
busca, Jones topa com uma atriz pornô veterana defendendo uma novata que está
com alguma infecção. Ela se chama Nicole, tem 27 anos, e numa conversa de bar,
acaba fazendo um verdadeiro check-in da profissão, relatando o cotidiano dessa
indústria ao detetive. São seis páginas difíceis. No nível do texto bruto, a cena em si já é pouco
convencional, mas ela é levada para outro nível graças à arte de J. H. Williams
III e as cores de José Villarrubia; que confere as visões de Jones –
consequências do experimento – algo que se pode ser comparada com as
alucinações despertas de Rust Cohle em True Detective. As visões mais comuns
são os anjos perdidos de Los Angeles, uma espécie de sensibilidade ao ambiente.
Assim, Jones
tem delírios da garota emulando tudo que acabara de falar. Em alguns casos, a
coisa é brutal, em outros, degradante num nível que faz Black Kiss de Howard
Chaykin parecer um gibi carola. Piora quando você não resiste e acaba fazendo
uma leitura anacrônica, trazendo o recente retrospecto de Warren Ellis para dentro das páginas. Quer dizer, em 2005,
tínhamos apenas uma passagem excêntrica do celebrado escritor de Authority e
Planetary, mas, em 2024, a coisa soa como se ele já estivesse transparecendo alguns
fetiches e temas aos quais tinha interesse.
Enfim, não
digo isso como alguém puritano, censurando uma obra ficcional. Longe de mim, porém,
me pergunto se interessa ao Ellis desengavetar Desolation Jones em um momento onde
sua presença (virtual) vem sendo retomada de forma discreta, passando longe de
qualquer vespeiro. Afinal, o tribunal da internet não está para brincadeira, e
de tão ameaçador, passamos do paradigma de um “SE” hipotético para a certeza
do “QUANDO” teremos outro Ed Piskor.
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Voltando aos
desenhos do gibi, gostaria de dizer que nada contra John Cassaday, o vencedor
do Eisner Awards 2006[2],
mas o grande vencedor moral naquela sexta-feira do dia 21 de julho de 2006 foi
J. H. Williams III. A sinergia do traço meticuloso em mosaico conferiu
gradações oníricas únicas ao texto ácido de Warren Ellis. Só não digo que foi
um casamento perfeito, porque o artista tem um fraco notável para roteiristas
ingleses; vide sua excelência em Promethea (Alan Moore) e Sandman Prelúdio (Neil
Gaiman).
No mais, me parece
que Desolation Jones é um trabalho desconhecido, mas – mesmo na releitura - o
julgo como um dos melhores que já li de ambos os autores. É uma verdadeira
dedada no olho.
Outro
detalhe interessante: Michael Jones parece que foi forjado sob encomenda para
um dia ser vivido por Hugh Laurie. A semelhança é tanta – devido ao uso
imoderado de ácidos para aliviar as alucinações -, que em dado momento, o tradicional
Vicodin do mau bom doutor é até citado. Outros pontos de convergência
entre Gregory House e Mike são: a indisfarçável fragilidade física e o fato que
ambos estão cagando para o mundo.
***
“Cavalheiros
ingleses sempre deixam suas acompanhantes bêbadas e chapadas. É a única maneira
de fazermos as pessoas dormirem conosco” (JONES, Michael).
***
Link Afiliado
[1] Uma condição que, em certa medida, me
lembrou o agente Holden Carver, de Sleeper. No entanto, Jones ficou bem mais sequelado
que o personagem de Ed Brubaker e Sean Phillips; dormindo, se tanto, apenas uma
hora por noite e, embora imune a dor, seu sistema imunológico é uma porcaria.
Tanto é que antes um beberrão inveterado, agora ele poderia sofrer um choque
tóxico se tomasse uma gota sequer de álcool.
[2] Aliás, nessa época, o Cassaday foi
tricampeão do Eisner Awards na Categoria Desenhista/Arte-Finalista, conquistando
o troféu nos anos de 2004, 2005 e 2006.
