sábado, 27 de janeiro de 2024

SOBRE MENINOS, LOBOS E UM PODCAST

Os bastidores dos quadrinhos, dos produtores, das editoras sempre me intrigaram. Eles tendem a ser um magnetar de criatividade e ressentimento.

Atribui-se a Jack Kirby a máxima de que “os quadrinhos vão partir o seu coração”. Joe Shuster morreu praticamente cego e sem um centavo no bolso, sendo ele cocriador do Superman, um dos copyrights mais valiosos do mundo. Há rumores que o recluso Steve Ditko só foi encontrado dias após falecer e, em vida, embora gentil com os fãs, tornava-se arredio quando lhe lembravam dos tempos na Marvel. Dizem que uma conversa com Barry Windsor-Smith pode demover qualquer um da ideia de criar sua própria história em quadrinhos. Ed Brubaker usa a mídia para espiar seus demônios e também já perambulou pela rua da amargura e decepção.

Nem o cotidiano dos leitores costuma ser afável, sobretudo no Brasil, quando a mídia passa a sofrer uma constante alta de preços e, claro, uma predileção editorial por formatos de luxo. Daí se instala uma guerra não declarada, uma luta de classes entre gibizeiros; dos leitores envoltos no dilema da televisão de cachorro contra os que só se preocupam com qual é o ponto ideal de sua picanha. Um lado está feliz e o outro, não. Se reparar bem, é a mesma coisa com a turma lá de cima, dos criadores.

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Do lado de cá, do meu lado mesmo, o Luwig, eu confesso que venho colocando em perspectiva algumas coisas acerca da produção de conteúdo gibizeiro. Como disse outro dia, comecei em 2016 no Arte-Final HQ, como membro fundador do 7 Jagunços, e, desde 2018, venho tocando o projeto dos Escapistas. O podcast cresceu e cresce a cada nova série publicada. Tanto no número de assinantes quanto nas métricas. No modelo posto, de ter um feed organizado com programas temáticos, serializados, percebo que muitos ouvintes têm preferido esperar a conclusão de certos projetos para dar play e, digamos, poderem maratonar os episódios conforme leem os recortes de histórias discutidas.

Outro dia, inclusive, descobri que nossos programas sobre o Miracleman estavam sendo disponibilizados para download direto, junto com os arquivos digitais dos gibis. O Dr. Malcolm falaria num tom hippie que “a vida sempre encontra um meio”, e isso vale tanto para a façanha jurássica de Hammond quanto para aqueles suecos sovinas. De todo modo, creio que fale também por todo o elenco: ficamos orgulhosos. 

Então, estou sempre recebendo mensagens elogiosas pelo trabalho em Sandman Anotado, Justiceiro MAX, Wolverine Essencial e outros. Ouvintes vivem nos sugerindo novas pautas. E quase tudo é culpa do Reginaldo, Mauro, Maurício, Do Vale e quem já contribuiu conosco nesses últimos anos. Agorinha mesmo, concluímos Lobo Solitário, uma de nossas séries mais trabalhosas; iniciada oficialmente num longínquo 2017. Extraoficialmente? Dentro da minha cabeça, é capaz de ter começado antes de 2007.

Isso é um barato. Fico feliz com isso, né? Claro que fico, mas aí você me pergunta qual seria o ponto aqui? O que quero dizer com tudo isso?

Só que estou cansado. Não infeliz... Apenas cansado. Também não diria que é depressão. Talvez seja a pressão (besta) que coloco sobre mim mesmo. O hobby que dá a volta e passa a parecer com um trabalho laborioso que não rende financeiramente nada. Não sei. Às vezes, acho que estabeleci e cumpri as grandes metas do programa em termos de pautas; no nível pessoal, por exemplo, já gravamos sobre minhas três séries favoritas... da vida. É como se tivesse vencido as três últimas edições da Champions League.

