“Ele não tinha lembrança consciente do que tinha visto, mas, naquela noite, ao se sentar inquieto na entrada de seu antro, os ouvidos sintonizados nos ruídos do mundo ao redor, Aquele-que-Vigia-a-Lua sentiu as primeiras pontadas leves de uma nova e poderosa emoção. Era uma vaga e difusa sensação de inveja – de insatisfação com sua vida. Ele não tinha ideia da causa, e menos ainda da cura, mas o descontentamento se instalara em sua alma, e ele tinha dado um pequeno passo na direção da humanidade.”
Essa passagem pertence ao capítulo inicial do romance 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Arthur C. Clarke. Publicado originalmente em 1968; mais especificamente, alguns meses após a estreia do cultuado filme de Stanley Kubrick. No trecho em tela, acompanhamos o processo mental que um Homem-Macaco – nomeado como Aquele-que-vigia-a-Lua – atravessa após entrar em contato com o misterioso monólito negro que surgiu nas proximidades da caverna em que ele e seu grupo se abrigavam. Trata-se da primeira fagulha de pensamento racional, que levaria à aurora do homem, passando pela necessidade de sobreviver e contar com ferramentas que o ajudariam a ir além disso: a prosperar.
No filme, confesso que essa ilação me passa um pouco despercebida, haja vista que não existe uma voz off te conduzindo a esse raciocínio de que algo está fermentando uma mudança naquelas criaturas. Numa reprise após a leitura, passei a encarar o audiovisual de uma forma diferente, com uma espécie de informação privilegiada. Me parece que Jack Kirby passou por algo parecido, uma vez que sua 2ª vinda na Marvel – após uma passagem bem fecunda nos Novos Deuses da DC – só se deu com a condição de escrever e desenhar uma adaptação em quadrinhos de 2001; o que ocorreu em 1976, curiosamente, oito anos depois da estreia da película. Não vejo como dizer de outra forma: o gibi de 2001 é um fanfic de Kirby.
Explico.
No futebol, quando um jogador consegue fazer três gols numa partida, costuma-se dizer que ele fez um hat-trick. Na Era Vitoriana, essa expressão tinha o sentido de truque de mágica, quando um mágico surgia envergando sua cartola e tirava três coelhos dela. Hoje, o hat-trick, como eu disse, faz referência ao feito dos três gols. Penso que Uma Odisseia no Espaço fez um hat-trick transmídia. Porque as três versões – filme, prosa e HQ – contam com uma narrativa principal que se repete nessas três mídias, mas todas elas acabam sofrendo mutações em certos aspectos do enredo. Para ser um hat-trick é porque considero as três muito boas, embora com gradações e, claro, predileções pessoais. No nível da história, deixando de lado a imagética de Kubrick e Kirby, a preço de hoje, a prosa de Clarke ganhou um lugar privilegiado dentro da minha cachola.
O que posso dizer em minha defesa? Todas as minúcias do worldbuilding do livro, bem como a astrofísica da viagem interestelar até Saturno – e não só até Júpiter como no cinema e no gibi – ou o suspense psicológico envolto na traição de HAL 9000 ganharam mais potência, narrativamente falando. Há que se dizer também que o romance de Clarke vai ao encontro de uma problemática intocada na obra de Kubrick; pois, na prosa, o futuro sci-fi de uma Era Espacial que realmente vingou e foi além do factual[1], oculta escassez e estagnação na Terra:
“Embora o controle de natalidade fosse barato, confiável e tivesse o apoio de todas as principais religiões, havia chegado tarde demais; a população do mundo era agora de seis bilhões – um terço deles no Império Chinês. Aprovaram-se leis em algumas sociedades autoritárias limitando as famílias a dois filhos, mas seu cumprimento se mostrara impraticável. Como consequência, havia falta de comida em todos os países; até mesmo os Estados Unidos tinham dias sem carne, e previa-se uma fome generalizada em quinze anos, apesar dos esforços heroicos para cultivar fazendas no mar e desenvolver alimentos sintéticos. Com a necessidade de cooperação internacional mais urgente do que nunca, ainda havia tantas fronteiras quanto em qualquer era anterior.”
