“Se alguma vez tivéssemos de lidar com um incêndio, eu salvaria a capa do Superman de Christopher Reeve e o cartaz autografado que ficam no lobby de casa. Uma vez seguros, eu correria de volta para dentro e ajudaria minha esposa e filhos.”[1]
Esse trecho acima é só uma pequena amostra da devoção que o Mark Millar tem com o Homem de Aço. Na verdade, além dessa memorabilia milionária, ele diz ter em seu acervo o gatinho que o personagem salvou no comecinho do filme de 78. “Gatinho?”, você me pergunta. Sim, o gatinho original... empalhado. Excentricidades à parte, no posfácio do encadernado de Wanted, o escritor resgata uma memória da infância e relembra de onde surgiu a história de Wesley Gibson. Para encurtar a conversa, ele diz que nos seus cinco anos de idade, afanou da minibiblioteca nos fundos da sala de aula, um livro capa dura sobre os Estados Unidos.
Revela que a imagem da Estátua da Liberdade o enfeitiçou e, ainda que não tivesse nada a ver com o Super, isso o levou longe: “[...] foi uma experiência tão grandiosa e transformadora quanto o momento em que Moisés, rumo a sei lá onde no deserto (histórias em quadrinhos cativavam muito mais o meu interesse que o Velho Testamento) recebe um telefonema divino transmitido por um arbusto em chamas”. Eram tempos de vacas magras e pessoas, literalmente, magras, já que a população escocesa – segundo ele – era àquela altura a que tinha o mais baixo índice de obesidade do mundo ocidental. Sequer havia TV a cabo no Reino Unido, então todo o entretenimento que se tinha, você valorizava ao máximo.
E o tal livro sobre um país rico e moderno, lar do super-herói favorito, atiçou sua imaginação: “O que aconteceu com o Superman? Por que a gente ainda vê desastres aéreos nos noticiários? Por que acontecem terremotos? Se o Superman é o maior herói norte-americano, por que não ajuda as pessoas na vida real, como faz nos gibis?”. Esses questionamentos foram regurgitados para Bobby, o irmão mais velho (17)[2], que em tom de troça lhe devolve como trágicos esclarecimentos: “O que aconteceu com o Superman? Você nem ficou sabendo? Superman desapareceu depois de uma batalha colossal contra os supervilões. Superman, Batman, Homem-Aranha, Capitão América, Mulher-Maravilha... todos eles sumiram em meio a esse terrível conflito e nunca mais foram vistos novamente”. Desolado, o pequeno Mark virou pro lado e tentou dormir, porém, lhe restou uma pergunta sem resposta: “E o que aconteceu com os supervilões?”.
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Corta para 2004. Millar tem 34 anos de idade. No final da segunda edição de Wanted, o Professor Solomon Seltzer responde as dúvidas de Wesley, explicando como os vilões eliminaram toda a comunidade super-heroica em 1986. O jovem Matador fica incrédulo por não existir qualquer resquício dessa Era e, claro, por que ninguém tem memórias disso. O cientista fala que não era o bastante derrota-los, eles queriam apagar qualquer lembrança dos civis sobre os super-heróis. Para tanto, tinham tecnologia e pessoal para reescrever a realidade. Mais que isso: "Nós temos duendes da sétima dimensão e supercomputadores extraterrestres em nossas fileiras, sabia? Se nos mantivermos sempre unidos, nada jamais será impossível pra nós". No fim, Seltzer mostra ao rapaz a capa do que parecia ser o Superman dali, a prova cabal daquela vitória arrasadora.
Corta para 2024. Millar tem 54 anos de idade e, tal como o vilão acima, tem uma capa do azulão como prova de que venceu na vida, fez fortuna[3] e se tornou um dos únicos profissionais da indústria que diz publicamente que só trabalha com quadrinhos por amor à mídia. Hoje em dia, aparentemente, com muito tempo livre[4], o escritor tem uma forte presença no Twitter/X e adora jogar conversa fora com gente do meio no seu canal de You Tube.
Mais que isso, vive cornetando às duas editoras majors com soluções para resolver o declínio do mercado direto; que, segundo ele, sofreria uma revolução caso houvesse uma distribuição (séria) de royalties e, claro, remunerasse melhor os artistas, em especial os que ganham destaque e viram os favoritos dos leitores. Não bastasse isso, vinha alardeando que gostaria de voltar à DC Comics para fazer um projeto com o Superman, sem falar os momentos em que se porta como um mero fã, pedindo que algo do seu interesse fosse republicado. Enfim, quase todo dia, o falastrão escocês aparece com pílulas de conhecimento e cascata em proporções iguais; o que ninguém contava é que ele saísse da missa de domingo com uma bomba-relógio como essa:
Sim, a bomba está armada e em menos de uma década, não só Mark Millar, mas o mundo todo poderá publicar seu gibizinho do Superman. Isso, claro, desde que as histórias se atenham aos parâmetros de Action Comics nº 1, de junho de 1938. O que não é pouco. Um bom exemplo do poder de destruição em torno dos elementos da edição que cairá em domínio público reside justamente no relançamento da revista em 2011, quando Grant Morrison[5] fez questão de explorar apenas as ideias contidas ali, do personagem em sua versão 1.0: o imigrante definitivo, o jornalista, o amante platônico e, evidentemente, o street fighting man com superpoderes - porém, àquela altura, ainda desprovido das demais extrapolações sensoriais.