“Se alguma vez tivéssemos de lidar com um
incêndio, eu salvaria a capa do Superman de Christopher Reeve e o cartaz
autografado que ficam no lobby de casa. Uma vez seguros, eu correria de volta
para dentro e ajudaria minha esposa e filhos.”[1]
Esse
trecho acima é só uma pequena amostra da devoção que o Mark Millar tem com o
Homem de Aço. Na verdade, além dessa memorabilia milionária, ele diz ter em seu
acervo o gatinho que personagem salvou no comecinho do filme de 78. “Gatinho?”,
você me pergunta. Sim, o gatinho original... empalhado. Excentricidades à parte, no
posfácio do encadernado de Wanted, o escritor resgata uma memória da infância e
relembra de onde surgiu a história de Wesley Gibson. Para encurtar a conversa,
ele diz que nos seus cinco anos de idade, afanou da minibiblioteca nos fundos
da sala de aula, um livro capa dura sobre os Estados Unidos.
Revela
que a imagem da Estátua da Liberdade o enfeitiçou e, ainda que não tivesse nada
a ver com o Super, isso o levou longe: “[...] foi uma experiência tão grandiosa e transformadora quanto o momento em
que Moisés, rumo a sei lá onde no deserto (histórias em quadrinhos cativavam
muito mais o meu interesse que o Velho Testamento) recebe um telefonema divino
transmitido por um arbusto em chamas”. Eram tempos de vacas magras e
pessoas, literalmente, magras, já que a população escocesa – segundo ele – era àquela
altura a que tinha o mais baixo índice de obesidade do mundo ocidental. Sequer
havia TV a cabo no Reino Unido, então todo o entretenimento que se tinha, você
valorizava ao máximo.
E
o tal livro sobre um país rico e moderno, lar do super-herói favorito, atiçou
sua imaginação: “O que aconteceu com o
Superman? Por que a gente ainda vê desastres aéreos nos noticiários? Por que
acontecem terremotos? Se o Superman é o maior herói norte-americano, por que não
ajuda as pessoas na vida real, como faz nos gibis?”. Esses questionamentos foram
regurgitados para Bobby, o irmão mais velho (17)[2], que em tom de troça lhe
devolve como trágicos esclarecimentos:“O que
aconteceu com o Superman? Você nem ficou sabendo? Superman desapareceu depois
de uma batalha colossal contra os supervilões. Superman, Batman, Homem-Aranha,
Capitão América, Mulher-Maravilha... todos eles sumiram em meio a esse terrível
conflito e nunca mais foram vistos novamente”. Desolado, o pequeno Mark
virou pro lado e tentou dormir, porém, lhe restou uma pergunta sem resposta: “E o que aconteceu com os supervilões?”.
***
Corta
para 2004. Millar tem 34 anos de idade. No final da segunda edição de Wanted, o
Professor Solomon Seltzer responde as dúvidas de Wesley, explicando como os
vilões eliminaram toda a comunidade super-heroica em 1986. O jovem Matador fica
incrédulo por não existir qualquer resquício dessa Era e, claro, por que
ninguém tem memórias disso. O cientista fala que não era o bastante
derrota-los, eles queriam apagar qualquer lembrança dos civis sobre os
super-heróis. Para tanto, tinham tecnologia e pessoal para reescrever a
realidade. Mais que isso: "Nós
temos duendes da sétima dimensão e supercomputadores extraterrestres em nossas
fileiras, sabia? Se nos mantivermos sempre unidos, nada jamais será impossível
pra nós". No fim, Seltzermostra ao rapaz a capa do que parecia ser o Superman dali, a prova cabal
daquela vitória arrasadora.