E digo mais: Clarke atirou no que viu e acertou no que não viu; quer dizer, dá para ler e fazer imediatamente uma imagem mental do "conteúdo" [ou falta dele] nos Choquei, Instagramers, Tiktokers & congêneres.
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Kirby, por sua vez, não esconde que o apogeu tecnocientífico não chegou sem que a humanidade pagasse um alto preço. E é curioso isso porque mostra que o quadrinho é uma tentativa de trazer à tona o melhor de dois mundos, reproduzindo o visual fílmico com o ideário próprio da prosa. Inclusive, o artista tenta ir um pouco além e transpor para página a interpretação que ele teve de trechos do romance; como, por exemplo, a cidadela lunar ou as ruínas da civilização alienígena. Ou mesmo trazer uma peça de arte, criada exclusivamente para a divulgação em cinemas, para a narrativa interna do gibi. Fato é que Kirby morou dentro dessa história, tanto que Uma Odisseia no Espaço ainda renderia dez números de uma revista mensal; donde, inclusive, saiu o personagem Aaron Stack, O Homem-Máquina.
Mais que isso, Eternos, cujo ano de lançamento é o mesmo da adaptação de 2001, não obstante a ideia de uma raça de criaturas ancestrais girando a roda da evolução, também partilha outras semelhanças, como o próprio visual dos Celestiais bem próximos dos trajes espaciais da tripulação da Discovery. Contudo, ainda que um trabalho notável, fruto da paixão avassaladora do Rei dos Quadrinhos pelo tema, no final das contas, para quem está de fora, ler ou não ler, ter ou não ter o gibi, se torna tão somente um exercício de curiosidade respeitosa. É imaginar que a fanart não bastava ao Kirby, ele queria que o seu público “assistisse” aquela(s) odisseia(s) esplendorosa(s) por seu ponto de vista. É de se lamentar apenas que esse trabalho esteja fora de catálogo lá fora e sequer tenha saído no Brasil[2].
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Uns tuítes no espaço: a) "[...] Ninguém é mais fã do HAL do que esse sujeito."; b) "Intervalo"; e c) "Escapadas dos Escapistas".
[1] Só agora, 54 anos depois de Neil Armstrong, é que as coisas estão começando a acontecer na Lua: “O plano, dessa vez, não é ir para apenas fincar bandeira e voltar, mas desenvolver atividades permanentes e autossustentáveis de exploração, algo que se tornou possível ao longo das últimas décadas. “Até agora, a Lua ainda não foi explorada […] Cientificamente falando, tem muita coisa a se fazer lá. A cada dia, as pessoas estão fazendo mais e mais descobertas”, afirmou a VEJA o diretor sênior de estratégia para exploração humana e robótica da Agência Espacial Europeia (ESA), Stefaan De Mey”.
[2] Mas uma versão informal em português está disponível por aí para você dar seus pulinhos.
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2 comentários:
Lindo, lindo post. Texto, literalmente, viajante. Preciso rever o filme, reler o livro, enfim, fazer uma reciclagem decente como se deve.
Penso que o bom e velho Kurtzberg explodiu a mente na sala de cinema com 2001 tanto quanto na Feira Mundial em '39. Deve ter trabalhado febrilmente nas pranchetas da adaptação.
(e quero a Treasury física em mãos, naquele formatão "abrindo como se fosse um jornal")
Em tempo... acho demais a piscadela que o Sagan dá para Bowman ("Homem do Arco") com a Ellie Arroway (~ "Caminho da Flecha"). É como se pedisse a benção do clássico antes de sair por aí explorando o Universo.
Abração, cara.
A referência final no seu comentário me pegou de calças curtas, pq sou eu agora que devo fazer uma reciclagem como se deve com Contato. Por sinal, criminosamente, não li a prosa do Carl Sagan. Já o filme, a última vez que encarei uma reprise deve ter sido ali no comecinho dos anos 2000.
E quanto à hipotética publicação do gibi 2001, não só tinha que ser o formato original como trazer também os extras; porque aquilo ali é ouro em celulose.
Abração.
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