Mike Jones era um agente do MI6 que exagerava tanto na bebida que, vire e mexe, acabava se voluntariando como cobaia em experimentos obscuros. O motivo? Fugir do trabalho para passar semanas de molho, apenas dormindo. Entretanto, um dos testes fez exatamente o oposto: privou-lhe do sono por um ano e, de quebra, o deixou parcialmente sem sentidos[1], sem pigmentação da pele e alérgico à luz solar.
Isso foi há alguns anos. Hoje, Mike faz parte de uma comunidade de operativos clandestinos, muitos dos quais também envolvidos em procedimentos similares, confinados na área que as autoridades de Los Angeles apelidaram de “Cidades dos Espiões”, mantendo-a selada e legalmente invisível. Essa seria, digamos, a origem secreta do protagonista de Desolation Jones, de Warren Ellis e J. H. Williams III; quadrinho publicado em 2005 pela WildStorm, mas que em dezembro próximo mudará de casa e ganhará uma reedição especial pela Image Comics.
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Continuando. O tal distrito é administrado por Jeronimus, um ex-agente da C.I.A considerado uma obra-prima cirúrgica: ele só precisa comer quatro vezes ao ano. Porém, quando precisa fazê-lo, tem que ingerir muita proteína. Grandes quantidades de proteína! Muita carne! O que ele faz? Ora, vai a uma região de UFOs, com histórico de sacrifícios massivos de vacas, e come carne na floresta. Por conta disso, é o único com permissão para sair dos limites de L.A – sob permanente vigilância armada, é claro.
O mesmo Jeronimus é uma espécie de empresário de Jones, que lhe arruma serviços de detetive dentro da comunidade. Eventualmente, também é assessorado por sua vizinha, Robina, capaz de improvisar e bolar qualquer tipo de situação, às vezes como uma “Q” baixa renda, quase sempre como um ombro amigo. Como disse, Jones é um investigador que presta serviços exclusivamente para os membros de sua comunidade. Certa feita, ele recebe o chamado de um velho coronel para investigar o furto de um vídeo pornô de sua propriedade, produzido, dirigido e estrelado por ninguém menos que Adolf Hitler.
A partir daí, o trabalho toma corpo quando começa a buscar informações nos últimos degraus do underground los angeleno. É nessa busca que somos apresentados a personagens ainda mais intrigantes. A começar por Filthy Sanchez, dona de uma loja que comercializa todo tipo de fitas pornô. Cercada de sodomitas, quando questionada por Jones sobre o tal “Santo Graal da Sacanagem Cinematográfica”, vira a casaca e tenta obtê-la para si própria.
E o que dizer de Emily Crowe? Uma ex-agente que também vive em exílio na cidade, mas sua condição por si só já funciona como cárcere. Seus atributos especiais? Ela deveria ser a femme fatale definitiva com o poder de superproduzir feromônios sexuais. Não funcionou, aliás, tal como Jones, o que aconteceu foi justo o inverso. Quem se aproxima dela sente medo e repulsa; algo indescritivelmente perturbador. A solidão que isso lhe resulta é patente. Apena Jones é imune aos seus dons e, obviamente, o único que tem contato físico com ela. Aliás, chega a ser tocante quando ela lhe implora para que fique em sua casa por pelo menos mais uma hora.
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Uma sequência em especial chama a atenção no gibi:
Durante a busca, Jones topa com uma atriz pornô veterana defendendo uma novata que está com alguma infecção. Ela se chama Nicole, tem 27 anos, e numa conversa de bar, acaba fazendo um verdadeiro check-in da profissão, relatando o cotidiano dessa indústria ao detetive. São seis páginas difíceis. No nível do texto bruto, a cena em si já é pouco convencional, mas ela é levada para outro nível graças à arte de J. H. Williams III e as cores de José Villarrubia; que confere às visões de Jones – consequências do experimento – algo que se pode ser comparada com as alucinações despertas de Rust Cohle em True Detective. As visões mais comuns são os anjos perdidos de Los Angeles, uma espécie de sensibilidade ao ambiente.
Assim, Jones tem delírios da garota emulando tudo que acabara de falar. Em alguns casos, a coisa é brutal, em outros, degradante num nível que faz Black Kiss de Howard Chaykin parecer um gibi carola. Piora quando você não resiste e acaba fazendo uma leitura anacrônica, trazendo o recente retrospecto de Warren Ellis para dentro das páginas. Quer dizer, em 2005, tínhamos apenas uma passagem excêntrica do celebrado escritor de Authority e Planetary, mas, em 2024, a coisa soa como se ele já estivesse transparecendo alguns fetiches e temas aos quais tinha interesse.
Enfim, não digo isso como alguém puritano, censurando uma obra ficcional. Longe de mim, porém, me pergunto se interessa ao Ellis desengavetar Desolation Jones em um momento onde sua presença (virtual) vem sendo retomada de forma discreta, passando longe de qualquer vespeiro. Afinal, o tribunal da internet não está para brincadeira, e de tão ameaçador, passamos do paradigma de um “SE” hipotético para a certeza do “QUANDO” teremos outro Ed Piskor.
