Com
a abstinência do Twitter, estou redescobrindo que antes de ser um tuiteiro
aplicado, eu costumava usar esse blog como um espaço de descarrego. Não
exatamente como cantilenas vazias, mas para comentar rapidinho o que estou
assistindo, lendo e, claro, a inquietação do momento. Lógico que, com 280
caracteres, o papo lá era reto, retíssimo... Ainda assim, ao longo dos anos,
deixei vários insights[1]
que, hoje, por estarem inacessíveis, me arrependo bastante de não tê-los salvo
num bloco de notas mínimo. Um erro que não cometerei mais. Ou irei de um jeito
diferente e estranhamente parecido. De todo modo...
“ Apartar-se inteiramente da sua própria espécie é impossível. Para viver no deserto é preciso ser santo. ”[2]
✨✨✨
Nós
nos achamos imortais. Compramos pilhas e pilhas de gibis, alguns dos quais, com
dimensões e pesos que inviabilizam até mesmo suas leituras com alguma dignidade
e ergonomia. O imediatismo ou a mera certeza da invencibilidade não dá chance
para cogitar se, num futuro próximo/distante, sequer teremos condições de, por
nossas próprias forças, retirar volumes assim da estante. Aliás, caso a
(remota) possibilidade de virarmos ração de verme se concretize, só peço que
Deus tenha piedade dos nossos entes queridos.
No
meu caso, além do lugar onde moro, possuo caixas e mais caixas de quadrinhos
acondicionadas na casa da minha mãe e sogra. Quer dizer, no dia que eu me for,
tenho certeza que meu bom nome seguirá sendo profanado por um tempinho. Mas
conjecturas mórbidas à parte – batam na madeira! –, no alto dos meus 42 anos, confesso
que estou começando a olhar com outros olhos para a existência física de tudo aquilo que sempre gostei de ler ou ver e
manter comigo aqui, à distância do braço.
Paradoxalmente,
isso passa pela inversão da história do vazio de William King, de que os
indivíduos colecionam objetos ante a necessidade de preencher vazios
interiores, às vezes, por causa de experiências de vida negativas, outras vezes
para sobreviver num mundo que considera hostil[3].
Por que falei em inversão? Porque sinto que meu próprio vazio já começou a
transbordar e precisa ser esvaziado. Ou, caso contrário, não precisa mais ser
preenchido, ao menos não no sentido físico.
Eu
me peguei pensando nessas coisas enquanto lia Nêmesis, de Isaac Asimov.
Não que o livro trate desse tipo intermitência da morte – ou será que trata?[4]
–, mas enquanto o devorava ocorria o mais recente Prime Day e, com ele, vi
promoções bem sedutoras em torno das coleções da Fundação, Série dos Robôs
e Império. E aí, por reflexo,
coloquei os (quatorze) livros no carrinho. Quando estava na iminência de pagar,
parei e pensei comigo mesmo: “eu paguei
e li todos via Kindle, por que preciso tê-los na estante?”.
Antes
não os tivesse lido. Antes tivesse acabado de assistir a O Mundo Depois de Nós,
e me apavorado com uma existência sem mídia física. Não é o caso, e não me
assusto fácil. O período em que esses pensamentos começaram a tomar de assalto
meu cotidiano coincide com a época em que estava concluindo a leitura de
Starman. O arco de despedida de Jack Knight abriu um rombo no meu peito e
preencheu todos os vazios super-heroicos que ainda teimavam em existir.
Senti
como se eu fosse o Névoa e o próprio
Ted Knight estivesse me levando
embora. Contudo, em vez de explodir lá em cima, na estratosfera, sigo aqui
embaixo. Isto é, no lugar mais baixo que já estive como gibizeiro, comprando as Sagas[5]
que coleciono com uma má vontade daquelas; pechinchando os volumes de Lúcifer com o risco de vê-los
esgotados; e – acredite se quiser – até um pouco enjoado da mídia como um todo.
Obviamente,
deve ser algo passageiro, o que não muda o fato de que, agora, em 4 de setembro
de 2024, eu sinta que fui embora junto com Jack. Sim, quando virei a última
página de Starman nº 80, apagou uma luz e algo me dizia que, em matéria de
super-heróis, nada mais precisava ser dito. A partida de Jack, resolvendo todas
as pendências em Opal City, dirigindo-se para uma nova vida em São Francisco, é
uma metáfora que grudou em mim.