Corta
para 2024. Millar tem 54 anos de idade e, tal como o vilão acima, tem uma capa
do azulão como prova de que venceu na vida, fez fortuna[3] e se tornou um dos únicos profissionais
da indústria que diz publicamente que só trabalha com quadrinhos por amor à
mídia. Hoje em dia, aparentemente, com muito tempo livre[4], o escritor tem uma forte
presença no Twitter/X e adora jogar conversa fora com gente do meio no seu canal de You Tube.
Mais que
isso, vive cornetando às duas editoras majors com soluções para resolver
o declínio do mercado direto; que, segundo ele, sofreria uma revolução caso
houvesse uma distribuição (séria) de royalties e, claro, remunerasse melhor os artistas, em especial os que ganham destaque e viram os favoritos dos leitores. Não bastasse isso, vinha alardeando que gostaria de voltar à
DC Comics para fazer um projeto com o Superman, sem falar os momentos em que se
porta como um mero fã, pedindo que algo do seu interesse fosse republicado. Enfim, quase todo dia, o falastrão escocês aparece com pílulas de conhecimento e cascata em proporções iguais; o que ninguém contava é que ele saísse da missa de domingo com uma bomba-relógio como essa:
Sim, a bomba está armada e em menos de uma década, não só Mark Millar, mas o mundo todo
poderá publicar seu gibizinho do Superman. Isso, claro, desde que as histórias se
atenham aos parâmetros de Action Comics nº 1, de junho de 1938. O que não é
pouco. Um bom exemplo do poder de destruição em torno dos elementos da edição que
cairá em domínio público reside justamente no relançamento da revista em 2011,
quando Grant Morrison[5] fez questão de explorar
apenas as ideias contidas ali, do personagem em sua versão 1.0: o imigrante definitivo, o jornalista, o amante platônico e, evidentemente, o street fighting mancom superpoderes - porém, àquela altura, ainda desprovido das demais extrapolações sensoriais.
O
desafio do atual proprietário do Copyright é usar esse tempo que lhe resta para
trabalhar formas que integrem o personagem ainda mais às especificidades do
Universo DC. Na prática, isso já está acontecendo bem debaixo dos nossos
narizes, ao ampliar o número de produtos culturais onde Clark Kent está associado
a outras propriedades intelectuais, numa verdadeira relação sine qua non. O exemplo
mais óbvio é o do patriarca de uma superfamília ou as histórias com grande elenco; ou você acredita realmente que todas as participações especiais no
vindouro filme de James Gunn são só um capricho pessoal do diretor?
Por
outro lado, falando em capricho, o manifesto de intenções só soa inédito para
quem chegou agorinha no Millarworld; nesse caso, literalmente. Afinal, ele já
assinou diversos roteiros para o personagem, entre eles os elogiados Superman
Adventures e Entre a Foice e o Martelo; e extraoficialmente nos autorais Legado
de Júpiter, Superior e Huck.
Na
verdade, tanto a DC quanto Millar querem a mesma coisa. Um deseja produzir um
Superman relevante, que ainda se
destaque perante a concorrência; o outro, mesmo tendo realizado tudo e
conquistado uma conta bancária invejável, parece saudoso dos tempos em que fora
relevante, irreverente e seus
quadrinhos não parecessem um looping irrefreável de repetição temas.
***
Do
lado de cá, se ainda seguir vivo e (ir)relevante, prometo voltar em 2033 para
atualizar esse texto. Até lá.
[2] Millar era o caçula de cinco, sendo quatro
irmãos e uma irmã.
[3]Não dá para
precisar quanto abocanhou na venda de dezessete franquias à Netflix em 2017,
porque, obviamente, os valores foram rateados entre vários artistas, mas é
seguro dizer que Mark Millar foi quem ficou com a maior fatia dos 25
milhões de libras; ou, vá lá, 31 milhões de dólares americanos.
