segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

O ALFA E O ÔMEGA DE ED BRUBAKER

Cena do Crime (1999) é um Ed Brubaker na flor da idade, bruto, sem o refinamento que a experiência traria. Ainda assim, é um Brubaker cujos recordatórios densos e desesperançosos já estão lá, no seu cerne. É um roteirista querendo mostrar serviço na sua primeira chance numa editora major (DC/Vertigo), e ele o faz sem reinventar a roda, numa história básica de detetive particular. Básica, mas jamais superficial.

Na minissérie em quatro edições, Jack Herriman é contratado para encontrar o paradeiro de Maggie Jordan, uma garota problema. Tudo o que a mãe e a irmã mais velha querem é saber se ela está viva e bem. Uma vez que os rastros deixados por Maggie apontavam para um trabalho rápido, Jack não teve muita dificuldade. Ele até toma um café com a jovem e a conhece melhor. Em seguida, telefona para as parentes, e as tranquiliza. Pela manhã, ele é avisado que Maggie foi encontrada morta no quarto em que estava hospedada.

Jack se culpa pelo que ocorreu e decide solucionar o crime. O remorso surge por ter ignorado fácil demais o fato de que Maggie estava andando armada e aparentar estar fugindo de algo. No decorrer dos dias, ele toma ciência de uma trama pesada que envolve o passado da família Jordan e uma seita sexual. Segundo Brubaker, Cena do Crime é um dos (três) trabalhos responsáveis por hoje ele ter uma carreira. Não sem razão. Da primeira à última página, você fica imerso no mistério e também precisa das respostas que o protagonista persegue.

Lendo com Reckless na cachola, nota-se certas reminiscências entre Ethan e Jack. Os dois têm em comum um passado traumático onde a explosão de bombas lhes causaram cicatrizes físicas e emocionais. Bem como têm seus respectivos escritórios em lugares exóticos. Ethan num cinema, Jack numa galeria de arte. Quer dizer, "Cena do Crime" é o nome da galeria de fotos (artísticas?) do seu tio Knut Herriman, irmão do falecido pai de Jack. Knut é um velho fotógrafo de cenas de crime, digamos que um "líder de mercado" nesse ramo macabro.

Uma pena que os Herriman ficaram para trás. Em cinco edições, Brubaker criou personagens que você se importa e queria ver mais, talvez até mesmo nos universos de Criminal e Reckless, por que não? De saída, no posfácio da edição Mino, conhecemos a origem secreta da parceria com Sean Phillips.

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Quase que paralelamente à Cena do Crime, li o mais recente Brubaker/Phillips e dá para dizer que 2023 foi um ano esquisito para a dupla, no sentido que foram duas graphic novels bem introspectivas[1] e, em algum ponto, enredadas a partir de memórias e inquietações do escritor. Nesse sentido, acho que Where the Body Was – ou Onde o Corpo Estava – é uma história sobre a rua em que eu ou você crescemos.

Quem cresceu em rua de vizinhança deve entender do que estou falando. Daquele hábito imberbe de pegar fragmentos de informações sobre os vizinhos e criar dentro da própria cabeça histórias sobre eles. No fim, na vida real, todos são desinteressantes, mas na infância projetamos intriga e mistério. As cercanias desse gibi ficam localizadas na Pelican Road, e a trama tem lugar em 1984. O foco narrativo lembra o de um documentário True Crime; onde vemos os moradores no futuro falando sobre o verão daquele ano. Eles falam para o leitor, enquanto os fatos são reconstituídos na narrativa. Quais fatos? Num dia qualquer, um cadáver foi encontrado na calçada e 2hs depois desovado em outro lugar. O enredo tenta recuperar o que estava acontecendo na vida daquelas pessoas e, de algum modo, pontuar o incidente do tal defunto.

Me lembrou bastante o storytelling dos álbuns de Marcello Quintanilha; sobretudo no nível do turbilhão de emoções íntimas que a dupla está chafurdando. Da esposa infiel, do Ricardão que finge ser policial, da menininha vietnamita fã de super-heróis, do casalzinho de drogados... Em off, Brubaker confessa que mesclou ficção com notinhas das páginas policiais. Por sinal, tive a impressão que o personagem Tommy traz um pouco do escritor nos seus tempos de delinquente juvenil; aqui, um trombadinha que arromba casas nas redondezas para continuar comprando drogas com seu amor platônico. Algo que reforça o meu palpite é que, em 2023, Brubaker tinha 56 anos, exatamente a idade de seu suposto homólogo no futuro.

