sábado, 31 de agosto de 2024

A SEGUNDA MORTE DO TWITTER

A primeira, vocês bem sabem. Foi quando a compra da rede social por Elon Musk foi oficializada. Do lado de cá, em 1º de janeiro desse ano, decidi reativar essa birosca com a intuição de que a coisa ia implodir... e implodiu. Acho uma pena. Hoje mesmo acordei e, como uma memória muscular, peguei o celular e abri o aplicativo do (e)X-Twitter para rolar a minha timeline. Dois segundos mais tarde, percebi que não estava atualizando, o que era esperado, dado o deadline da meia-noite estabelecido pela Anatel para interromper os acessos.

Então, a primeira coisa que me veio foi o Morpheus dando as boas-vindas ao Neo:

“Bem-vindo ao deserto do real.”

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Não pretendo buscar um substituto como muitos estão fazendo, ou por receio de se perder presença online, não ter como divulgar seus conteúdos ou puro vício mesmo. Na realidade, confesso que estou furioso comigo mesmo de ter publicado tantos textos em algo tão efêmero e de baixa qualidade organizacional. Ontem, antes do fim, me vi tentando salvar todos os comentários que fiz sobre os dezenove livros lidos de 2021 para cá do universo literário de Fundação, de Isaac Asimov.

Tive êxito, claro, mas isso foi o mínimo. Compartilhei inúmeros pensamentos ou sentimentos sobre leituras e a vida acontecendo em tempo real. Acho que alguma hora a rede social voltará, tamanho são os interesses econômicos e políticos envolvidos. Talvez eu mesmo volte se ela voltar, no entanto, jamais voltarei a fazer o que fazia por lá nas duas primeiras vidas do Twitter.

💀💀💀

Mais Morte:

Se o Twitter estivesse ativo agora, o meu primeiro tuíte do dia teria sido uma foto segurando meu volume de Morte. Comecei a reler hoje cedo com a próxima gravação d’os Escapistas em mente; num último retorno a nossa série Sandman Anotado. Aliás, a primeira vez que iremos discutir um trabalho do Neil Gaiman após a avalanche de merda que vem enterrando sua reputação de bom moço.

Por sinal, a introdução escrita pela Amanda Palmer, me fez olhar para a ironia do destino, imaginando se sua atual ex-esposa, quinze anos depois[1], ainda mantém o que disse sobre " [...] como se pode avaliar a personalidade de uma pessoa com base em ela manter ou não uma amizade decente com ex-cônjuges ou ex-amantes. Porque quem não consegue manter a amizade nesses casos, provavelmente é um babaca ".

Fora isso, é um texto bem qualquer nota, assim como a esmagadora maioria dos prefácios da coleção dos 30 anos; no qual, notáveis são convidados para apresentar os volumes e eles falam de qualquer coisa, menos do gibi. No caso do relato da Amanda, metaforizando performances dela com a personagem Morte, soa até egocêntrico. Nada contra a artista que, por sinal, é um case de sucesso no lance do crowdfunding.

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Por ora, estou em negação, mas amanhã tem Flamengo e Corinthians. Me pergunto como farei pra cornetar e xingar o Malvadão sem o ódio fácil e convidativo do velho Twitter (?!). 



[1] A tal intro data de 2009. Eles se casaram em 2011, e a separação foi anunciada em 2022. Em tempo, o fofoqueiro de plantão dentro de mim crê que a linha “ Eu falo demais e frequentemente me meto em problemas ” dá indícios de uma senhora esfregada da cara no asfalto.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

DA LAMA AO CAOS

" [...] de que não somos amados; de que o objeto de nossa afeição é frio e infiel... Por quê? Por que nunca vemos a traição nos olhos delas até ela ficar cara a cara conosco? Eu entendi tudo. Eles se viam desde o princípio. Provavelmente, planejaram o incêndio no museu de cera para me tirar do caminho. Quantas vezes? Quantas vezes ele subiu sorrateiro estas escadas do setor de livros e papelaria, passando pelo de acessórios de jardinagem até chegar ao departamento de roupas femininas? Quantas vezes ela tolerou meus beijos com desdém e escárnio, o tempo todo aguardando pelo sinal no céu que a avisaria de sua chegada? Quantas vezes? Sendo bem franco, isso não me importava mais. Eu não me importava mais quantas vezes, quantos homens e com que freqüência. Eu não me importava mais com números. Só havia um pensamento em minha mente, uma inabalável determinação: NUNCA MAIS. "

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Essa passagem pertence à história Barro Mortal, com roteiro de Alan Moore e arte de George Freeman, publicada em Batman Anual nº 11, de julho de 1987. Aqui no Brasil, foi lançada em fevereiro de 1988 pela Editora Abril, dentro da 6ª edição da segunda série mensal do Batman. Esse conto só voltaria a ser republicado quase vinte anos depois, em 2006, dessa vez pela Panini, dentro do encadernado Grandes Clássicos DC nº 9, dedicado integralmente ao barbudo. Fora de catálogo há um bom tempo, esse encadernado ganhou uma versão de luxo, trazendo novamente essa história em 2022; mas antes disso, também integrou a A Saga do Batman nº 1 em 2021.

