Nos
idos da década de 1990, pode-se dizer com segurança que a instituição do
malfadado crossover tinha uma tocante
função social, que era a de apresentar personagens até então exóticos ou, vá
lá, fora dos eixos editoriais da Marvel e DC. O britânico Juiz Dredd era um exemplo perfeito disso, já que, àquela época,
acabou se notabilizando apenas pelos encontros que teve com o Batman. Algo, hoje,
impensável para a criação máxima de Pat
Mills, John Wagner e Carlos Ezquerra, que goza de extenso
catálogo em solo pátrio. Mas, insisto, nem sempre foi assim e todo o interesse
que passei a nutrir sobre Joseph Dredd partiu daqueles gibis e, claro, do filme
de 1995.
Esse (meu) interesse foi renovado com o anúncio de que Julgamento em Gotham e todos os demais
intercâmbios com Mega-City Um estão para sair numa edição encadernada na
segunda quinzena de agosto (de 2024). Daqueles, preciso dizer que um em
especial, o segundo entrevero Bruce Vs. Joe, mora no meu coração das trevas. A
despeito da visceralidade de Bisley, a capa incendiária de Mignola é C-4 puro:
--------------
Antes,
porém, de dedicar umas linhas à respectiva quadrilogia, umas infos rápidas
sobre Dredd. Pode ser? Vamos lá.
Dredd
trabalha em Mega-City Um, uma entre três das cidades gigantes na América do
Norte, fundadas após uma guerra nuclear que devastou a maior parte do planeta.
Esses centros populacionais são cercados por um deserto radiativo, infestado de
mutantes, chamado Zona Infernal. Para impedir a completa derrocada da
civilização, por volta de 2070, estabeleceu-se a Declaração de Julgamento, uma espécie de lei marcial que conferia aos
juízes a autoridade de caçar e punir criminosos.
Os
Juízes em potencial são recrutados pela Academia da Lei com cinco anos de idade
e recebem quinze de treinamento. Os que conseguem se graduar tornam-se Juízes
cadetes e são testados em patrulhamento na cidade sob a supervisão de um Juiz
pleno. Um cadete só pode se tornar Juiz pleno com a aprovação do respectivo
supervisor. Após a formatura na Academia e o êxito no treinamento em combate,
Joe Dredd tornou-se Juiz pleno. Ele agora combate o crime na malha viária
multinível de Mega-City Um pilotando um motociclo tunado, a Mestrelei, e portando a principal arma
de um Juiz, a Legisladora.
Uns
acreditam que é um clone do Juiz Fargo, o primeiro Juiz-Chefe, conhecido pelas
gerações futuras como o Pai da Justiça, apenas respondendo ao Presidente por
seus atos. Fato é que Dredd jamais retira o seu elmo e, não raro, suas penas
autoaplicáveis tendem a ser mais cruéis ou equivalentes aos próprios delitos.
Tudo
bem que as histórias (clássicas) de Dredd nunca se destacaram por sua seriedade,
mas atente-se para alguns tropos presentes nos enredos: (a) saem numa época em que o movimento punk era uma febre na
Inglaterra; (b) presença de críticas
ferrenhas a brutalidade policial diluídas em galões de humor ácido; (c) lidam com falência das instituições
constituídas ou o estado de direito tradicional; (d) sugerem o temor que se especulava sobre um crescimento
populacional irresponsável e os problemas advindos dele; (e) especulam um worst-case
scenario nos estertores da Guerra Fria e o que seria da civilização num Day After termonuclear.
--------------
Não
sou um leitor dos mais aplicados em matéria de Megazines (2000 A.D), mas confesso
que o dissabor com as majors
norte-americanas está começando a me aproximar mais dos títulos do Dreddverso.
E se isso não for suficiente, basta lembrar que por lá ainda caminha um mestre
que precisa mesmo ser
exaltado,
alguns que não estão mais entre nós – como Alant Grant e Carlos Ezquerra –, e outros
que fizeram escala para se tornar o que hoje são, a exemplo de Grant Morrison,
Mark Millar, Frank Quitelly, Garth Ennis e Brian Bolland.
***
Fases do Processo
(1ª) Fase Postulatória → Os roteiros de todos
os crossovers foram escritos a quatro
mãos por John Wagner e Alan Grant, ficando a arte do primeiro, Julgamento em Gotham (1991), a cargo de
Simon Bisley. O MacGuffin é dos mais básicos: o Juiz Morte consegue um cinto dimensional e a fim de facilitar sua
distorcida filosofia de vida,
ruma para Gotham. Ao interceptá-lo, Batman se apossa do mecanismo de teletransporte e acidentalmente volta ao seu ponto de origem, Mega-City Um. Lá
encontra o comparsa de Morte, o Máquina Malvada (Mean Machine), que acabava de descobrir que
fora traído por seu parceiro. Em confronto, os dois são abordados por Dredd e
conduzidos aos Cubos de Interrogatório.