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Curiosamente, ontem, ao saber da notícia e o motivo por trás da saída de Jürgen Klopp do Liverpool, alegando cansaço mental... Isso reverberou de um jeito inesperado e me deixou ainda mais pensativo sobre o esvaziamento que também ando sentindo. Por outro lado, reconheço que a edição dos programas é um dos principais responsáveis pela fadiga. Quem manja do ofício e dá tudo de si nessa “pós-produção”, sabe quão sacrificante pode ser sonorizar, elaborar vinhetas, eliminar ruídos, diminuir espaços, corrigir trapalhadas e até bancar uma de fonoaudiólogo remoto.

É um trabalho complexo e difícil de precificar. Pode ser barato para quem cobra e caríssimo para quem paga. Obviamente, tudo depende da obstinação do profissional e do nível de exigência do podcaster contratante. No meu estado de coisas, adoraria terceirizar a edição do programa, porém, no momento, não tenho condições de arcar com essa despesa. A solução poderia vir de uma campanha de crowdfunding da qual, por diversos fatores, não vejo chances de dar certo, especialmente porque sou péssimo em vender o meu/nosso peixe nas redes e, infelizmente, a verdade precisa ser dita: o público ouvinte disposto a apoiar, não pagaria apenas pela manutenção do podcast, mas, sim, de olho em recompensas “maiores” que o simples fato d’os Escapistas continuar existindo.

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Bom, do futuro nada sei, nem sei se é o fim do nosso podcast. Já do presente, esse eu posso falar. Fiz bons amigos nesse meio e eles, sim, são para sempre. Também sei que escrevi essas linhas com a certeza que o nosso humilde programa atingiu o coração & mente de ao menos algum “Michael Scott” por aí.

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

TARJA VERDE

Cinco anos depois, qual é o grande gibi Black Label da DC? Essa é a primeira coisa que me pergunto ao fechar as páginas de mais um material desse selo. Quando penso em Vertigo, a linha editorial que antecede esse seguimento, minha cabeça explode de nomes, mas se fizer o mesmo com os do presente, parece que a memória fica enevoada, como se tivesse realmente afetada por um remédio “tarja preta”. De 2018 para cá, só consigo visualizar alguns padrões incômodos nas publicações Black Label, quais sejam: 1) muitos quadrinhos do Batman e do duo Coringa/Arlequina, o que dá no mesmo e poderiam sair nas vias normais; 2) histórias de origem, retcons e/ou revivals de títulos já concluídos; e 3) contos de futuros alternativos. 

que se dizer que uma coisa talvez seja meritória nesse selo e isso em si seja digno de perpassar o humor ranheta desse infame resenhista, que é o fato da maioria das narrativas serem autossuficientes, de engatilharem tramas voltadas para um público leitor sem um retrospecto tão grande com o Universo DC. Um nicho cada vez mais amplo que não se dá ao trabalho de garimpar a continuidade e ir corajosamente ao encontro das revistas regulares. Então, para quem costuma conferir tanto a mensal quanto um especial Black Label, no mais das vezes, pode existir uma frustração justamente pela repetição de temas; o que – reitero – não soará como “bis” se você não tem a informação pregressa, já veiculada nos títulos tradicionais. 

É aqui que entra a minissérie em três edições, com qualidade Prestige e formato de álbum europeu, Monstro do Pântano: Inferno Verde (Swamp Thing: Green Hell), de Jeff Lemire e Doug Mahnke[1]. A narrativa se encaixa na modalidade “3”, dos contos de futuros alternativos ou, como prefiro chamar, “gibi à moda cavaleiro das trevas”. Quer dizer, estamos num momento em que a Terra já vivencia um apocalipse ecológico e os três Parlamentos (Verde, Vermelho e Podridão), de comum acordo, decidem exterminar o que resta da humanidade e recomeçar tudo; seja por represália diante do que eles fizeram ao mundo, seja como um genocídio justificado, que equilibraria os reinos vegetal, animal e o que decompõe a matéria morta dos dois.