Caracterizado
como um outsider num mundo ficcional,
Jack começa Starman como um super-herói relutante, aceitando o legado de
família desde que o pai, Ted, use a expertise em energia cósmica para criar
coisas úteis à sociedade. Com o tempo, ele aprende a curtir a experiência, faz
vários amigos, alguns poucos inimigos e até realiza um mochilão pelas galáxias. Perdeu
o irmão sem nunca conhecê-lo de verdade. Ganha um filho em circunstâncias bizarras. Conhece melhor o irmão num
insólito além-vida. Conhece o amor de uma mulher. Perde o pai. Será pai
novamente. Dá as boas-vindas a novos heróis locais. Decide se aposentar da vida
de combate ao crime. Decide viver a vida com a família em outra cidade. Viver
outra aventura.
🌟🌟🌟
Enquanto aguardo vossas deliberações, seguirei lendo o meu 2º romance da série Parker, de Richard Stark. Outra hora, falo sobre isso. Por ora, uma dica de amigo: evite ler Starman! Esse gibi vai acabar com a sua vida.
🌠🌠🌠
Links Afiliados
[1] Porra! Lembrei agora de uma thread que fiz sobre a leitura da
Biblioteca Eisner... Que ódio!
[2] Epígrafe contida em Golpe
de Misericórdia, de
Dennis Lehane.
[3] Uma ilação, hoje em dia, muito popular,
saída das páginas da obra Collections of Nothing (2008).
[4] “ [...] a vida é uma sinfonia de perdas sucessivas.
Perdemos nossa mocidade, nossos pais, nossos amores, nossos amigos, nosso
conforto, nossa saúde e finalmente nossa vida. Negar as perdas é perder tudo
isso de qualquer maneira e perder, além disso, o autocontrole e a paz de
espírito. ”
[5] Quais sejam: Sagas do Batman, Superman,
Mulher-Maravilha, Flash, Vingadores e X-Men.
9 comentários:
Muito bacana seus comentários sobre Starman. Estou comprando os gibis, e devo ler em algum momento. Acabei de ler esses dias praticamente tudo o que o Geoff Johns escreveu para o Superman (ouvi os seus podcasts a respeito, bem bons). E estou pensando em continuar lendo as paradas do Johns, e pensei em pegar o Sociedade da Justiça. Abraço!
Salve, Matheus! Os anos pré-Novos 52 do Johns são o crème de la crème. Você falou na SJA dele... Bem, eu não iria direto p/ mensal de 1999. Partiria da minissérie Era de Ouro, de James Robinson e Paul Smith; começaria Starman e só lá perto do final desse gibi, iniciaria a leitura da Sociedade. Explico. O relançamento da equipe tá a cargo do próprio Robinson e o David Goyer. Johns só entra no gibi do 2° ano em diante. Então, de certa forma, essa versão da SJA nasceu como um spin-off de Starman.
Quanto ao Super do Johns, ele meio que acende o pavio e deixa p/ James Robinson e Greg Rucka soltarem o rojão de Novo Krypton. Por um tempo é muito bom, mas falta coragem na reta final. Por sinal, me lembra muito o clímax de Krakoa.
Abração.
Por acaso comprei num sebo o Sociedade da Justiça: era de ouro. Vou fazer isso que você me disse, seguir essa ordem de leitura 🙏🏼
Sobre o Superman, eu já tinha lido aqueles 3 encadernados da Panini, mas não tinha lido o que ele co-escreveu com o Busiek (antes do Último Filho), e as singles entre os encadernados. Li agora Novo Krypto, mas somente até onde tem o Johns (quando Novo Krypto sai da Terra), queria dar esse recorte, mas fiquei curioso para saber o que acontece depois, e estou pensando em ir atrás.
A gente tem conversado tanto sobre isso nas últimas semanas (meses até, volta e meia) que seria redundante despejar aqui o falatório. Mas a sensação de que já tenho QUASE tudo que quero, ainda mais depois de uma euforia de compras no fim do ano passado e no 1o semestre desse.
