Chega
essa época, começa a pipocar as listinhas de melhores do ano. Já fui mais aplicado
nesse quesito, de registrar em bloquinhos os meus destaques e até de fazer um
esforço sincero em leituras de lançamentos. Eu era mais novo. Hoje,
lamentavelmente, sou uma alma velha em um corpo decrépito. Como diria, o Sr.
Vonnegut: “Coisas da vida.”
Não,
não vou desperdiçar o seu tempo tentando capitular o meu Best Of, mas se me permite uma única exceção, eu gostaria de
redigir umas breves linhas sobre o meu livro favorito de 2024. Ou melhor, o meu
livro favorito de 1987.
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Primeiro
de tudo, todo leitor que se preze está sempre em busca de um projeto exótico
para chamar de seu. Assistir à filmografia de Stanley Kubrick, ler na íntegra o
Quarteto Fantástico de Stan Lee e Jack Kirby... Tenho um amigo que pretende
zerar a bibliografia de Stephen King,
provavelmente contando com a crença de que ele é imortal. Por outro lado, creio que se nós, reles
mortais, pararmos tudo, nunca mais trabalharmos, nunca mais lermos um quadrinho
e desistirmos da vida social, talvez, só talvez consigamos chegar ao fim dessa odisseia
terrestre faltando ler uns 20 livros do King. Mas, se o meu amigo acredita que
pode fazer isso, eu é que não vou colocar juízo na cabeça dele.
De
qualquer forma, de meados de 2021 até agora, fim de 2024, também estou
movimentando um projeto pessoal: ler todos os romances de Isaac Asimov ligados diretamente e incidentalmente à chamada História do Futuro. O que seria essa
História do Futuro? Trata-se de uma expressão usada para denominar a conexão
entre os romances da Fundação, a Série dos Robôs e a trilogia do Império (Correntes do Espaço, Poeira de Estrelas e Pedra no Céu).
Somente aqui são quinze títulos. E então, avancei para outros que não fazem
parte oficialmente dessa História do Futuro, mas, como Asimov não consegue se conter, ele sempre trabalha conceitos que, para quem está imerso nesse
universo, com certeza serão percebidos como conexões. Isso inclui O Homem Bicentenário, Nêmesis e minha leitura mais recente, A Viagem Fantástica 2: Rumo ao Cérebro.
Antes
que você pergunte, existe uma explicação rápida para o nome deste livro sugerir
uma continuação. Isso ocorre porque, na verdade, o primeiro Viagem Fantástica (Fantastic Voyage) foi um filme de 1966,
em que Asimov trabalhou adaptando o roteiro – que não foi escrito por ele –
para um livro. Como a novelização chegou às livrarias antes do lançamento nos cinemas, muitos leitores acreditavam que o filme era uma adaptação de um
romance do Asimov. E isso o deixava bastante irritado, pois ele
acabou revelando mais tarde que não gostava do resultado, embora tenha se esforçado para dar
verossimilhança científica ao enredo, o que era uma de suas assinaturas estilísticas[1].
Portanto,
Asimov aceitou fazer esse trabalho encomendado, emprestando sua retórica
científica, mas depois se ressentiu disso. Em 1987, ele lançou uma continuação
que, na verdade, não era uma continuação. Trata-se de uma história original,
aproveitando apenas a ideia da miniaturização e a viagem dentro do corpo
humano em uma nave com propulsores de microfusão. Essa já é uma grande
diferença, pois no filme o veículo era classificado como um submarino.
Realmente,
não entendo por que esse livro precisava ser nomeado como se fosse uma
sequência, a menos que fosse uma exigência editorial ou uma questão de copyright da Fox, produtora do filme de
1966. Enfim, ainda não falei da história de Asimov. Estamos no século XXI,
provavelmente nos últimos anos desse século. Como o ano de publicação foi 1987,
naquele mundo real de outrora, Asimov ainda não havia testemunhado a Queda do
Muro de Berlim em 1989, tampouco a dissolução da União Soviética em 1991.
Assim, em se enredo, a União Soviética ainda existia, embora a Guerra Fria,
como a conhecemos, já tivesse ficado para trás. O que ocorria, de fato, era uma
corrida pelo progresso tecnológico:
Nesse
contexto, um neurofísico americano chamado Albert
Morrison passa a ser sondado pelos soviéticos para ajudar a solucionar um problema
enfrentado pelo projeto secreto de miniaturização. A descoberta da
miniaturização ainda não havia sido publicizada por canais oficiais ou
periódicos da comunidade científica internacional. Por outro lado, Morrison
vivia no ostracismo, ridicularizado entre seus pares, pois acreditava que,
durante seus estudos sobre o cérebro humano, utilizando um software criado por
ele mesmo, havia sido capaz de sentir ou ouvir pensamentos de terceiros.
Diferentemente
dos americanos, os soviéticos acreditam que as teorias de Morrison podem ser
verdadeiras. O problema é que ele nunca conseguiu reproduzir seu experimento,
isolando células nervosas, nem seus estudos publicados foram testados com êxito
por seus pares. Assim, seria uma oportunidade perfeita para ganhar credibilidade,
não fosse Morrison um completo covarde, fora que ele sequer acreditava que os
soviéticos já haviam dominado a técnica de miniaturização. Correndo por fora, a
Inteligência Americana, sabendo do interesse soviético, deseja que Morrison vá,
sim, com eles e reporte tudo o que fez e viu. Porém, nem com o aval dos Estados
Unidos ele se dispõe a ir.
Então,
Morrison é sequestrado e levado à União Soviética para ajudar no projeto. O
problema central está no alto dispêndio de energia na aplicação da miniaturização.
Caso não resolvam isso logo, o Partido provavelmente precisará pesar os prós e
os contras e fechar o projeto. O principal cientista soviético, Doutor
Shapirov, havia encontrado uma solução, mas não chegou a registrá-la antes de
entrar em coma. Assim, os cientistas soviéticos pretendem realizar uma viagem
ao cérebro de Shapirov para que Morrison use seu software e consiga ler os
pensamentos do cientista, recuperando o conhecimento perdido:
A
narrativa envolve toda a preparação para a viagem, a apresentação da tripulação
e os percalços da missão. A nave, precária e construída a toque de caixa,
reflete as limitações soviéticas. Para piorar, já que estão lidando com um
moribundo, o pequeno grupo tem um deadline
apertadíssimo para cumprir esse objetivo. Aliás, além de Morrison, completa o
time de “micronautas”: 1) Sophia, a
bióloga que controla os campos eletromagnéticos da nave, para que a mesma fique
invisível ao organismo de Shapirov, e não seja atacada por glóbulos brancos; 2) Yuri, o arrogante navegador que através
de um mapeamento dos vasos capilares, usa a corrente sanguínea para direcionar
a travessia até as células nervosas; 3)
Arkady é o piloto, engenheiro – e pinguço! –, responsável pelo projeto da nave
e, de certa forma, o alívio cômico por sempre compartilhar ensinamentos e
ditados espirituosos do pai; 4)
Boranova, a comandante da equipe, controla tanto os campos de miniaturização
quanto os ânimos exaltados na minúscula cabine de pilotagem.
E,
como é característico em Asimov, há o desenvolvimento de ideias científicas,
com conexões que podem sugerir a origem da telepatia no universo da História do
Futuro. Que é um dos grandes tropos dele. Se você leu a Segunda Fundação, com a trama do Mulo, seu cérebro chega a estralar quando começa a fazer as conexões;
inclusive, porque a telepatia segundo Asimov não é um dom à moda Charles Xavier. No estado de coisas de Fundação, a habilidade parte do princípio
comum do controle de emoções, com personagens empatas, capazes de fazer
leituras sensoriais do que se passa na cabeça alheia. Em Viagem Fantástica, é
possível visualizar os primórdios dessa habilidade, partindo de biotecnologia em
humanos aprimorados com potencial para possibilitar as estranhas aplicações em
robôs sencientes como R. Giskard
Reventlov e R. Daneel Olivaw.
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Mas Viagem Fantástica é um livro independente. Não é necessário saber de nada disso e, confie em mim, além do sci-fi hardcore, o texto ainda se arrisca como um thriller de espionagem. Se me dissessem que era o John Le Carré, de O Espião que Saiu do Frio, fazendo uma contribuição, eu cairia como um pato. Mas o que te faz fechar os olhos e voar longe é imaginar como deveria ser esse traslado impossível, em nível molecular:
Confesso que depois desse trecho, até toquei o play na intro de Clube da Luta para rever o labirinto de sinapses dentro da cabeça de Edward Norton.
Outro sinal da rabugice que vem grátis com a idade: hoje em dia, não dou a mínima para adaptações. Se tiver lido o livro ou o gibi que inspirou um live-action, meu interesse e empolgação ficam abaixo de zero. Entretanto, adoraria ver um diretor sério brincando com esse romance. E eis que, então, busquei rapidamente no Google se existe algum plano de produzir um filme de Viagem Fantástica e olha ali...
No chão! Conseguem ver...?! É o meu queixo que se espatifou!
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Infelizmente, é um livro fora de catálogo. No Brasil, foi publicado em 1987 pela Editora Best Seller e, em 1989, pela Nova Cultural. Ainda é possível encontrá-lo na Estante Virtual por valores entre R$ 9 e 36, além de versões digitais em ePub para leitura no Kindle. Com 440 páginas, li em dez dias. Não tenho dúvidas que você as lerá em bem menos tempo.
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Links Afiliados
[1] Por exemplo: Andy Weir, autor de Perdido em Marte e Devoradores de Estrelas, faz sucesso com essa abordagem de
trabalhar discursivamente com ciência real para ativar a suspensão de descrença
no leitor. Pode apostar que uma das referências desse autor é o Asimov.