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Voltando aos desenhos do gibi, gostaria de dizer que nada contra John Cassaday, o vencedor do Eisner Awards 2006[2], mas o grande vencedor moral naquela sexta-feira do dia 21 de julho de 2006 foi J. H. Williams III. A sinergia do traço meticuloso em mosaico agregou gradações oníricas únicas ao texto ácido de Warren Ellis. Só não digo que foi um casamento perfeito, porque o artista tem um fraco notável para roteiristas ingleses; vide sua excelência em Promethea (Alan Moore) e Sandman Prelúdio (Neil Gaiman).
No mais, me parece que Desolation Jones é um trabalho desconhecido, mas – mesmo na releitura - o julgo como um dos melhores que já li de ambos os autores. É uma verdadeira dedada no olho.
Outro
detalhe interessante: Michael Jones parece que foi forjado sob encomenda para
um dia ser vivido por Hugh Laurie. A semelhança é tanta – devido ao uso
imoderado de ácidos para aliviar as alucinações -, que em dado momento, o tradicional
Vicodin do mau bom doutor é até citado. Outros pontos de convergência
entre Gregory House e Mike são: a indisfarçável fragilidade física e o fato que
ambos estão cagando para o mundo.
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“Cavalheiros ingleses sempre deixam suas acompanhantes bêbadas e chapadas. É a única maneira de fazermos as pessoas dormirem conosco” (JONES, Michael).
[1] Uma condição que, em certa medida, me lembrou o agente Holden Carver, de Sleeper. No entanto, Jones ficou bem mais sequelado que o personagem de Ed Brubaker e Sean Phillips; dormindo, se tanto, apenas uma hora por noite e, embora imune a dor, seu sistema imunológico é uma porcaria. Tanto é que antes um beberrão inveterado, agora ele poderia sofrer um choque tóxico se tomasse uma gota sequer de álcool.
[2] Aliás, nessa época, o Cassaday foi tricampeão do Eisner Awards na Categoria Desenhista/Arte-Finalista, conquistando o troféu nos anos de 2004, 2005 e 2006.
4 comentários:
Como um consumidor inveterado de pornografia à época da leitura de Desolation Jones, o papo entre o Mike e a moça entraram no seco na minha cabeça. Não que eu não soubesse dos bastidores do pornô underground, e era bem interessado pelo tema, mas você ler um depoimento - não deixa de ser, mesmo ficcional, ou o Ellis escutou tudo isso de alguma moça? - são outros quinhentos.
PARA ALÉM DISSO, a condição do Mike e dos outros operativos renderia muito mais, e confesso que esperei uma sequência nos anos seguintes. Aguardo agora a reedição em brasileiro.
Abraço!
Só sei que ali em 2005 já era um papo torto do caramba... Hoje então...
Sobre Desolation render mais, uma peculiaridade sobre o Ellis é que ele tem tantos trabalhos completos quanto incompletos nos gibis. A ideia desse aqui era que rendesse mais. Teve, se não me engano, mais duas edições com outro artista, mas ficou por isso mesmo. Assim como Fell, New Universal e - até que se prove o contrário - Injection.
Abração, Do Vale.
Se esse papo aqui fosse o episódio de um procedural, acho que seria o detetive de sobretudo que olhava o cenário, acendia um cigarro, saía quieto e, depois de pressionado pelo parceiro, resmungaria:
Ellis era usuário compulsivo de serviços de acompanhantes; com o tempo, passou a pagar só para escutar as garotas sobre as suas experiências; fundou uma newsletter que mais parecia um culto; perdeu a noção e achou que podia aplicar as maquinações daquele universo no seu próprio; :)
Só sei que quando penso no estrago que as atitudes dele causaram na minha percepção da sua obra, é a Jakita que me vem à cabeça.
https://splashpages.files.wordpress.com/2014/06/1798491376_c24b0ae071_o.jpg
Sobre o Eisner, há tempos que precisa de uns ajustes. Teve uma época em que só dava Neil Gaiman (1991-1994, se me lembro). Fora que só indicavam/premiavam autores não-americanos em duplas, tipo "René Goscinny E Albert Uderzo". Absurdo.
Também acho que o Eisner Awards é bem tendencioso, sobretudo quando algum queridinho começa a se destacar. Nos últimos anos, os queridinhos têm sido Tom King, Chip Zdarsky e James Tynion c/ uma produção que, vamo combinar, é só regular. Nada realmente brilhante.
Sobre o Ellis, acho que ninguém o cancelou de verdade. E quem cancelou, tá quase descancelando. Penso que é a força de sua bibliografia, e a própria esperteza de ter saído de cena sem travar embates com as vítimas e/o público leitor em geral. Aliás, adorei a conclusão do seu detetive. Vou por aí também.
Abração.
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