O monólogo é de Preston Payne, o terceiro personagem da galeria de vilões do Batman a usar a alcunha Cara de Barro. Nela, ele está há alguns meses vivendo escondido em um shopping center, alimentando um insólito romance com um manequim que chama de Helena. Em algum momento, Payne começa a imaginar que está sendo traído e passa a acreditar que o Ricardão é o Batman. Trata-se de um singelo tratado de amor e ciúme, e a loucura que pode preencher as duas coisas.

Nas linhas a seguir, além de Barro Mortal, iremos ao encontro do arco Quadra de Lama, que desenvolveria posteriormente a condição de Preston Payne e o reuniria com os demais Caras de Barro.

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A primeira vez que encarei Barro Mortal foi justamente via republicação, em Grandes Clássicos DC nº 9. Uma curiosidade sobre a produção desse conto é que Alan Moore o escreveu após concluir o roteiro de A Piada Mortal, mas acabou que, provavelmente por conta do nível de sofisticação da arte do Brian Bolland, Barro Mortal acabou saindo bem antes, em julho de 1987; enquanto que Piada Mortal só viria à luz um ano depois, em julho de 1988. Como toda boa história, ela é atemporal. Se você estiver lendo esse texto daqui a cinco, dez anos ou mais, e tiver curiosidade sobre esse conto, vai lê-lo e ainda se deliciar com a delicada ironia presente aqui.

Pensando bem, pode-se dizer que esse tipo de HQ de super-herói anda em falta. Por que afirmo isso? Porque, hoje, via de regra, existe um excesso de protagonismo do personagem-título e, muito raramente, o leitor se depara com algo em que quem dita as ações no recordatório não sejam o próprio dono da revista; nesse caso, o Batman.

Vou até mais longe: a beleza de uma boa história do Batman está na condução de uma narrativa, talvez onisciente, mas que não sabe ou passe exatamente a ideia do que ele está pensando naquele momento. Algo que, na minha opinião, reforça o mistério sobre o personagem. O que tem para hoje, porém, tem sido um Batman nu. Um Batman transparente, que fala sobre suas angústias, suas paixões, sobre seus medos. Chora. Ele abraça. Abraça demais, e isso é tudo o que não aprecio no Batman contemporâneo.

E, veja só, num simples quadro aqui, o vemos estendendo a mão para o Cara de Barro, explorando, sem qualquer afetação, a compaixão como algo natural no herói. Então, é com muita alegria e tristeza que revisito Barro Mortal. Alegria, por reencontrar esse quadrinho excepcional. Tristeza, pela percepção de que as chances de voltar a topar com algo assim são bem remotas.

Do line-up da Saga do Batman inaugural, sem dúvida alguma, a melhor história é essa do Alan Moore com o Cara de Barro. Melhor, porém deslocada. Porque faria mais sentido segurar um pouquinho a mão e a relançar junto de Quadra de Lama, que sai originalmente entre Detective Comics nº 604-607 (1989); e no nosso Saga, dentro do Volume 13 (2022). Voltando um pouco a fita, esse arco de Alan Grant e Norm Breyfogle foi o destaque das edições nº 8-9 da 3ª série mensal do Batman pela Abril. Curiosamente, esses dois números saem sem um delay tão grande, que era a regra para época; precisamente entre setembro e outubro de 1990[1].

O que desde já fica bem claro, é que Grant procurou se inteirar sobre cada uma das quatro encarnações dessa alcunha vilanesca, mostrando uma aptidão pela pesquisa histórica que viria após aquele “Ano Vertigo”, dada a obrigação de, doravante, estar a par com as minúcias da cronologia do Universo DC[2]. Então, me parece seguro imaginar que o escritor passou os olhos no gibi do seu conterrâneo britânico e percebeu que havia ali uma deixa clamando por um desenvolvimento posterior, tanto é que o começo de Quadra já parte da premissa que Preston Payne está preso no Arkham, em companhia da manequim Helena.

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Karlo &

Hagen &

Payne &

Fuller.

O Cara de Barro original surgiu no princípio de Batman, na Era de Ouro, em Detective Comics nº 40 (1940); com roteiro de Bill Finger e arte de Bob Kane. Isto é, treze edições depois da estreia no nº 27. No Brasil, foi chamado inicialmente de o “Cara Suja”. Na realidade, ele era só um ator de filmes B chamado Basil Karlo, que se revolta ao descobrir que o estúdio faria um remake de seu maior clássico e acaba assassinando alguns atores da produção. O Batman entra em cena, justamente porque uma das atrizes da produção era Julie Madison, um dos primeiros interesses amorosos de Bruce Wayne.