Batman
não esboça qualquer reação, visivelmente pretendendo obter respostas. Lá, ele
descobre que Morte ainda está "vivo" e tem que voltar o quanto antes
para Gotham. Entretanto, Dredd acredita piamente que Bruce violou várias leis
na sua rápida estadia em Mega-City Um e tem que cumprir uma pena de vinte anos.
A partir daí entra em cena a Juíza
Cassandra Anderson, da Divisão PSI, que ao ler a mente do réu, percebe a
verdade do que está acontecendo. Então, ela ajuda o ajuda a escapar e aí está a
ironia da dupla de escritores: em vez de Batman se unir ao Juiz Dredd, temos o
Juiz Dredd perseguindo Batman e a Juíza Anderson juntos.
A
partir daí, o restante da trama soa um pouco previsível, mas nem por isso menos
divertido. A primeira impressão que se tem a respeito de Dredd não é das
melhores, já que ele é visto apenas como um Juiz truculento que aplica
cegamente as leis de Mega-City Um. Claro que é proposital, e a arte de Bisley
dobra a aposta no nonsense, pontuando Batman como um combatente crime mais
sério, enquanto que o Juiz ocupa o papel de figura caricaturada.
***
(2ª) Fase de Contestação → Vingança em Gotham (1993) é o resultado da escalada de tensões
gerada na primeira minissérie. E bota tensão nisso: 22 das 52 páginas do one-shot são ocupados por um quebra-quebra
antológico. Talvez um dos meus favoritos em matéria de pancadaria
super-heroica, quase tudo na conta do traço cinético do (grande) Cam Kennedy.
A
briga, aliás, de partida, parecia sem sentido. Tudo levava a crer que Dredd
estaria em Gotham apenas para um acerto de contas com Batman. Na verdade, Joe
tinha o objetivo de retardar Batman até às 19h45min, hora em que supostamente o
vigilante morreria em um teatro, ao tentar salvar o público de um atentado a
bomba. Na verdade, a tragédia anunciada não era o bastante para motivar o Juiz.
O real motivo é que um PSI teve uma premonição e nela, num futuro próximo,
Mega-City Um passaria por uma grande crise e precisaria da ajuda de Batman para
contorná-la.
Outro
detalhe de Vingança em Gotham é que a suposta morte de Bruce teria se dado
pelas mãos de Ventríloquo/Scarface.
***
(3ª) Fase de Instrução → Embora divertido, cravo
que o one-shot A Charada Definitiva (1995) é o elo fraco entre os crossovers. Sequer parece que é a mesma
dupla criativa que roteirizou os dois anteriores; o que pode ser dito também da
arte do duo Carl Critchlow e Dermont Power. É boa, mas faz um esforço danado
para se parecer com a do Bisley, e tenho que ser honesto: em algumas páginas, parecem
cópias deslavadas.
Já
a proposta é a seguinte: oito guerreiros de renome em seus mundos são
selecionados, raptados e encarcerados em gaiolas suspensas.
Para reconquistarem a liberdade, eles terão que lutar entre si, e só um poderá
sobreviver. Como é de se esperar, Joe e Bruce estavam entre os oito guerreiros
de renome. A conclusão chega a ser tão estapafúrdia que até a explicação, ou
melhor, a dita “Charada Definitiva” é solucionada com algo tão estapafúrdio
quanto: o evento Zero Hora.
Assim,
não há de fato um combate entre Dredd e Batman, mas o morcego ao peitar o Juiz
para levar o tal cetro para Gotham, convenhamos... Ele saiu cheio de moral.
***
(4ª) Fase Decisória → A minissérie Morra Sorrindo (1998) atende a previsão
PSI no desfecho de Vingança em Gotham, ou seja, Batman e Dredd se encontrariam
mais uma vez, só que agora em Mega-City Um para evitar uma catástrofe
inominável. E de fato o é. Lembram-se do tal Cinto Dimensional que o Juiz Morte
usou em Julgamento em Gotham? Pois bem, em dado momento, na batalha no Parque
Robinson, o gadget foi deixado para trás e achado algum tempo depois por
pequenos delinquentes.
No
Arkham, Jonathan Crane relata o ocorrido ao Coringa; já que o Espantalho foi
uma das peças-chave da história original. Interessado pelo artefato do futuro,
o palhaço do crime consegue fugir do asilo e arruma uma maneira de se apossar
dele. De posse do mecanismo, ele se desloca para Mega-City Um, especificamente
no dia em que os espíritos dos quatro Juízes Negros (Fogo, Fobia, Flagelo e Morte) iriam ser incinerados em uma tumba
secreta.