O desafio do atual proprietário do Copyright é usar esse tempo que lhe resta para trabalhar formas que integrem o personagem ainda mais às especificidades do Universo DC. Na prática, isso já está acontecendo bem debaixo dos nossos narizes, ao ampliar o número de produtos culturais onde Clark Kent está associado a outras propriedades intelectuais, numa verdadeira relação sine qua non. O exemplo mais óbvio é o do patriarca de uma superfamília ou as histórias com grande elenco; ou você acredita realmente que todas as participações especiais no vindouro filme de James Gunn são só um capricho pessoal do diretor?
Por outro lado, falando em capricho, o manifesto de intenções só soa inédito para quem chegou agorinha no Millarworld; nesse caso, literalmente. Afinal, ele já assinou diversos roteiros para o personagem, entre eles os elogiados Superman Adventures e Entre a Foice e o Martelo; e extraoficialmente nos autorais Legado de Júpiter, Superior e Huck.
Na verdade, tanto a DC quanto Millar querem a mesma coisa. Um deseja produzir um Superman relevante, que ainda se destaque perante a concorrência; o outro, mesmo tendo realizado tudo e conquistado uma conta bancária invejável, parece saudoso dos tempos em que fora relevante, irreverente e seus quadrinhos não parecessem um looping irrefreável de repetição temas.
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Do lado de cá, se ainda seguir vivo e (ir)relevante, prometo voltar em 2033 para atualizar esse texto. Até lá.
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Links Afiliados
[1] Postagem de Mark Millar no Facebook no dia 22 de outubro de 2020.
[2] Millar era o caçula de cinco, sendo quatro irmãos e uma irmã.
[3] Não dá para precisar quanto abocanhou na venda de dezessete franquias à Netflix em 2017, porque, obviamente, os valores foram rateados entre vários artistas, mas é seguro dizer que Mark Millar foi quem ficou com a maior fatia dos 25 milhões de libras; ou, vá lá, 31 milhões de dólares americanos.
[4] Bem, isso não é exatamente verdade.
[5] Amigo, mentor, desafeto e, para piorar, ainda dono do melhor gibi do Super com o Frank Quietely.
4 comentários:
Em tempos de releituras de quadrinistas, de quem é o velho novo escroto da vez ou quem perdeu a mão nos últimos 10 anos, o Millar é dos que fez seu nome e merece as honras da releitura pontual. Lembraste de Procurado, que está na pilha junto à Starlight. O homem foi um baque em tempos que precisávamos (leitores, editores e personagens) dessa porrada de ideias. Tinha o nome do cara na feitura do gibi, eu estava lendo. Ainda o faço, mas bem menos…
Super por Super do Millar eu adoraria revisitar o pouco que li, e engataria o não lido, da sua passagem pela revista baseada na animação dos anos 90. Ali era fino.
Eu ainda sou fã do sujeito, talvez hoje mais como figura pitoresca do meio, contador de causos; inclusive batendo papo em vídeo com outras figurinhas. Dos trabalhos consagrados, esse mérito ninguém tira mais dele. Hoje, contudo, tô sempre com um passo em falso em relação aos mais recentes.
Aí, bem, desconsidere tudo porque acabei de comprar três gibizinhos recentes dele na loja virtual da Inominada. :P
Abração, meu chapa.
Caceta, nem sabia que o Millardário tinha YT. Me inscrevi e já botei o papo com o DiDio na fila. Quero saber TUDO.
O Super-Domínio Público vai sacudir o cenário como nenhum outro. Mas poucos terão a combinação mágica de talento + nostalgia + estamina para fazer algo digno usando essa janelinha inicial. Entre esses, tenho fé num Walt Simonson 8.6 imprimindo no Clark o mesmo Thor-de-force de Ragnarök.
E o Millar já deve ter quilos de roteiro acabado. Até lá, vai precisar alugar um contâiner.
Em (quase) outra esfera, fico imaginando se o mago de Northampton vai se animar quando essa Action Comics #1 for do povo. Mesmo que já tenha dito tudo o que queria dizer em Supremo, o fato é que não existe nada mais America's Best Comics do que o Super primevo.
É um barato o canal dele. Essa semana, por sinal, tô forçando meu inglês de 5ª como nunca forcei na vida adulta p/ entender o papo c/o Garth Ennis. Um verdadeiro tesourinho esse embate de causos entre Escócia e Irlanda.
Sobre o domínio público, a próxima década vai ser bem desafiadora p/ DC. Entre 2035 e 2037, nada menos que Batman, Mulher-Maravilha, Mulher-Gato, Lex Luthor, Flash (Jay Garrick), Aquaman e Lanterna Verde (Alan Scott) vão cair em domínio público. Qualquer um vai poder criar histórias c/ todo esse elenco. Bora tentar a sorte?!
Quanto ao Moore, eu acho que a última vez que vimos um "Super-Homem" dele foi na trilogia Nemo c/o personagem Hugo Danner*. Inclusive, ele rouba a cena sempre que aparece.
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(*) https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQNZNFYCGE8l6AZdncbXnYiKlhcRiIeAWmG2JoaGRVBPUJsdgydx5SqOkg&s=10
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