Ao ser capturado, percebe-se que Karlo não passa de um homem com maquiagem grotesca simulando barro. Sua soltura só se daria em Quadra de Lama; editorialmente falando, foram quase 50 anos de cárcere! Na história de Grant e Breyfogle, parte dele a iniciativa de reunir os seus sucessores numa vendetta contra Batman, contudo, com uma agenda própria. Na recém-lançada série animada, Cruzado Encapuzado, ambientada nos anos 1940, Karlo é retratado como um ator que deseja melhorar sua aparência e se submete à fórmula experimental de um cientista. O resultado não é o desejado, mas lhe confere a capacidade de emular os rostos alheios.

Matt Hagen foi o Cara de Barro II e, provavelmente, o mais conhecido. Também criado por Bill Finger, mas com arte do Sheldon Modoff, seu debute se deu em Detective Comics nº 298 (1961). Trata-se de um caçador de tesouros que encontra uma caverna cujo interior havia uma piscina radioativa de protoplasma. Ao se banhar acidentalmente nesse lamaçal, ele desenvolve poderes transmorfos, superforça e invulnerabilidade. Todos, porém, temporários, o que o impunha voltar à câmara secreta para mais banhos. Em Lendas do Cavaleiro das Trevas nº 89-90 (1996), Alan Grant e Enrique Alcatena se juntam para dar novas camadas a essa origem.

Chamada simplesmente de Barro - inédita no Brasil -, a história tem lugar nas três primeiras semanas de Bruce como Batman. É explicado que Hagen acha a tal caverna ao fugir dos capangas do Chefe Xylas, o qual tinha passado a perna num roubo de diamantes. Lisa, sua namorada, ficou para trás e, eventualmente, ele vira o Cara de Barro e a liberta dos homens que a ameaçavam. Batman o vê destroçando os bandidos e tenta intervir. Não dá muito certo. Nada certo. Grant vende a ideia que foi nesse encontro que Batman descobriu da pior forma a existência de metahumanos. A experiência foi tão traumática que, ao se recuperar dos ferimentos, Bruce pede para atualizar seu testamento; fora a crise de insegurança que lhe acomete nos dias seguintes. Ao superá-la, ao domar o próprio medo, não importa a ameaça, humana ou super-humana, ele daria conta, controlaria o mundo

Todavia, o momento mais desconcertante de Barro é quando Lisa - a única outra pessoa que conhece a localização da piscina -, se vê exaurida com a mudança de Hagen, e pede para acabar o relacionamento. Eles se despedem num último abraço; para ela, literalmente. Já o namorado lamacento, se despediria, ou melhor, seria uma das vítimas da Crise nas Infinitas Terras. Inclusive, a participação em Quadra de Lama é mínima, numa tentativa em vão de usar os "restos mortais" para restaurá-lo.

Recapitulando: O Cara de Barro já foi um artista e um aventureiro. O próximo seria um cientista. Preston Payne era um pesquisador que sofria de acromegalia com hiperpituitarismo crônico. O tal gigantismo. Por conta de sua aparência, Payne tinha sido uma criança complexada, sem amigos e com Q.I. de gênio. Quando adulto, ele se emprega nos laboratórios DELTA e se especializa em doenças hormonais. Em algum momento, ele se interessa pela condição de Hagen e o visita na prisão, coletando uma amostra de seu sangue.

No laboratório, consegue isolar uma enzima que quando injetada no sangue tornava seus tecidos maleáveis. Dá tudo errado e aí ele não conseguia mais se manter sólido; para não derreter, projeta um traje de contenção similar ao do Senhor Frio. Mas o principal problema era que, o toque dele reduzia outras pessoas a protoplasma. Daí para sobreviver, periodicamente, ele tinha que liberar esse poder sobre outras pessoas. Daí a culpa de ter que fazer isso periodicamente acaba deixando-o louco; como vemos em Barro Mortal.

A Cara de Barro, ou Dama de Barro, chama-se Sondra Fuller. Criação de Mike W. Barr e Jim Aparo em The Outsiders/Renegados nº 21, igualmente inédita por aqui. Aliás, essa série funcionava como um Volume 2 de Batman and The Outsiders e, infelizmente, nenhuma das 28 edições foi lançada pela Abril na época que a editora cuidava da DC. Cá entre nós, seria um "Saga" que eu certamente pegaria se rolasse. E no caso de nossa Sondra Fuller, como Renegados nº 21 nunca saiu, a primeira aparição dela para o leitor BR acabou sendo mesmo em Quadra de Lama.