A
data também é histórica porque marca o dia em que dez mil hedonistas partirão
para um autoexílio. Nele, os tais Hedonistas
do Sétimo Dia buscarão na Megaesfera uma vida plena e totalmente libidinosa, onde cada desejo será satisfeito. Coringa sabe desse detalhe e vê
nisso uma bela oportunidade. Por ser fã confesso dos Juízes Negros, ele realiza
uma operação de resgate para burlar o comboio que leva os Cristais de Glassen
(única maneira de confiná-los). O que acontece com sucesso.
Ao
libertar primeiro o Juiz Morte, este último tenta se apossar da mente do
Coringa logo de imediato, no entanto a mente do palhaço é tão perturbada que o
espírito sai de supetão e visivelmente atordoada (hilário!). Assim, Coringa
ganha o “respeito” de Morte, ao deixar claro que considera os Juízes Negros
verdadeiros artistas, gênios criativos especialistas em juízos finais e
genocídios. Ganha então o status de “Agente”, e, por conseguinte o dom da
imortalidade. O plano a seguir é ter acesso a Megaesfera e serem (também) autoexilados
com os futuros dez mil cadáveres.
O
primeiro passo é desmantelar todo o comando tático dos Juízes de Mega-City Um,
assumindo a identidade do Primeiro Magistrado Herriman (assassinado pelo Juiz
Flagelo). Logo, Cassandra e Joe são prerrogativas primárias e devem ser
eliminados o quanto antes. Ante a emergência, Cassandra divide sua mente e
transmigra para Gotham avisando Batman. No processo se fere gravemente e
permanece na própria Caverna.
A
propósito, enquanto lia, cheguei a imaginar que o Bruce ia faturar a Juíza,
dado os trajes sumários e o respeito mútuo que os dois nutriam um pelo o outro.
Em seguida, Batman parte para Mega-City Um para se encontrar com Dredd. Não
chega a ponto de evitar o início da chacina, mas pelo menos reduz para a metade
os danos colaterais. Trata-se da primeira vez dentre todos os crossovers que o texto de Wagner e Grant
caracteriza vigilante e magistrado como iguais. No fim, rola até um previsível
“aperto de mãos” para deixar isso bem claro.
Sustentação Oral
À
época da publicação de Julgamento em Gotham, Alan Grant concedeu uma entrevista
à revista Comics Interview nº 101 - ao que parece com uma (senhora) capa exclusiva do Bisley -, falando sobre suas
ideias e os bastidores inusitados do gibi.
Para
começar, a ideia do crossover partiu
do próprio editorial da DC, buscando, quem diria, aumentar a popularidade do
Batman, que “ [...] estava tão baixa que eles queriam qualquer
publicidade, e pretendiam usar qualquer truque para aumentar as vendas. Alan
Moore e Brian Bolland estavam escalados para fazer isso. Ninguém discutiu o
projeto com John Wagner ou comigo depois que eu mesmo encontrei com Alan Moore
e passei a ele a informação de que não estávamos muito felizes com a ideia de
juntar Batman e Juiz Dredd – especialmente quando deixei claro que estávamos
insatisfeitos com o fato de que os personagens estavam sendo explorados pelo
editor, mas sem qualquer consulta nossa. De qualquer forma, até onde sei, por
causa disso, acredito que ele e Brian acabaram fazendo A PIADA MORTAL – o que,
do ponto de vista deles, não pode ter sido uma má escolha, já que ainda está sendo
impresso e vendeu muitos exemplares ao longo dos anos ”.
E
aí quando Moore e Bolland declinaram, o projeto foi oferecido a Alan Davis
e Paul Neary, mas a dupla preferiu aceitar a proposta de Chris Claremont para
fazer Excalibur. Só após o Batman (1989) de Tim Burton virar um sucesso de
bilheteria que Wagner e Grant voltaram atrás e aceitaram desenvolver a
história. Não chega a ser dito que o interesse comercial falou mais alto ao
reverem a decisão, mas, em dado momento, Grant deixa muito claro que era tudo,
menos trouxa: “ Por mais que eu goste de
trabalhar, o que gosto – passei bastante tempo fazendo isso – uma das poucas
sensações que rivalizam com isso é a sensação que você tem quando recebe um
cheque de royalties. Algo que você recebe por algo pelo qual já foi pago. É
ótimo que as pessoas te deem dinheiro por nada, por assim dizer ”.