Se você
consultar o significado da palavra “psicodrama”, vai encontrar por aí
que se trata de uma abordagem terapêutica que explora técnicas teatrais de
dramatização. Seria como se o indivíduo, por vezes, paciente de psiquiatras ou
psicólogos, fosse o protagonista no centro de um palco. Então, no psicodrama o
sujeito revive/recria cenas vivenciadas para que numa eventualidade futura tenha
à disposição ferramentas emocionais para lidar com situações problemáticas.
Esse conceito
soa como algo moderno e sofisticado, mas a verdade é que o psicodrama já tem
quase um século que foi criado pelo romeno Jacob Levy Moreno. Como era médico,
filósofo e tinha um fascínio por teatro, ele acabou fazendo um bem bolado das
três coisas e tornou-se o primeiro psicodramatista. Hoje é bem corriqueiro ver
por aí essa metodologia sendo aplicada dentro de empresas, escolas, workshops
e processos seletivos.
(Um) Psicodrama
(2001) é também o título de uma historinha do Batman escrita por Alan Grant e
desenhada por Charles Adlard,o grande artista por trás de The Walking Dead. Na
realidade, o título original acabou sendo preterido pela Mythos Editora em
favor de A Maldição de Scarface, publicada em 2002. Nela, Arnold Wesker,
o Ventríloquo, se submete a uma sessão de psicodrama com o Doutor Arkham e
queima o boneco marionete Scarface. A ideia era sepultar o lado sombrio do interno com aquele ato e neutralizar a personalidade homicida do pequeno mafioso
de madeira.
Se isso vai
dar certo ou não, é só um mero detalhe sobre o que eu quero abordar no texto de
hoje. Para tanto, vamos começar rebobinando um pouco a fita, de 2001 para o
comecinho de 1988.
***
O trio que sempre foi uma dupla.
A revista Detective
Comics vinha mal das pernas. Nesse tempo, o ponto de equilíbrio financeiro de
um gibi mensal costumava ser uma vendagem de oitenta mil edições. Um número que
hoje nos causa espanto, já que, hoje, ele representaria justo o inverso,
catapultando o título para o ranking de mais vendidos nos EUA. Lembrando,
claro, que na década de 1980, os quadrinhos ainda não eram vendidos
exclusivamente em comic shops e o preço de capa era em torno de $ 0,75. Então,
para não dar prejuízo, uma revista tinha que render ao menos sessenta mil
dólares aos cofres da DC Comics. Era o limite da degola.
E aí, ali em
1988, a Detective Comics estava no vermelho, com uma vendagem de cerca de
setenta e cinco mil edições por mês. Para melhorar as cifras da revista, a
solução que o editor Dennis O’Neil chegou foi a mesma que já vinha dando
certo dentro da editora: trazer gente de fora dos Estados Unidos[1],
com novas ideias e liberdade criativa total. Nesse caso, porém, havia um certo
ineditismo, visto que era a primeira vez que um personagem de Série A era
transferido aos cuidados de um comando técnico estrangeiro. Logo, a bola da vez
recaiu na dupla John Wagner e Alan Grant.
À época, os dois
tinham a mesma idade (39) e vinham ganhando uma reputação na 2000 AD, especialmente
com o Juiz Dredd, que era criação do Wagner. Não obstante, naqueles onze anos
de publicação do personagem, Grant havia colaborado com muitas histórias; daí a
parceria deles. De partida, a proposta de O’Neil era que eles fizessem um ano
de histórias e depois sentassem juntos para analisar se continuariam a parceria.
Wagner estava empolgado com a ideia dos royalties sobre as vendas; porque isso
era um conceito mercadológico que não existia na Inglaterra. Quer dizer, não tinha
esse romantismo de escrever histórias do Batman, o lance era meramente
profissional e estritamente financeiro.