A tragédia é narrada a partir dos esforços de Donald e a filhinha Ronnie para pescar algo comestível em meio a todo o lixo capturado na rede de arrasto de seu barco. Para piorar, a ilha em que vivem é atormentada por uma gangue que explora seus moradores raquíticos com um dízimo mensal. O líder deles, inclusive, é o cunhado de Donald, que o responsabiliza pelo trágico destino de sua irmã, sugerindo que ela chegou ao limite e deu cabo da própria vida. Sempre tentando resolver as coisas de forma pacífica, dessa vez, Donald é voto vencido e a comunidade decide partir para um tudo ou nada, eliminando os piratas maltrapilhos. O ataque surpresa tem sucesso, porém, “salvo” da carnificina, o cunhado semimorto é recoberto de algas e se torna o novo Avatar do Verde, com a simples missão de aniquilar seus atacantes e ir mais além.

Georgie, um idoso amigável, tem a ideia desesperada de ir ao farol pedir ajuda a um estranho que é evitado por todos. Não sem razão, já que John Constantine passou a juventude e, ao que parece, a velhice também salvando e condenando pessoas quase na mesma proporção. Sendo bem franco, a participação dele é o que dá um quentinho no meu coração hipertenso e puxa Alec Holland para a ação. Nesse contexto, o velho Monstro do Pântano está aposentado, vivendo num paraíso verdejante junto de Abby e Tefé, isto é, o Santuário personalíssimo confeccionado pelo Parlamento para ex-avatares[2]. De repente, ele é puxado de volta para o plano terreno e, não sem razão, fica furioso com Constantine, um velho desafeto, que condiciona seu retorno mágico ao enfrentamento da ameaça em tela. Dá ruim. Dá muito ruim, Lemire remexe na temática do Vermelho e o legado de Buddy Baker a partir da filha Maxine como a futura – e agora atual – Mulher-Animal; algo que o escritor chegou a explorar no título mensal dos Novos 52.

Volta para o velho mago trapaceiro tentando aplicar um golpe em Satã – tal qual o fez nos tempos de Garth Ennis ou, vá lá, no filme do Francis Lawrence –, para acessar uma parcela de poder e recolocar os três Parlamentos nos respectivos lugares, isto é, de agentes externos que deveriam harmonizar com o homem. No fim, o autor canadense parece mais inclinado a contar uma última história da Liga da Justiça Sombria do que um “Cavaleiro das Trevas” do Monstro do Pântano. Como disse lá em cima – e até no texto sobre Superman: A Era Espacial –, para o leitor Matusalém, fica a sensação de já ter lido esse gibi; para os brotos que estão chegando, creio que seja um convite razoável à mitologia vegetal/ocultista que Alan Moore e tantos outros construíram via Vertigo. Essa(s), sim, com bem mais musgo estofo.

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Sobre a resposta para a pergunta que iniciou esse texto, só digo que ela é uma História para outro dia.



[1] Uma curiosidade editorial que fica inócua quando se lê pelo encadernado é que, lá fora, a minissérie em três edições teve uma regularidade bem elástica. A edição inicial saiu em fevereiro de 2022 e as duas partes seguintes só em abril e maio de 2023.

[2] Um conceito muito bem trabalhado por Charles Soule no seu run no Monstro do Pântano. Por sinal, objeto de discussão no podcast Os Escapistas.

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sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

UMA(S) ODISSEIA(S) NO ESPAÇO

Ele não tinha lembrança consciente do que tinha visto, mas, naquela noite, ao se sentar inquieto na entrada de seu antro, os ouvidos sintonizados nos ruídos do mundo ao redor, Aquele-que-Vigia-a-Lua sentiu as primeiras pontadas leves de uma nova e poderosa emoção. Era uma vaga e difusa sensação de inveja – de insatisfação com sua vida. Ele não tinha ideia da causa, e menos ainda da cura, mas o descontentamento se instalara em sua alma, e ele tinha dado um pequeno passo na direção da humanidade.

Essa passagem pertence ao capítulo inicial do romance 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Arthur C. Clarke. Publicado originalmente em 1968; mais especificamente, alguns meses após a estreia do cultuado filme de Stanley Kubrick. No trecho em tela, acompanhamos o processo mental que um Homem-Macaco – nomeado como Aquele-que-vigia-a-Lua – atravessa após entrar em contato com o misterioso monólito negro que surgiu nas proximidades da caverna em que ele e seu grupo se abrigavam. Trata-se da primeira fagulha de pensamento racional, que levaria à aurora do homem, passando pela necessidade de sobreviver e contar com ferramentas que o ajudariam a ir além disso: a prosperar.

No filme, confesso que essa ilação me passa um pouco despercebida, haja vista que não existe uma voz off te conduzindo a esse raciocínio de que algo está fermentando uma mudança naquelas criaturas. Numa reprise após a leitura, passei a encarar o audiovisual de uma forma diferente, com uma espécie de informação privilegiada. Me parece que Jack Kirby passou por algo parecido, uma vez que sua 2ª vinda na Marvel – após uma passagem bem fecunda nos Novos Deuses da DC – só se deu com a condição de escrever e desenhar uma adaptação em quadrinhos de 2001; o que ocorreu em 1976, curiosamente, oito anos depois da estreia da película. Não vejo como dizer de outra forma: o gibi de 2001 é um fanfic de Kirby

Explico.

No futebol, quando um jogador consegue fazer três gols numa partida, costuma-se dizer que ele fez um hat-trick. Na Era Vitoriana, essa expressão tinha o sentido de truque de mágica, quando um mágico surgia envergando sua cartola e tirava três coelhos dela. Hoje, o hat-trick, como eu disse, faz referência ao feito dos três gols. Penso que Uma Odisseia no Espaço fez um hat-trick transmídia. Porque as três versões – filme, prosa e HQ – contam com uma narrativa principal que se repete nessas três mídias, mas todas elas acabam sofrendo mutações em certos aspectos do enredo. Para ser um hat-trick é porque considero as três muito boas, embora com gradações e, claro, predileções pessoais. No nível da história, deixando de lado a imagética de Kubrick e Kirby, a preço de hoje, a prosa de Clarke ganhou um lugar privilegiado dentro da minha cachola.

O que posso dizer em minha defesa? Todas as minúcias do worldbuilding do livro, bem como a astrofísica da viagem interestelar até Saturno – e não só até Júpiter como no cinema e no gibi – ou o suspense psicológico envolto na traição de HAL 9000 ganharam mais potência, narrativamente falando. Há que se dizer também que o romance de Clarke vai ao encontro de uma problemática intocada na obra de Kubrick; pois, na prosa, o futuro sci-fi de uma Era Espacial que realmente vingou e foi além do factual[1], oculta escassez e estagnação na Terra:

Embora o controle de natalidade fosse barato, confiável e tivesse o apoio de todas as principais religiões, havia chegado tarde demais; a população do mundo era agora de seis bilhões – um terço deles no Império Chinês. Aprovaram-se leis em algumas sociedades autoritárias limitando as famílias a dois filhos, mas seu cumprimento se mostrara impraticável. Como consequência, havia falta de comida em todos os países; até mesmo os Estados Unidos tinham dias sem carne, e previa-se uma fome generalizada em quinze anos, apesar dos esforços heroicos para cultivar fazendas no mar e desenvolver alimentos sintéticos. Com a necessidade de cooperação internacional mais urgente do que nunca, ainda havia tantas fronteiras quanto em qualquer era anterior.

E digo mais: Clarke atirou no que viu e acertou no que não viu; quer dizer, dá para ler e fazer imediatamente uma imagem mental do "conteúdo" [ou falta dele] nos Choquei, Instagramers, Tiktokers & congêneres.

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Kirby, por sua vez, não esconde que o apogeu tecnocientífico não chegou sem que a humanidade pagasse um alto preço. E é curioso isso porque mostra que o quadrinho é uma tentativa de trazer à tona o melhor de dois mundos, reproduzindo o visual fílmico com o ideário próprio da prosa. Inclusive, o artista tenta ir um pouco além e transpor para página a interpretação que ele teve de trechos do romance; como, por exemplo, a cidadela lunar ou as ruínas da civilização alienígena. Ou mesmo trazer uma peça de arte, criada exclusivamente para a divulgação em cinemas, para a narrativa interna do gibi. Fato é que Kirby morou dentro dessa história, tanto que Uma Odisseia no Espaço ainda renderia dez números de uma revista mensal; donde, inclusive, saiu o personagem Aaron Stack, O Homem-Máquina.

Mais que isso, Eternos, cujo ano de lançamento é o mesmo da adaptação de 2001, não obstante a ideia de uma raça de criaturas ancestrais girando a roda da evolução, também partilha outras semelhanças, como o próprio visual dos Celestiais bem próximos dos trajes espaciais da tripulação da Discovery. Contudo, ainda que um trabalho notável, fruto da paixão avassaladora do Rei dos Quadrinhos pelo tema, no final das contas, para quem está de fora, ler ou não ler, ter ou não ter o gibi, se torna tão somente um exercício de curiosidade respeitosa. É imaginar que a fanart não bastava ao Kirby, ele queria que o seu público “assistisse” aquela(s) odisseia(s) esplendorosa(s) por seu ponto de vista. É de se lamentar apenas que esse trabalho esteja fora de catálogo lá fora e sequer tenha saído no Brasil[2].

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Uns tuítes no espaço: a) "[...] Ninguém é mais fã do HAL do que esse sujeito."; b) "Intervalo"; e c) "Escapadas dos Escapistas".



[1] Só agora, 54 anos depois de Neil Armstrong, é que as coisas estão começando a acontecer na Lua: “O plano, dessa vez, não é ir para apenas fincar bandeira e voltar, mas desenvolver atividades permanentes e autossustentáveis de exploração, algo que se tornou possível ao longo das últimas décadas. “Até agora, a Lua ainda não foi explorada […] Cientificamente falando, tem muita coisa a se fazer lá. A cada dia, as pessoas estão fazendo mais e mais descobertas”, afirmou a VEJA o diretor sênior de estratégia para exploração humana e robótica da Agência Espacial Europeia (ESA), Stefaan De Mey”.

[2] Mas uma versão informal em português está disponível por aí para você dar seus pulinhos.

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terça-feira, 9 de janeiro de 2024

UM QUADRINHO DE DETETIVE

Não ganho muitos amigos falando bem do Tom King. Ao menos no meu entorno, sei que estou perdendo alguns e ele fazendo outros. Por sinal, amigos influentes. Bota influentes nisso.

Do lado de cá, minhas críticas ao trabalho dele nascem do seu run renascentista na revista mensal do Batman. Já falei rapidamente sobre isso e não mudo uma palavra do que escrevi ali em 2018; na realidade, acertei em antecipar que o modus operandi dele viraria a tônica naquele restinho década e foi além. Piora quando o escritor insinua ao editorial que mataria Alfred e - para a surpresa dele - teve sinal verde.

Isso, claro, foi de encontro com meu princípio básico e, de tão estapafúrdia, eu quis me convencer que essa atrocidade seria facilmente varrida para debaixo do tapete, mas ledo engano. Alfred segue enterrado a sete palmos de celulose e Chip Zdarsky, o atual roteirista, vem dobrando a aposta com ideias tão ruins quanto. Uma conversa para outro dia. Porque, hoje, contrariando novamente meus instintos mais primitivos, venho aqui falar de outro gibi bom do Tom King: Gotham City Ano Um.