Mas
voltando aos nossos dois homens em conflito, na metade da entrevista, Grant
passa a pontuar as diferenças entre eles: " Existem duas maneiras de interpretar o Juiz Dredd: uma é como um
completo anti-herói; a outra maneira é como um herói. Ele se mete em situações
heroicas e faz coisas heroicas. Ele salva crianças de incêndios; ele arriscará
sua vida para salvar um cidadão inocente. Mas, ao mesmo tempo, na promoção da
lei, ele se rebaixará a qualquer coisa. Ele, por exemplo, mentirá. Eu acho que
o Batman nunca mentiria pela justiça. A primeira lealdade de Batman seria com a
verdade. Os dois são realmente incompatíveis. É possível jogar com Dredd de
modo que ele seja mais compatível com Batman, mas quando Dredd é interpretado
dessa maneira, tanto quanto me preocupo, ele se torna como qualquer outro herói
[...] que resgata crianças de incêndios, mata bandidos e coisas do tipo. Só que
quando Dredd está tratando as pessoas que ele deve proteger tão duramente
quanto as pessoas de quem ele está protegendo, então a essência do Dredd entra
em cena. A história de Dredd nunca terminará a menos que ele se torne a vítima
ou perpetrador do crime ".
A
seguir, o entrevistador Peter Sanderson pede para ele esclarecer melhor essa
dicotomia, já que havia ali um claro paradoxo entre um Batman como algo puro e
de moralidade incorruptível, enquanto Dredd pertencia ao establishment. A resposta do escritor
começa a deixar as coisas ainda mais interessantes: “ O establishment de Dredd é um establishment bastante autoritário.
Aqueles juízes mantêm a si mesmos no poder. Eles foram eleitos, mas acho que
foi há cinquenta anos. Eles são autoperpetuantes. [E ainda que Batman seja
autossuficiente também] Batman tinha uma razão muito válida para isso. Eu não
sou um leitor típico de quadrinhos, e se eu não fosse uma criança grande – bem,
não realmente grande – mas quando li os quadrinhos do Batman, eu sempre quis
ser o Batman, e estou certo de que o mesmo vale para a maioria dos leitores.
Você lê uma história do Batman e se conecta completamente com o que você queria
ser no Batman. Eu nunca li uma história do Juiz Dredd onde eu realmente queria
ser o Juiz Dredd. Posso estar totalmente equivocado aqui, e John Wagner, por
exemplo, poderia discutir comigo 100% sobre isso, mas eu diria que Batman é
muito mais um drama, enquanto Dredd é muito mais uma sitcom. É o Circo Voador
do Monty Python. [...] Parece estranhamente absurdo de qualquer forma dizer
isso, mas o Batman poderia ser real, e poderia ter sido real em qualquer época
da História do homem, enquanto Juiz Dredd nunca poderia ser real. Juiz Dredd
sempre será um personagem de quadrinhos ”.
Sanderson
gira a faca e lembra que Grant já havia falado que, várias vezes no passado,
Batman havia sido acusado de ser uma figura fascista. Mas, ao colocá-lo contra
o Juiz Dredd, [ele e Wagner] acabavam examinando a questão de quão fascista o
Batman era. Estariam, portanto, riscando no chão uma linha demarcatória entre
os dois personagens. Aí conclui seu pensamento, questionando se Grant considerava
Batman uma espécie de vigilante liberal: “ Sim,
eu o considero [liberal]. Vejo Batman tendo tendências de esquerda e convicções
muito fortes sobre isso. E não acho que possa fazer isso – porque percebo que é
contra o establishment americano –, mas eu adoraria baixar o tom para vê-lo se
defendendo dessa ideia de estar difamando o sonho americano. A razão pela qual
não faço isso é que eu estaria usando isso como um porta-voz para minhas
próprias opiniões. E embora eu faça isso em alguma medida com o Batman, Batman
é realmente muito mais do que eu sou. Devo algo aos cinquenta anos de histórias
dele, a todos os outros escritores e artistas. Eles transformaram o Batman em
algo que é intrinsecamente americano, e quaisquer que sejam minhas opiniões
pessoais, o personagem do Batman está bem estabelecido, e eu não quero mexer
com isso. Então eu não poderia fazer ele tão esquerdista quanto eu gostaria que
ele fosse ”.
Veredito
Notem
que Grant não foge da pergunta e acaba entregando algo que passa muito ao largo
de questões ideológicas, dos espectros de direita ou esquerda. Um respeito ao background pré-estabelecido do
personagem, sem fugir de suas raízes políticas enquanto autor e tampouco rebaixando
o herói a fantoche delas. O que são observáveis na condução política do Batman grantiano
é a quantidade de paradoxos e impasses aos quais ele se depara, e sequer sabe
como lidar com eles.
Se
você ainda estiver aí, quem sabe eu possa mostrar alguns no próximo texto. Até
lá.
***
Link Afiliado: