segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

NEGÓCIO NO FIO DO BIGODE

Costuma-se dizer que quando uma história se liberta de seu criador, da segurança do manuscrito, e passa a ser publicada e/ou exibida sob quaisquer suportes, enredo e personagens já não mais pertencem àquele entusiasta de outrora. Tornam-se parte do imaginário coletivo, a despeito do que o Copyright tenha a dizer sobre isso. Drácula de Bram Stoker que o diga, publicado originalmente em 1897, foi tomado de assalto no roteiro de Henrik Galeen para o filme Nosferatu (1922), de Friedrich Murnau.

Quer dizer, sem ter autorização para isso, todos os tropos do clássico de Stoker foram explorados na icônica película do cinema mudo. Ironicamente, é no derivado extraoficial que se acrescenta à trama do Conde vampiro, o plot do interesse amoroso - ou chame-o do que quiser. Ironicamente², já em domínio público há três décadas, em 1992, Francis Ford Coppola fez um combinado, utilizando os elementos característicos de ambos. Ironicamente³, Coppola chamou seu "Frankenstein" de "Drácula de Bram Stoker".

Corta para 2024, nos créditos finais do mais novo remake de Nosferatu, vemos a informação que o filme fora inspirado tanto no controverso script de Galeen quanto no livro de Stoker. Trata-se de um sarrafo muito alto para o diretor Robert Eggers saltar, sobretudo quando se tem ainda muito vívida a marca imagética do que Coppola alcançou, especialmente nos dois primeiros atos. Então, na minha cabeça, enquanto assistia, um duelo interno estava sendo travado: Gary Oldman vs. Bill Skarsgård; Winona Ryder vs. Lily-Rose Depp; Keanu Reeves vs. Nicholas Hoult; Anthony Hopkins vs. Willem Dafoe e Monica Bellucci vs...?!

Enfim, o time de 92 sempre estava vencendo os desafios contra o de 24, inclusive, no nível do roteiro, porém, com uma única exceção: o terceiro e último ato, que trata das três pragas de Nosferatu. Acho que elas conferem tetricidade, uma sensação de desolação, como se as vítimas de Wisborg tivessem acabado de sobreviver a um desastre natural. Uma desesperança ao qual espectador (ou leitor) nenhum havia se deparado até então.

O que quero dizer é que, tenho minhas restrições[1] com o Orlok - humanizado por um bigode? - e a sensação incômoda de que aquela Ellen[2] é uma Regan (de O Exorcista) no filme errado, mas o Nosferatu 2024 tem, sim, arroubos estéticos/góticos merecedores de elogios[3] e, claro, aquele desejo irrefreável de recontar as grandes histórias que permeiam à coletividade. Um desejo que atiçou os ímpetos de Murnau, Coppola e, agora, Eggers também.

E isso eu respeito[4].



[1] Confesso que antipatizei também com Van Franz, o análogo de Van Helsing. Na versão revista, Eggers o transforma numa figura vacilante, que jamais chega a ser determinante para a resolução da praga de Nosferatu. É como se o (ótimo) Willem Dafoe estivesse ali apenas para fazer react como intelectual atestando que ia dar merda. Já o Orlok me divide. Aprecio todo o esmero na caracterização do personagem, tanto do ator quanto da produção, mas em momento algum o achei assustador. Aliás, depois que vi isso... Sem chance!

[2] Dediquei quatro anos da minha vida a Mina Murray de Bram Stoker e, em especial, a subversão apócrifa da mesma por Alan Moore e Kevin O’Neill em A Liga Extraordinária. Então, modéstia à parte, creio que possa me indispor um pouco com essa Ellen amuada de Robert Eggers.

[3] [...] e as quatro indicações que recebeu no Oscar 2025, quais sejam: melhor fotografia, melhor figurino, melhor cabelo & maquiagem e melhor design de produção.

[4] Só não respeito esse ar um pouco pretensioso que esse diretor exala quando dispara coisas como “a ideia de ter que fotografar um carro me deixa doente”.

Um comentário:

doggma disse...

Belo texto, chefe!

Essa desesperança/sensação de inevitabilidade é uma constante no filme. E me parece a verdadeira razão de muitos não terem curtido, já que "nada acontece".

O Orlok aqui é mais força da natureza do que indivíduo (gostei do "sou um apetite, nada mais"). Também curti a migalha sobre sua vida pregressa como Solomonari, um mago do folclore romeno.

Sobre a caracterização "camarada cossaco from hell" e a performance do Skarsgård, se esforçando para soar vagamente humano, pra mim, foram no alvo. E são meio que essenciais pra coisa toda funcionar, caso contrário...

Faltou foi um contingente de terceirizados para fazer a logística do Nosfera, coisa que o Coppola lembrou no vampirão dele. E outros análogos flagrantes são Lucy/Anna Harding (que cena magnífica a da chacina) e Renfield/Herr Knock.

Abraço.