Fuller era uma agente da organização Kobra, que aceita se submeter a um processo para ganhar os poderes de Matt Hagen, sendo que a transformação dela era irreversível. E ainda tinha o trunfo de mimetizar os poderes de algum super-humano que ela assumisse a forma. É revelado, inclusive, que a vilã topa se submeter a isso pela baixa autoestima, por se achar muito feia. Então, passa a usar a imagem de atrizes e celebridades até um ponto que fica depressiva por não poder ser mais ela mesma. E como visto em Quadra, são as visitas dela a Basil Karlo na prisão que idealizam a reunião dos Caras de Barro.

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Na realidade, todos são ludibriados e explorados por Karlo numa busca por poder, que o faz mesclar as amostras de sangue de Payne e Fuller, injetando o composto como um o soro em suas próprias veias. O resultado é uma abominação que se autodenomina de Cara de Barro Supremo. E, ainda que traídos, os Caras de Barro III e IV acabam se engraçando e formando um casal, com um final (divertidamente) antecipado para o par, deixando para que o Batman e a Divina (dos Renegados) deem conta do Supremo. No clímax, Karlo chega a extrapolar tanto o poder originário de Payne, que ele acaba derretendo o chão e atravessando indefinidamente a crosta terrestre.

Dali então, ele jamais voltaria a ser visto a não ser em Terra de Ninguém, no Robinson Park, tentando dominar Hera Venenosa; só para perceber que não podia lidar com a fração do Verde que ela detinha. Ironicamente, Karlo é transformado em solo para o cultivo de alimentos para que Batman pudesse distribuir aos desabrigados. Para fins de registro, a edição em questão era a Detective Comics nº 735 (1999), com Greg Rucka e Dan Jurgens.

Quanto a Payne & Fuller, eles passam a viver afastados da sociedade e até concebem um filhinho e o batizam de Cassius... O que é uma bela ironia do escritor escocês. Porque se você acrescenta "Clay" de Clay Face, que é o nome inglês de "Cara de Barro", temos o nome "Cassius Clay". Isto é, o nome de batismo do boxeador Muhammad Ali. Mas no Brasil da Editora Abril, acredite, chamaram o bebê de "João de Barro". Dá até para extrapolar mais nessa brincadeira dos sobrenomes, porque "Payne" deriva de "pain" ou dor; "Fuller" detona algo "mais completo" e, paradoxalmente, tudo o que Sondra não é, é uma pessoa dona de si... completa. Nesse ponto, Grant acaba extrapolando a ideia inicial de Moore, brincando sadicamente com pessoas quebradas, entrando de cabeça - até de manequim - em relações abusivas.

A família Payne levava sua vidinha (quase) bucólica até que o assassino Matadouro - na época do Batman Azrael -, está passando pela área deles e sequestra o menininho enquanto os pais tinham saído para uma caminhada. Desesperados, eles precisam voltar a Gotham para reaver Cassius, porém, topam com Jean Paul-Valley e o casal acaba na custódia dos Laboratórios S.T.A.R. Tudo isso acontece em The Shadow of the Bat nº 26-27 (1994), com Alan Grant e Bret Blevins. Bem mais tarde, em Batman nº 550 (1998), de Doug Moench e Kelley Jones, descobriríamos que, diferente dos genitores, o filho - ou o Cara de Barro V - foi parar no DOE, o Departamento de Operações Extranormais.

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Em meados de 2023, enquanto começava a fazer essas releituras, eu fazia anotações e crescia uma vontade irresistível de produzir uma série de podcasts em torno dessa temática. O desafio seria imenso, porque realmente gostaria de conduzir papos sobre o run de Grant; que é, inegavelmente, meu escritor quiróptero favorito. Só que a (minha) realidade me fez recobrar o juízo, mas não antes de gravar um programa órfão:

Download audio 

Nele, Reginaldo Yeoman e Marcelo Miranda - com o Do Vale nas vinhetas - se juntaram a mim numa conversa que se debruçou em alguns pontos desse texto. Esse "Detetive Cast" - como chamo Os Escapistas dedicados ao morcego - não constará no feed oficial e foi desmembrado em duas partes. Uma sobre Quadra de Lama, disponível acima para download ou ouvir aqui mesmo; e a outra sobre Tulpa, com O Demônio de Jack Kirby, a ser publicado no nosso próximo resgate psíquico. 😈 

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Links Afiliados


[1] Uma coisa que me chamava a atenção na publicação da Abril eram as fichas no final, detalhando os aspectos técnicos e a origem de cada Cara de Barro.

[2] E isso não foi à toa. Com o sucesso em Detective Comics, não demorou e Alan Grant passou a encabeçar outros trabalhos paralelos. Dentre eles, passou a dividir os créditos com outros escritores e artistas por cerca de quarenta edições de L.E.G.I.O.N (1989), também quarenta em The Demon (1990) e sessenta e cinco em Lobo (1993).