Para compor
a equipe artística, eles teriam a arte do novato e autodidata Norm Breyfogle, de 28 anos. Para ser
justo, o desenhista já havia trabalhado em três histórias do Batman, antes que os
ingleses assumissem os roteiros. A primeira em um back-up dentro de Batman
Annual nº 11, edição que ficou marcada pelo conto de Alan Moore com o Cara-de-Barro,
muito embora a historinha de Max Allan Collins também tivesse seus momentos. Nela, o Pinguim
era um ex-presidiário vivendo um romance com uma mulher que conheceu na sessão
de cartas de uma revista de ornitologia.
Já a outra, Detective
Comics nº 579, é um barato e traz consigo a versão pós-crise do Doutor do
Crime, assinada por Mike W. Barr. Novamente focada em um ex-presidiário, dessa
vez, vemos um homem desesperado, sem conseguir prover sua família, negociando o
próprio coração para ser transplantado em um mafioso às portas da morte. O tal cirurgião chama-se Dr. Bradford
Thorne e, vejam só, protagoniza uma bela adaptação em Batman Animated (S2E25);
no qual terá que operar Rupert, o irmão gangster. Assim como no gibi, o
enredo da animação também conta com a participação da Dra. Leslie Thompkins,
que é coagida a auxiliar Bradford na cirurgia.
A terceira
história de Breyfogle pré-Wagner/Grant, Detective Comics nº 582, tem
roteiro de Jo Duffy e traz consigo um tie-in da Saga Milênio. A trama se
centra em torno de um Caçador de Oa que assume a identidade de Jim Gordon, mas
o que me chamou a atenção foi a revelação desse passado do Comissário como oficial da Inteligência – militar ou CIA, já que não é especificado
qual agência.
***
Time
completo. O agora trio começa a trabalhar em Detective Comics nº 583; que,
a propósito, estampa uma belíssima capa de Mike Mignola. Nas páginas internas, o choque anafilático vem com
cinismo e uma pegada seca, sem arrodeio, um Batman definitivamente “Dreddiano”.
Tudo conspirava para ser uma fase inesquecível e será foi, só que, a
partir da edição nº 587, a equipe criativa sofreria um grande revés.
Vamos lá... O
problema, como disse acima, é que o título estava por baixo e, rapidamente, os
roteiristas constatariam que os royalties só seriam dignos de notas – muitas
nota$! – caso as vendas aumentassem consideravelmente. E aí, exatamente cinco
edições depois da estreia, sem crer que eles receberiam os adicionais, John
Wagner dá um passo em falso e sai de Detective Comics. Como o acordo firmado
estabelecia que fossem roteiros a quatro mãos, Alan Grant decide encarar
sozinho a produção dos textos, ainda que o compatriota não estivesse mais a
bordo e tivessem a obrigação contratual de ter os nomes dos dois nos créditos
da revista. Então, no papel, a “parceria” Grant e Wagner é levada adiante até o
final do primeiro ano da Detective Comics.
No Brasil,
até a publicação de Saga do Batman da Panini, a maioria desses números iniciais
seguia inédito. Sim, a Editora Abril começa da edição nº 590 e ignora as sete
anteriores (583-589); com um detalhe curioso. A capa da 590 tem aquela famosa
arte de Breyfogle em que o Batman está de costas, olhando para o relógio Big
Ben na torre do Palácio de Westminster, a sede do Parlamento Britânico em
Londres.
No entanto, ela
não foi aproveitada na edição nacional específica, onde saiu, e, sim, em um encadernado formatinho das Dez Noites da Besta; que, obviamente, não tem nada a ver com a história
original do Alan Grant.
***
Normalmente,
quando leio gibis velhos fico fazendo movimentos de ida e volta. Pego uns lá na
frente, depois volto ao começo e, às vezes, me sinto que nem um Chuck Noland e fico parado no meio do caminho, decidindo que direção tomar. Nesse aspecto,
parece bobagem, mas eu teria adorado se Saga do Batman tivesse saído seguindo
rigorosamente os line-ups de The Dark Knight Detective e The Caped Crusader; o
primeiro com as edições de Detective e a segunda com as de Batman.
Na prática,
a Panini fez um mix, alternando os materiais de ambas num mesmo volume e sempre de olho na cronologia das duas revistas. Ok. Tudo certo, porém,
no alto dos meus quarenta e poucos, acho que já posso me dar ao luxo de algumas
excentricidades. Quando leio Detectives, fecho questão com o título e só lerei
Detective e o mesmo com Batman. Como disse, isso sou eu complicando o
descomplicado, já que se trata de uma época bem acolhedora no sentido de que as
histórias eram descompromissadas, sem uma exigência de continuidade que as
equipes criativas contemporâneas costumam exigir.
Claro, continuidade
no sentido de histórias presas a um arco maior e complexo, contado em runs cada
vez mais longos[2].
Com Alan Grant, se muito, você chega a ler uma história que se passa dentro de
três ou quatro edições e vida que segue. Fora que esse pequeno arco não trará
repercussões ad infinitum, te forçando a ter que voltar ao que já
se passou; e se for voltar, o próprio recordatório fará um esforço mínimo e circunstancial para lhe deixar a par do que precisas saber. É assim que eu gosto que seja. É por essas e por outras que essas
histórias me marcaram; dos casos à moda O’Neil/Adams, quase como se
Grant/Breyfogle fossem os melhores alunos egressos daquela escola setentista.
***
Mas voltando
àquelas edições iniciais do então trio, a começar por Detective Comics
nº 583 (Saga do Batman nº 5), a história mostra o Batman lidando com uma nova droga
que caiu no gosto dos adolescentes: a Febre e, que por acaso, é também o nome do
arco.
Para ilustrar
os efeitos desse narcótico que, segundo relatos, costuma dar um pico forte de
euforia e fúria, vemos uns viciados queimando um gato e, logo em seguida, ateiam
fogo em um guardinha de rua idoso. O Batman fica perplexo por "crianças"
terem cometido tal barbárie; e aí os policiais na cena do crime revelam que
essa Febre é a sensação do momento nas ruas. Em outro lugar, descobrimos que o
principal distribuidor do entorpecente é um homem chamado Arnold Wesker, ou
melhor, o serviçal do fantoche Scarface.
À primeira
vista, trata-se de um vilão muito simples que, numa leitura mais lúdica, poderia
até ser um análogo do Homem dos Brinquedos, entretanto, Grant/Wagner trabalham
maneirismos que mesmerizam até mesmo o leitor. Em outros termos, você chega a
ficar em dúvida se o boneco realmente tem vida e Wesker não seria, de fato, um
escravo, sobretudo porque Scarface sempre está no centro do palco, tirando do
interlocutor no gibi a quebra da suspensão de descrença.
Primeiro que
o boneco fala trocando algumas consoantes nas palavras e isso, vamos combinar,
torna-se um recurso marcante, que se sobressai a voz vacilante do Ventríloquo. E
quando isso não funciona e alguém deixa isso de lado, passando a se dirigir
diretamente ao Arnold, o boneco fica consternado e manda que todos voltem a
olhar para ele... Porque quem manda é o Scarface, ele é o chefão. E para
contrapor essa figura do Wesker, de um homem aparentemente pacato, de certa
idade, temos um fantoche endiabrado.
Eis uma
pequena demonstração: ao perder uma carga de Febre, ele dá ordens a um capanga
obeso para buscar outra fora da cidade. Até aí nem um problema. O problema é
que, em off, Scarface ordenou sua morte
e quer que usem o cadáver corpulento como mula.Para tanto, é necessária a extração dos órgãos, vísceras e gordura para
arrumar os tijolinhos. É doentio. No fim, o Batman inala um pouco de Febre e
solta a mão no Wesker. Na cadeia, enquanto aguarda a transferência para o
Arkham, Wesker diz que quer colaborar com a justiça, o que lhe rende, dessa
vez, umas belas bofetadas do Scarface.