Daqueles gibizinhos que você seguiria lendo para sempre se não tivesse um fim.

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Antes de ir, uma coisinha bem legal que li na newsletter do Brubaker, enviada no dia 3 de outubro de 2023. Era o período em que o escritor começava a divulgar o lançamento de Onde o Corpo Estava, e aí na saideira do e-mail, ele escreve que recebeu uma pergunta – do leitor Ryan Atlas – que merecia uma resposta. Editei um pouco, mas basicamente foi esse o teor:

O que você faz quando, por exemplo, está na metade da escrita de uma história e descobre que seu enredo está desconfortavelmente perto de outro filme, série de quadrinhos, romance, etc.? Eu não quero dizer um enredo que você já conhecia e conscientemente ou subconscientemente inspirou-se. Quero dizer, exemplos em que você gerou uma ideia original e depois se deparou com essa ideia que existia antes, mas nunca soube ou descobriu que seria a base para um próximo filme, romance, quadrinhos, etc. Você continua avançando e ignora o outro trabalho? Lê o trabalho do outro escritor apenas para ver o quão perto a história está da sua? Desiste completamente da sua própria história?

Eis a resposta:

Uma das poucas lições de escrita que recebi foi uma breve conversa com Archie Goodwin na Comicon quando tinha cerca de 14 anos. Ele perguntou quem era o meu escritor de quadrinhos favorito na época, e é claro que eu disse Alan Moore, porque ‘ele é muito mais original do que todos os outros’. Bem, Archie Goodwin muito educadamente me avisou que a originalidade é superestimada, que o trabalho de Moore teve diversas influências fora dos quadrinhos, mas o mais importante não era sobre isso. Era sobre como Moore contou uma história, e o que me atraía nela. Goodwin perguntou por que eu gostava tanto de Lição de Anatomia [Swamp Thing V.2 #21], e aí discutimos o texto de abertura e encerramento, um dispositivo de enquadramento que Moore usava muito  - o qual eu mesmo ainda uso –, o tom geral do trabalho de Moore e como ele fez o que fez na página. Ainda me lembro que Goodwin disse que o truque de ser um escritor é que, quando se resume qualquer história até seus detalhes básicos, você percebe que só existem quatro ou cinco tramas no mundo. Então, tudo o que importa é como você conta a história.  

Agora, isso não quer dizer que nenhum escritor jamais poderá chegar a uma cena que ninguém mais escreveu, ou que não há originalidade nos meus textos ou nos de quaisquer outros escritores. Mas o enredo ou o conceito alto, geralmente, não são onde essa originalidade é mais importante. É importante no desenvolvimento dos personagens e como a história se desenrola. Um mistério de assassinato, em regra, terminará com a revelação do assassino. Todos sabem disso. Ainda assim, continuamos lendo para ver como isso acontece. No mais das vezes, não existe final feliz para o personagem do noir, mas se a história for bem contada, vamos torcer para ele mesmo sabendo o quão ferrado está. O enredo ou conceito alto é uma espinha para construir o resto da sua história - sobre o que você está realmente escrevendo. A escrita se torna algo bem particular quando o enredo é menos importante que a forma como os personagens reagem a ele. 

Eis minha experiência pessoal, já que algumas vezes estive nesta situação. Quando estava fazendo um longo arco do Capitão América, descobriu-se que tanto Grant Morrison (em Batman) quanto eu tínhamos enviado nossos protagonistas numa viagem temporal, quando todos pensavam que os dois estavam mortos. Eu estava fazendo um riff com Matadouro 5 [de Kurt Vonnegut], não no Batman de Grant, então, apenas mantive minha cabeça baixa e ignorei o que as pessoas disseram sobre as semelhanças. No final, acho que ambas as histórias ficaram por conta própria, embora eu nunca tenha lido o dele e tenho certeza de que ele nunca leu o meu. A mesma coisa aconteceu com o Soldado Invernal e o Capuz Vermelho. Tanto Robin (Jason Todd) quanto Bucky foram revividos ao mesmo tempo, mas eu não tinha ideia de que a DC estava fazendo isso quando lancei o Soldado Invernal. Eu apenas me concentrei no meu trabalho e contei minha história e, no final, ninguém se importou com as semelhanças. Coisas da vida. 

Isso aconteceu também quando estava na 1ª temporada de Westworld, e o filme Ex Machina estava saindo. Nossos showrunners nos disseram para evitar o filme até que tenhamos terminado de escrever a temporada, para que não fôssemos afetados criativamente. E se tivéssemos escrito uma cena que fosse quase idêntica a desse filme? Podemos nos sentir compelidos a mudar o texto, mesmo que fosse uma boa cena, apenas para evitar as comparações. Nós não queríamos acabar nessa situação, então nos concentramos em nossa história. 