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

JUÍZO (IN)COMUM

Nos idos da década de 1990, pode-se dizer com segurança que a instituição do malfadado crossover tinha uma tocante função social, que era a de apresentar personagens até então exóticos ou, vá lá, fora dos eixos editoriais da Marvel e DC. O britânico Juiz Dredd era um exemplo perfeito disso, já que, àquela época, acabou se notabilizando apenas pelos encontros que teve com o Batman. Algo, hoje, impensável para a criação máxima de Pat Mills, John Wagner e Carlos Ezquerra, que goza de extenso catálogo em solo pátrio. Mas, insisto, nem sempre foi assim e todo o interesse que passei a nutrir sobre Joseph Dredd partiu daqueles gibis e, claro, do filme de 1995.

Esse (meu) interesse foi renovado com o anúncio de que Julgamento em Gotham e todos os demais intercâmbios com Mega-City Um estão para sair numa edição encadernada na segunda quinzena de agosto (de 2024). Daqueles, preciso dizer que um em especial, o segundo entrevero Bruce Vs. Joe, mora no meu coração das trevas. A despeito da visceralidade de Bisley, a capa incendiária de Mignola é C-4 puro:

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Antes, porém, de dedicar umas linhas à respectiva quadrilogia, umas infos rápidas sobre Dredd. Pode ser? Vamos lá.

Dredd trabalha em Mega-City Um, uma entre três das cidades gigantes na América do Norte, fundadas após uma guerra nuclear que devastou a maior parte do planeta. Esses centros populacionais são cercados por um deserto radiativo, infestado de mutantes, chamado Zona Infernal. Para impedir a completa derrocada da civilização, por volta de 2070, estabeleceu-se a Declaração de Julgamento, uma espécie de lei marcial que conferia aos juízes a autoridade de caçar e punir criminosos[1].

Os Juízes em potencial são recrutados pela Academia da Lei com cinco anos de idade e recebem quinze de treinamento. Os que conseguem se graduar tornam-se Juízes cadetes e são testados em patrulhamento na cidade sob a supervisão de um Juiz pleno. Um cadete só pode se tornar Juiz pleno com a aprovação do respectivo supervisor. Após a formatura na Academia e o êxito no treinamento em combate, Joe Dredd tornou-se Juiz pleno. Ele agora combate o crime na malha viária multinível de Mega-City Um pilotando um motociclo tunado, a Mestrelei, e portando a principal arma de um Juiz, a Legisladora.

Uns acreditam que é um clone do Juiz Fargo, o primeiro Juiz-Chefe, conhecido pelas gerações futuras como o Pai da Justiça, apenas respondendo ao Presidente por seus atos. Fato é que Dredd jamais retira o seu elmo e, não raro, suas penas autoaplicáveis tendem a ser mais cruéis ou equivalentes aos próprios delitos.

Tudo bem que as histórias (clássicas) de Dredd nunca se destacaram por sua seriedade, mas atente-se para alguns tropos presentes nos enredos: (a) saem numa época em que o movimento punk era uma febre na Inglaterra; (b) presença de críticas ferrenhas a brutalidade policial diluídas em galões de humor ácido; (c) lidam com falência das instituições constituídas ou o estado de direito tradicional; (d) sugerem o temor que se especulava sobre um crescimento populacional irresponsável e os problemas advindos dele; (e) especulam um worst-case scenario nos estertores da Guerra Fria e o que seria da civilização num Day After termonuclear.

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Não sou um leitor dos mais aplicados em matéria de Megazines (2000 A.D), mas confesso que o dissabor com as majors norte-americanas está começando a me aproximar mais dos títulos do Dreddverso. E se isso não for suficiente, basta lembrar que por lá ainda caminha um mestre que precisa mesmo ser exaltado, alguns que não estão mais entre nós – como Alant Grant e Carlos Ezquerra –, e outros que fizeram escala para se tornar o que hoje são, a exemplo de Grant Morrison, Mark Millar, Frank Quitelly, Garth Ennis e Brian Bolland.

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Fases do Processo

(1ª) Fase Postulatória → Os roteiros de todos os crossovers foram escritos a quatro mãos por John Wagner e Alan Grant, ficando a arte do primeiro, Julgamento em Gotham (1991), a cargo de Simon Bisley. O MacGuffin é dos mais básicos: o Juiz Morte consegue um cinto dimensional e a fim de facilitar sua distorcida filosofia de vida[2], ruma para Gotham. Ao interceptá-lo, Batman se apossa do mecanismo de teletransporte e acidentalmente volta ao seu ponto de origem, Mega-City Um. Lá encontra o comparsa de Morte, o Máquina Malvada (Mean Machine), que acabava de descobrir que fora traído por seu parceiro. Em confronto, os dois são abordados por Dredd e conduzidos aos Cubos de Interrogatório.

Batman não esboça qualquer reação, visivelmente pretendendo obter respostas. Lá, ele descobre que Morte ainda está "vivo" e tem que voltar o quanto antes para Gotham. Entretanto, Dredd acredita piamente que Bruce violou várias leis na sua rápida estadia em Mega-City Um e tem que cumprir uma pena de vinte anos. A partir daí entra em cena a Juíza Cassandra Anderson, da Divisão PSI, que ao ler a mente do réu, percebe a verdade do que está acontecendo. Então, ela ajuda o ajuda a escapar e aí está a ironia da dupla de escritores: em vez de Batman se unir ao Juiz Dredd, temos o Juiz Dredd perseguindo Batman e a Juíza Anderson juntos.

A partir daí, o restante da trama soa um pouco previsível, mas nem por isso menos divertido. A primeira impressão que se tem a respeito de Dredd não é das melhores, já que ele é visto apenas como um Juiz truculento que aplica cegamente as leis de Mega-City Um. Claro que é proposital, e a arte de Bisley dobra a aposta no nonsense, pontuando Batman como um combatente crime mais sério, enquanto que o Juiz ocupa o papel de figura caricaturada.

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(2ª) Fase de ContestaçãoVingança em Gotham (1993) é o resultado da escalada de tensões gerada na primeira minissérie. E bota tensão nisso: 22 das 52 páginas do one-shot são ocupados por um quebra-quebra antológico. Talvez um dos meus favoritos em matéria de pancadaria super-heroica, quase tudo na conta do traço cinético do (grande) Cam Kennedy.

A briga, aliás, de partida, parecia sem sentido. Tudo levava a crer que Dredd estaria em Gotham apenas para um acerto de contas com Batman. Na verdade, Joe tinha o objetivo de retardar Batman até às 19h45min, hora em que supostamente o vigilante morreria em um teatro, ao tentar salvar o público de um atentado a bomba. Na verdade, a tragédia anunciada não era o bastante para motivar o Juiz. O real motivo é que um PSI teve uma premonição e nela, num futuro próximo, Mega-City Um passaria por uma grande crise e precisaria da ajuda de Batman para contorná-la.

Outro detalhe de Vingança em Gotham é que a suposta morte de Bruce teria se dado pelas mãos de Ventríloquo/Scarface.

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(3ª) Fase de Instrução → Embora divertido, cravo que o one-shot A Charada Definitiva (1995) é o elo fraco entre os crossovers. Sequer parece que é a mesma dupla criativa que roteirizou os dois anteriores; o que pode ser dito também da arte do duo Carl Critchlow e Dermont Power. É boa, mas faz um esforço danado para se parecer com a do Bisley, e tenho que ser honesto: em algumas páginas, parecem cópias deslavadas.

Já a proposta é a seguinte: oito guerreiros de renome em seus mundos são selecionados, raptados e encarcerados em gaiolas suspensas. Para reconquistarem a liberdade, eles terão que lutar entre si, e só um poderá sobreviver. Como é de se esperar, Joe e Bruce estavam entre os oito guerreiros de renome. A conclusão chega a ser tão estapafúrdia que até a explicação, ou melhor, a dita “Charada Definitiva” é solucionada com algo tão estapafúrdio quanto: o evento Zero Hora.

Assim, não há de fato um combate entre Dredd e Batman, mas o morcego ao peitar o Juiz para levar o tal cetro para Gotham, convenhamos... Ele saiu cheio de moral.

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(4ª) Fase Decisória → A minissérie Morra Sorrindo (1998) atende a previsão PSI no desfecho de Vingança em Gotham, ou seja, Batman e Dredd se encontrariam mais uma vez, só que agora em Mega-City Um para evitar uma catástrofe inominável. E de fato o é. Lembram-se do tal Cinto Dimensional que o Juiz Morte usou em Julgamento em Gotham? Pois bem, em dado momento, na batalha no Parque Robinson, o gadget foi deixado para trás e achado algum tempo depois por pequenos delinquentes.

No Arkham, Jonathan Crane relata o ocorrido ao Coringa; já que o Espantalho foi uma das peças-chave da história original. Interessado pelo artefato do futuro, o palhaço do crime consegue fugir do asilo e arruma uma maneira de se apossar dele. De posse do mecanismo, ele se desloca para Mega-City Um, especificamente no dia em que os espíritos dos quatro Juízes Negros (Fogo, Fobia, Flagelo e Morte) iriam ser incinerados em uma tumba secreta.