Em 1992, quando
o Alan Grant está cuidando do título Batman, num arco em três partes dentro das
edições nº 475-476 e Detective Comics nº 642 (Saga do Batman nº 28), temos A
Volta de Scarface. Segundo o boneco, eles foram inocentados por conta de uma
tecnicalidade jurídica e agora estão tentando reaver o território que perderam
para uma gangue nova. Os DemônioZ da Rua, como se intitulam, metralham o fantoche e o
dão como morto, com direito a velório e sepultamento. O que mostra o grau de
convencimento que o Arnold Wesker exerce sobre todos ao seu redor; até porque
as balas são disparadas em direção ao construto e não ao Ventríloquo.
No fim da
história, Scarface recupera o território e consegue redirecionar o Batman e a
polícia para a captura dos rivais. Como disse
lá em cima, a primeira história, Febre, era inédita por aqui até Saga do Batman
nº 5, mas vejam só, A Volta de Scarface chegou a sair em 1995 dentro de Batman Anual nº 4 da Editora Abril. E isso, vale dizer, já com A Queda do Morcego em curso.
Então, o primeiro contato do leitor brasileiro com Ventríloquo/Scarface se deu
exatamente na segunda história desses personagens.
Daí em
diante, vez ou outra, o Alan Grant traz eles de volta, geralmente, num contexto
em que: ou 1) os dois estão separados; ou 2) Wesker tenta se curar e acaba esbarrando no carma de Michael Corleone. Por sinal, uma das passagens mais doentias
dos “dois” se dá em Queda do Morcego, quando Wesker está sem o boneco e aí
improvisa um fantoche de meia. No entanto, quando o boneco mafioso é recuperado,
o substituto e o original trocam farpas entre si até que um atira no outro! No último
quadro, vemos Wesker inconsciente com as duas mãos estraçalhadas (Detective
Comics nº 664):
Mais adiante
em Filho Pródigo, quando Dick Grayson se torna momentaneamente o Batman, ele prende
Wesker que, evidentemente, sobreviveu. Antes de ser preso, ele deixa um livro de ventriloquismo para Rino, seu fiel leão de chácara, aprender a cuidar do
Scarface. Isso lá em Shadow of the Bat nº 32, de 1994. Essa história só teria
sequência em Shadow nº 59 e 60, de 1997, ocasião em que Alan Grant resolveu
revelar um trauma da infância de Wesker em torno do pássaro albatroz. É dito
que na manhã que os pais foram atropelados, eles haviam acabado de ver essa ave[3].
Em paralelo,
vemos Rino quebrando a cabeça para aprender ventriloquismo e dando um jeito de
libertar o Wesker de Blackgate. Quando se reúnem, o Scarface quer encontrar um
albatroz que foi avistado sobrevoando Gotham e fazer com que Wesker quebre seu
pescoço, superando, por fim, aquele trauma. É mais ou menos um psicodrama, o que
nos leva de volta à Maldição de Scarface.
***
Como disse
no início, o Doutor Arkham dá uma de psicodramatista e faz com que Wesker
queime Scarface para, vamos dizer, incinerar seu lado sombrio. Mas aí é que
está, nas histórias anteriores, a suposição que fazíamos é que a marionete era apenas
o conduíte da loucura do Ventríloquo e ele, por seu turno, era a mente criminosa
por trás da dupla. Só que aqui nesse especial, Alan Grant conta a origem do
fantoche e insere um componente sobrenatural nessa relação homem versus boneco:
a madeira ao qual foi esculpido era amaldiçoada.
Explica-se
em flashback que na prisão Black Gate havia uma forca nos arredores da
penitenciaria onde 313 prisioneiros foram executados. A contagem só parou
porque um raio destruiu a estrutura de madeira, deixando apenas um toquinho no
chão. Dá para supor também que, em algum momento, a pena de morte foi revogada,
enfim... É a lacuna do texto que nos deixa livres para especular e discutir. O
fato é que, não muito tempo depois, um preso chamado Donnegan pegou aqueles restos e esculpiu um bonequinho, o qual
batizou como Tronquinho. O guarda
que está com ele chaga a alertá-lo que nada de bom sairia daquela matéria-prima,
já que Deus tinha virado as costas para todas aquelas almas.