E a impressão de que já li o que tinha pra ler de supers, apesar de seguir com quase os mesmos Sagas que tu, é evidente a cada mês, a cada soft reboot, a cada megassaga que promete uma falsa impressão de renovação. Veremos 2025. E se te contar que até nos europeus, argentinos e japoneses praticamente tudo é de 20 anos pra trás… De novo mesmo o que venho acompanhando o que a dupla Brubaker & Philipps produz, além do Conan da Titan e Departamento da Verdade.
Preciso ler alguns kg de gibis essenciais antes de partir pra Starman e seguir o cortejo fúnebre dos super-heróis. Certeza que irei pelo mesmo caminho de ficar quebrado com a experiência. É visível (e inspiradora) a sua paixão quando escreve sobre a série.
Esses excertos do Ted resolvendo suas pendências em vida me lembrou o Renato Villar (protagonista de Roda de Fogo!). Incluindo o final triste, mas lindíssimo. Tô véio demais, nossa.
Sobre a coleção herdada na marra, meu medo é que me ressuscitem só pra me matar de novo. Só de lembrar do peso de uma caixa de gibis... imagina trocentas. Disk entulho é pouco.
E meio que subscrevo o Do Vale. Já tenho tudo o que quero/preciso de comics. E BD, depois de Blueberry e, ainda, Ken Parker, vou fechar a franquia.
Do Vale, cê falou em Conan... Esse foi outro que esmoreci também. Após Rei Conan do Jason Aaron e o Mahmud Asrar, não consegui mais me reconectar com o personagem. O Jim Zub até que é um bom escritor e tá vendendo uma premissa interessante, integrando todo o universo literário do Robert E. Howard, mas depois de tantas (boas) histórias na Dark Horse e a 1ª Era Marvel do Roy Thomas e John Buscema, fico com a sensação que tô girando em círculos.
Dogg, vou ler gibi até abotoar o paletó de madeira, mas, como sugeri, não me vejo comprando mais muitos deles. Estaria sendo hipócrita se dissesse que o lado financeiro não incomoda, porque incomoda... muito. Afinal, gibi bom de super-herói é gibi caríssimo. Quer dizer, quem em sã consciência na nossa velha guarda, não gostaria de ter o Arqueiro Verde do Mike Grell...?! Eu adoraria, só que aí pagar R$ 300 por ele, ou vá lá, ficar na moita aguardando promoções viáveis, mesmo sabendo que o formato é o pior possível pra ler... É algo que já não bate com o meu perfil. Aliás, quanto mais envelheço, mais eu atinjo esse tipo de maturidade:
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E no fim, ainda tem isso...
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Ahh, sobre sua morte... Certeza que vc fará a alegria do noticiário capixaba e as firmas que alugam retroescavadeiras. Mas a gente sempre pode morrer em vida depois que lê Starman.
Abração, meu velho.
Só complementando, tenho tudo o quero/preciso de comics há uns cinco anos mais ou menos. Provavelmente vou continuar fechando carrinhos até debaixo de sete palmos, mas se fosse parar agora, não teria nenhum voto contra. Pelo contrário...
Li e tenho tudo o que publicaram do Arqueiro do Grell, mas quero a revisão histórica de alguém que consumiu aquilo pela Abril. Não suporto a ideia dos cortes e do copydesk. Se tirar a nostalgia, não sobra nada.
E tem o caso X-Táticos. Comprava a X-Extra só por causa deles. Mas quero tudo compiladinho à parte e temático. Então vou pegar o busão para alimentar o verme cosmético da existência física, hehe
Em tempo... medidas de terrorismo legal à parte, li por aí que aplicativos como o WFDownloader importam o conteúdo de uma conta. Pessoalmente, tascaria o foda-se e meteria logo o VPN na causa (ou VPN + Tor, se a paranoia estiver atacada), só pra salvar o que produzi e pronto.
Só pra fins de registro: entre os chegados, já admiti que jogo uma praga sempre que sei de alguém comprando um omnibus. Faço mandinga pra que, assim que aberta a caixa, o volume caia no chão e lasque a lombada; e dedão do pé no processo. Nada pessoal. :)
Sobre o VPN, confesso que temos aqui. A patroa paga assinatura de anti-vírus, e vem incluso, mas sou um frouxo assumido. Não tenho coragem, nem pra uma operação de resgate justificada. Meu John Rambo interior morreu no livro original.
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