Outro exemplo. Muitas pessoas dizem que The Fade Out era meu riff com James Ellroy. Mas, na verdade, eu não tinha lido nenhum Ellroy desde Dália Negra, 25 anos antes, sendo que evitei seus livros de Los Angeles até recentemente, porque sabia que eles estavam cobrindo território semelhante à história que eu estava planejando escrever. Vinha pensando sobre The Fade Out por mais de uma década antes de escrevê-lo.  

Então, a coisa se resume se você crê que o conceito alto soa “original” e é mais importante do que qualquer outra coisa. Algumas vezes, você tem uma ideia e conta a um amigo e aí ele diz ‘oh, lembra aquele programa na Amazon’ e você pensa ‘me ferrei!’, só que aí você olha para a sua ideia, percebe o que é importante nela e muda algumas coisas sem, contudo, mexer na alma dela. Originalmente, DEADWOOD seria um série sobre os primeiros cristãos em Roma, mas a HBO tinha acabado de dar luz verde a ROMA, então David Milch se atentou para o que mais queria no seu próprio seriado e transformou-o em um faroeste sobre a busca pelo ouro mudando a sociedade, em vez de a religião [como catalisador]. Mas isso vale para a TV, no mercado editorial existe simplesmente um monte de livros sobre a mesma merda, e os que se destacam geralmente se destacam por sua execução, e nada mais.

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Dá o que pensar, né?

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Link Afiliado:


[1] Também redigi umas linhas sobre Febre Noturna, a outra graphic novel da dupla em 2023.

5 comentários:

Marlo de Sousa disse...

Onde antes havia falta, hoje em dia, felizmente, há uma oferta imensa (nunca direi excesso) de Brubaker/Phillips à disposição dos brasileiros. Pena que quase sempre a peso de ouro. A sorte é pintar uma promoção aqui e ali.

Minha coleção ainda é pequena diante do catálogo: Matar ou Morrer, um o primeiro Reckless, Pulp e Um Fim de Semana Ruim. Com meu crescente desinteresse pelas mensais de super-heróis, não vai ser tão difícil fazer essa prateleira ficar mais pesada. Abraço, parceiro!

Luwig Sá disse...

Pergunta honesta: você ainda compra alguma mensal?

Meu material Bruba-Phillips é quase todo importado, do tempo pré-Paulo Guedes, quando ainda dava para colocar os termos "dólar" e "Amazon" numa mesma frase. Por sinal, vendo em retrospecto, comparando com os preços atuais, creio que paguei mais barato que os praticados hoje. No Minoday, sempre sai promoções boas para nós leitores xepeiros. Só aguardar.

Abração, Marlo.

Marlo de Sousa disse...

As Sagas são mensais, né não? É só o que ando comprando - atualmente, cinco delas, sempre um ano ou mais depois do lançamento.

doggma disse...

Também adoraria mais uns takes de Jack Herriman & cia. Pena que esse barco já foi. Curti até aquele "conto de Natal" de bônus.

Saltam aos olhos certas hesitações daquele Bruba de 33 anos. Jack teve um pouco de sorte demais. Não ser morto quando foi capturado lá no campo e não levar uma bala no final (como o cara errou?), por exemplo.

E interessante ele minimizar a influência do Ellroy. Porque sua escrita me parece quase uma elegia ao estilo e mecanismos do careca (e do Elmore Leonard). E até pra isso precisa ser muito talentoso, pô. Deveria desencanar.

Luwig Sá disse...

Marlo, às vezes, tenho a impressão que alguns Sagas são quinzenais, dada a velocidade que saem. As do Batman mesmo, creio que teve mês que recebi mais de uma pelos Correios.

Dogg, sim, aquele amigo do Jack, de terno e chapéu fedora, era também um barato. Um tipo arruaceiro, mas seguindo o formalismo do detetive clássico. Ele que salva a pátria nesse tiroteio.

Também não compro esse papo que fazia anos que não lia o James Ellroy. Eu diria que o Brubaker sempre tem à distância da mão um livro do Ellroy para consulta. Fico imaginando os papos entre ele e o Sean Phillips; como se o último fosse o terapeuta e válvula de escape das noias do escritor. Os últimos Reckless, então, é pura expiação; Febre Noturna e Onde Estava o Corpo levam isso no nível do confessionário.

Abração.