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Slam Bradley foi um dos primeiros personagens criados por Jerry Siegel e Joe Shuster, os pais do Super-Homem. O detetive casca grossa estrelou a 1ª edição de Detective Comics em 1937; sendo que o Batman só viria a dar o ar da graça dois anos mais tarde, em 1939. Então, é uma sacada boa de Tom King e Phil Hester conectar os dois numa história do passado de Gotham. Na verdade, Bradley está no leito de morte contando para "Bruce" - sim, ele sabe quem está por debaixo do capuz - sua versão de como a cidade chegou a ser o lodaçal que conhecemos.

Segundo Bradley, isso teria ocorrido nos idos dos anos 1960, quando a bebê Helen Wayne fora sequestrada e o trágico desenlace do crime desencadeou mudanças estruturais e sociais em Gotham. Antes da "tia" de Bruce sumir do mapa, as taxas de criminalidade eram baixíssimas, e os avós estavam às vias de revolucionar a indústria química, construindo uma grande unidade no East End; até então um bairro negro ao sul, visto com desconfiança pela maioria branca no norte. 

O caso do rapto, porém, caiu nas mãos do ex-policial - expulso da corporação por dar uma surra em colegas racistas - e o faz, muito a contragosto, se envolver em uma rede de mentiras na qual os pais da menininha, o casal Richard e Constance Wayne, estão no centro. A história me lembrou bastante da 1ª temporada de Perry Mason (HBO Max), onde víamos também o sequestro de um bebê notório e, claro, um investigador particular às voltas com a polícia (corrupta), a família influente e tensões raciais. Outra semelhança é o fato de que Bradley e Mason serem veteranos de guerra.

Nada, no entanto, que prejudique a leitura do gibi. Na verdade, desde Alvo Humano, confesso que venho me surpreendendo com a escrita do Tom King, que soa mais objetiva e menos dada à melodramas baratos. Aliás, tanto as histórias de Christopher Chance quanto de Slam Bradley me fazem pensar o quanto, à essa altura, uma carreira autoral faria bem ao roteirista. Não posso esquecer de mencionar os trabalhos primorosos de Phil Hester (arte) e Jordie Bellaire (cores); o casamento perfeito entre a narrativa pulp noir com cores sóbrias & cirúrgicas. Fino.

Lá fora, Gotham Ano Um saiu como uma minissérie em seis edições. Por aqui já chegou como encadernado, felizmente, em capa cartão. Não obstante, o preço cheio ainda é caríssimo: 54 Lula$. Como peguei por 38 na Black Friday, acho que não foi lá mau negócio.

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Alerta de Spoiler >>> Ponto Polêmico

Talvez por ser um gibi que ainda está quentinho ou, quem sabe, ter sido algo que passou despercebido pelo grosso dos leitores, mas o fato é que ainda não ouvi/vi qualquer sinal de rebosteio em torno do plot twist duplo carpado sobre a História que conhecemos da Família Wayne. Em outra vida, isso talvez fosse me incomodar um pouco. Na vida que tenho agora, confesso que achei um barato. Estou falando da insinuação de que Bradley é o pai biológico de Thomas Wayne e, portanto, avô de Bruce.

Quer dizer, do jeito que o Tom King trabalha Bradley, quando a lâmpada na cabeça acende, fica impossível não estabelecer um link entre tudo o que ele é nesse gibi e o que o seu neto será em incontáveis gibis. Faz você voltar alguns passos e olhar de um jeito diferente para o velho detetive, como se estivéssemos testemunhando o código fonte de Bruce... do Batman. Fica até mais poético quando cai a ficha que Slam Bradley - como dito lá em cima - foi o anfitrião original de Detective Comics.

O que coloca em xeque o título preguiçoso do gibi. No lugar do King, por motivos óbvios, eu teria tascado um simples e direto A Detective Comic, Um Quadrinho de Detetive.