A data também é histórica porque marca o dia em que dez mil hedonistas partirão para um autoexílio. Nele, os tais Hedonistas do Sétimo Dia buscarão na Megaesfera uma vida plena e totalmente libidinosa, onde cada desejo será satisfeito. Coringa sabe desse detalhe e vê nisso uma bela oportunidade. Por ser fã confesso dos Juízes Negros, ele realiza uma operação de resgate para burlar o comboio que leva os Cristais de Glassen (única maneira de confiná-los). O que acontece com sucesso.

Ao libertar primeiro o Juiz Morte, este último tenta se apossar da mente do Coringa logo de imediato, no entanto a mente do palhaço é tão perturbada que o espírito sai de supetão e visivelmente atordoada (hilário!). Assim, Coringa ganha o “respeito” de Morte, ao deixar claro que considera os Juízes Negros verdadeiros artistas, gênios criativos especialistas em juízos finais e genocídios. Ganha então o status de “Agente”, e, por conseguinte o dom da imortalidade. O plano a seguir é ter acesso a Megaesfera e serem (também) autoexilados com os futuros dez mil cadáveres.

O primeiro passo é desmantelar todo o comando tático dos Juízes de Mega-City Um, assumindo a identidade do Primeiro Magistrado Herriman (assassinado pelo Juiz Flagelo). Logo, Cassandra e Joe são prerrogativas primárias e devem ser eliminados o quanto antes. Ante a emergência, Cassandra divide sua mente e transmigra para Gotham avisando Batman. No processo se fere gravemente e permanece na própria Caverna.

A propósito, enquanto lia, cheguei a imaginar que o Bruce ia faturar a Juíza, dado os trajes sumários e o respeito mútuo que os dois nutriam um pelo o outro[3]. Em seguida, Batman parte para Mega-City Um para se encontrar com Dredd. Não chega a ponto de evitar o início da chacina, mas pelo menos reduz para a metade os danos colaterais. Trata-se da primeira vez dentre todos os crossovers que o texto de Wagner e Grant caracteriza vigilante e magistrado como iguais. No fim, rola até um previsível “aperto de mãos” para deixar isso bem claro.

Sustentação Oral

À época da publicação de Julgamento em Gotham, Alan Grant concedeu uma entrevista à revista Comics Interview nº 101 - ao que parece com uma (senhora) capa exclusiva do Bisley -, falando sobre suas ideias e os bastidores inusitados do gibi.

Para começar, a ideia do crossover partiu do próprio editorial da DC, buscando, quem diria, aumentar a popularidade do Batman, que “ [...] estava tão baixa que eles queriam qualquer publicidade, e pretendiam usar qualquer truque para aumentar as vendas. Alan Moore e Brian Bolland estavam escalados para fazer isso. Ninguém discutiu o projeto com John Wagner ou comigo depois que eu mesmo encontrei com Alan Moore e passei a ele a informação de que não estávamos muito felizes com a ideia de juntar Batman e Juiz Dredd – especialmente quando deixei claro que estávamos insatisfeitos com o fato de que os personagens estavam sendo explorados pelo editor, mas sem qualquer consulta nossa. De qualquer forma, até onde sei, por causa disso, acredito que ele e Brian acabaram fazendo A PIADA MORTAL – o que, do ponto de vista deles, não pode ter sido uma má escolha, já que ainda está sendo impresso e vendeu muitos exemplares ao longo dos anos ”.

E aí quando Moore e Bolland declinaram, o projeto foi oferecido a Alan Davis[4] e Paul Neary, mas a dupla preferiu aceitar a proposta de Chris Claremont para fazer Excalibur. Só após o Batman (1989) de Tim Burton virar um sucesso de bilheteria que Wagner e Grant voltaram atrás e aceitaram desenvolver a história. Não chega a ser dito que o interesse comercial falou mais alto ao reverem a decisão, mas, em dado momento, Grant deixa muito claro que era tudo, menos trouxa: “ Por mais que eu goste de trabalhar, o que gosto – passei bastante tempo fazendo isso – uma das poucas sensações que rivalizam com isso é a sensação que você tem quando recebe um cheque de royalties. Algo que você recebe por algo pelo qual já foi pago. É ótimo que as pessoas te deem dinheiro por nada, por assim dizer ”.