Mais tarde, descobrimos
que o companheiro de cela de Donnegan é ninguém menos que Arnold Wesker. E aí nos
momentos em que o escultor dorme, Tronquinho conversa com o seu futuro
cúmplice. A princípio, o próprio Wesker acredita que aquilo é uma voz projetada
e está sendo tapeado por truques de ventriloquismo. Isso escalona de um jeito
que ele acaba matando Donnegan e mais dois guardas, fugindo logo em seguida.
Nesse ponto, o fantoche pede para que, dali em diante, fosse chamado de
Scarface.
Nada disso
dá indícios ainda que exista algo de paranormal naquela relação. Isso só viria
à tona a partir daquela sessão de psicodrama, quando o boneco fora queimado.
Ou melhor, logo após, quando a pira vira e o boneco cai no despenhadeiro rumo ao mar. Lá embaixo, dois amigos estão pescando e
confundem Scarface com um bebê se afogando; quando um deles vai tentar
salvá-la, ele dá um escorregão, bate a cabeça numa pedra e morre:
No outro dia,
um menino que sofre bullying na escola e está ali na praia com os pais, acha o
boneco e decide ficar com ele. Da mesma
forma que o pescador morto, Scarface vai trazer mau agouro para aquela criança
e passará de mão em mão até que, fatalmente, regressará às mãos de Arnold
Wesker; que, naquele instante, estava em liberdade e fazendo shows como
ventríloquo, agora com Lola, uma
boneca – supostamente – "inofensiva".
Curiosamente,
na série animada dos anos noventa, no episódio Double Talk (S3E4) – ou
Identidade Dupla –, assistimos também a libertação e reintegração do
Ventríloquo à sociedade, inclusive trabalhando como mensageiro nas indústrias
Wayne. Não obstante, Rino e os antigos associados trabalham para que Scarface
retorne e tentam a qualquer custo sabotar a sanidade do ex-interno do Arkham.
Ao contrário de A Maldição de Scarface, o final da animação é feliz e Wesker se
liberta dessa praga... ou seria pesadelo?!
***
A preço de
hoje, dá até para fazer uma rima de Scarface com a boneca Annabelle, e mesmo
com o sobrenatural instalado, creio que o leitor sempre ficará desconfiado se
aquilo tudo não é só coisa da cabeça de Arnold Wesker. Eu prefiro que seja
assim, a boa e velha loucura ditando os passos dos melhores vilões do morcego;
e, se não ficou claro, adoro esses dois porque pertencem a uma safra em
extinção. De antagonistas pequenos, que não têm a pretensão de destruir Gotham ou
ser só análogos negativos do herói.
A própria estranheza deles já era o ingrediente
perfeito para boas trocas com o Batman.
[1] Os estudiosos das Histórias em Quadrinhos
chamaram essa iniciativa de Invasão Britânica. Alan Moore teria sido o primeiro
com Monstro do Pântano, Grant Morrison com Homem-Animal, Neil Gaiman com
Orquídea Negra e, consequentemente, com Sandman, etc.
[2] Por exemplo, a fase de Tom King na mensal
Batman teve ao todo 85 edições + 12 edições da minissérie Batman/Mulher-Gato.
Tudo é umbilicalmente interligado, de modo que o leitor precisa mesmo ler todos
os números para saber onde a história vai desembocar. Se ela desembocou ou não,
aí são outros quinhentos.
[3]Essas histórias saíram no
Brasil na 5ª série do Batman nas edições nº 1 e 23 (Abril). Mais
especificamente, aquela coleção pós-Zero Hora.