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terça-feira, 2 de janeiro de 2024

MORTO AO ENTARDECER

Christopher Chance é um guarda-costas pouco ortodoxo criado por Len Wein e Carmine Infantino em Action Comics #419 (dezembro/1972). Basicamente, uma reformulação de um personagem com a mesma alcunha, Alvo Humano, surgido em Detective Comics #201 (novembro/1953). Não é exagero nenhum dizer que trata-se de um ilustre desconhecido, com um ou dois destaques: 1) a série Vertigo com Peter Milligan em 2003; e 2) a série live-action produzida pela Fox em 2010.

É o tipo de construto ideal para Tom King torcer e distorcer sem que um fandom aplicado torne-se uma pedra no seu sapato. Tudo o que você precisa saber sobre ele é dito logo no princípio da maxissérie em doze edições: Chris protege seus contratantes assumindo o aspecto deles através de disfarces. Normalmente, ao atrair as miras para si, os agressores, assassinos e/ou desafetos perdem o elemento surpresa e são detidos ou coisa pior. No enredo de King, ele presta seus serviços a Lex Luthor e acaba tomando o veneno que seria para o arqui-inimigo do Super-Homem.

Ao ser examinado pelo Dr. Meia-Noite, Chance descobre duas coisas: 1) que só tem doze dias de vida; e 2) que a substância pode ter sido manipulada por algum integrante da Liga da Justiça Internacional.

Mais que o trauma de ter testemunhado o assassinato do pai, Chris guarda consigo o rancor inusitado de tê-lo visto implorar por sua vida. E é justo o que ele não fará nos últimos dias que lhe restam. Ele vai morrer com dignidade e ir dessa para melhor, descobrindo quem lhe "matou". Então, basicamente, trata-se de uma história de detetive onde vemos o "morto" investigando o álibi e os eventuais motivos que o(s) suspeito(s) teria(m) para envenenar Luthor.

Quem acaba se tornando seu elo de ligação com os integrantes da LJI é a Gelo; o que o faz entrar constantemente em rota de colisão com Guy Gardner, o ciumento ex-namorado dela. Em algum momento, Tora Olafsdotter vira algo mais e fica difícil não comparar o visual do casal com os de George Clooney e Ana de Armas. Por sinal, Greg Smallwood tem tanto mérito quanto King no prêmio Will Eisner 2023 de melhor minissérie. Vou mais longe, a história se torna o que é por causa do artista.

Ponto controverso: alguns amigos levantaram a bola que o casting dessa Liga sofreu descaracterizações ao longo da trama. Sendo bem franco? Sei que o King peca por esse lado - e a ficha corrida dele tem antecedentes criminais como Heróis em Crise para corroborar com a acusação -, mas não vi nada de mais nas interpretações dele sobre Tora, Beatriz, Ted, Michael, Guy, G'Nort e Dmitri.

Na realidade, penso que o roteirista se aproximou mais da versão novelesca de Dan Jurgens do que propriamente da fase cômica de Keith Giffen, J.M. DeMatteis e Kevin Maguire. Por outro lado, ouvi comentários negativos sobre a "interação" de Jonn com a Fogo, como se aquela situação meio "sadomasoquista" já não tivesse sido explorada antes na reta final do run de Joe Kelly. Desconstrução? Talvez seja só questão de perspectiva ou uma maneira personalíssima que cada um enxerga aquela equipe.

Meus destaques: a história conjunta com o Besouro Azul, no qual vemos como Ted Kord concilia o cotidiano de super-herói e bilionário do ramo das big techs (nº 4); a sequência de treinamento em defesa psíquica ministrada por Satúrnia, que desemboca numa cena de jantar com o Caçador de Marte (nº 5); a sessão de interrogatório conduzida pelo Soviete Supremo (nº 8); e a perseguição do "Batman" que não estava lá (nº 9).

Aliás, essa última é uma das melhores da maxissérie. Se não for a melhor. Nela, Chris acha que está sendo caçado pelo Batman e tenta ficar alguns passos - e um ou dois socos - a frente dele. É o tipo de história que sinto falta de ler nos títulos regulares do morcego.

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