Mas voltando aos nossos dois homens em conflito, na metade da entrevista, Grant passa a pontuar as diferenças entre eles: " Existem duas maneiras de interpretar o Juiz Dredd: uma é como um completo anti-herói; a outra maneira é como um herói. Ele se mete em situações heroicas e faz coisas heroicas. Ele salva crianças de incêndios; ele arriscará sua vida para salvar um cidadão inocente. Mas, ao mesmo tempo, na promoção da lei, ele se rebaixará a qualquer coisa. Ele, por exemplo, mentirá. Eu acho que o Batman nunca mentiria pela justiça. A primeira lealdade de Batman seria com a verdade. Os dois são realmente incompatíveis. É possível jogar com Dredd de modo que ele seja mais compatível com Batman, mas quando Dredd é interpretado dessa maneira, tanto quanto me preocupo, ele se torna como qualquer outro herói [...] que resgata crianças de incêndios, mata bandidos e coisas do tipo. Só que quando Dredd está tratando as pessoas que ele deve proteger tão duramente quanto as pessoas de quem ele está protegendo, então a essência do Dredd entra em cena. A história de Dredd nunca terminará a menos que ele se torne a vítima ou perpetrador do crime ".

A seguir, o entrevistador Peter Sanderson pede para ele esclarecer melhor essa dicotomia, já que havia ali um claro paradoxo entre um Batman como algo puro e de moralidade incorruptível, enquanto Dredd pertencia ao establishment. A resposta do escritor começa a deixar as coisas ainda mais interessantes: “ O establishment de Dredd é um establishment bastante autoritário. Aqueles juízes mantêm a si mesmos no poder. Eles foram eleitos, mas acho que foi há cinquenta anos. Eles são autoperpetuantes. [E ainda que Batman seja autossuficiente também] Batman tinha uma razão muito válida para isso. Eu não sou um leitor típico de quadrinhos, e se eu não fosse uma criança grande – bem, não realmente grande – mas quando li os quadrinhos do Batman, eu sempre quis ser o Batman, e estou certo de que o mesmo vale para a maioria dos leitores. Você lê uma história do Batman e se conecta completamente com o que você queria ser no Batman. Eu nunca li uma história do Juiz Dredd onde eu realmente queria ser o Juiz Dredd. Posso estar totalmente equivocado aqui, e John Wagner, por exemplo, poderia discutir comigo 100% sobre isso, mas eu diria que Batman é muito mais um drama, enquanto Dredd é muito mais uma sitcom. É o Circo Voador do Monty Python. [...] Parece estranhamente absurdo de qualquer forma dizer isso, mas o Batman poderia ser real, e poderia ter sido real em qualquer época da História do homem, enquanto Juiz Dredd nunca poderia ser real. Juiz Dredd sempre será um personagem de quadrinhos .

Sanderson gira a faca e lembra que Grant já havia falado que, várias vezes no passado, Batman havia sido acusado de ser uma figura fascista. Mas, ao colocá-lo contra o Juiz Dredd, [ele e Wagner] acabavam examinando a questão de quão fascista o Batman era. Estariam, portanto, riscando no chão uma linha demarcatória entre os dois personagens. Aí conclui seu pensamento, questionando se Grant considerava Batman uma espécie de vigilante liberal: “ Sim, eu o considero [liberal]. Vejo Batman tendo tendências de esquerda e convicções muito fortes sobre isso. E não acho que possa fazer isso – porque percebo que é contra o establishment americano –, mas eu adoraria baixar o tom para vê-lo se defendendo dessa ideia de estar difamando o sonho americano. A razão pela qual não faço isso é que eu estaria usando isso como um porta-voz para minhas próprias opiniões. E embora eu faça isso em alguma medida com o Batman, Batman é realmente muito mais do que eu sou. Devo algo aos cinquenta anos de histórias dele, a todos os outros escritores e artistas. Eles transformaram o Batman em algo que é intrinsecamente americano, e quaisquer que sejam minhas opiniões pessoais, o personagem do Batman está bem estabelecido, e eu não quero mexer com isso. Então eu não poderia fazer ele tão esquerdista quanto eu gostaria que ele fosse ”.

Veredito

Notem que Grant não foge da pergunta e acaba entregando algo que passa muito ao largo de questões ideológicas, dos espectros de direita ou esquerda. Um respeito ao background pré-estabelecido do personagem, sem fugir de suas raízes políticas enquanto autor e tampouco rebaixando o herói a fantoche delas. O que são observáveis na condução política do Batman grantiano é a quantidade de paradoxos e impasses aos quais ele se depara, e sequer sabe como lidar com eles.

Se você ainda estiver aí, quem sabe eu possa mostrar alguns no próximo texto. Até lá.

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[1] Em Juiz Dredd: Juízes do Apocalipse (Pandora Books/2003) existe uma timeline de 1999 a 2099, detalhando todos os principais eventos da História das Mega-Cities.

[2] “Se todo crime é cometido por vivos, logo a própria vida é um crime”.

[3] Provavelmente, foi apenas o efeito desconcertantemente sexual e transgressor da arte de Glenn Fabry falando mais alto comigo. E que arte! É a sinfonia do caos que conhecíamos nas capas de Preacher aplicada à narrativa interna.

[4] Fontes confiáveis da Terra 2, me confirmaram que Alan Davis arrasou nesse gibi.