quinta-feira, 2 de abril de 2015

BRAVOS & AUDAZES DE ONTEM, HOJE & AMANHÃ

Até que se prove o contrário, todo leitor engajado é um corneteiro capaz de emprestar o gogó à trombeta do apocalipse. Quer dizer, dentro de sua mente, se encontra as soluções para que uma editora saia criativa e financeiramente do buraco, o melhor line-up em um título, as mudanças que precisam ser feitas, seja avançando alguns passos, seja voltando outros.

Se eu fosse editor da DC Comics, confesso que seria uma espécie de capricho pessoal a luta pela manutenção do título O Bravo e o Audaz (The Brave and The Bold) nas solicitações dos lojistas, inclusive sob pena de reiterados fracassos de vendas. Quem tem alguma intimidade com a trajetória do Universo DC, sabe que diversos medalhões saíram daquelas páginas; como, por exemplo, o Esquadrão Suicida original (#25), a Liga da Justiça (#28), o Gavião Negro (#34), os Titãs (#54) ou o Metamorfo (#57).

Num mundo perfeito em que, no final das contas, sem importar tantos as conta$, sempre seria a liberdade criativa que vigoraria. Assim, um quadrinho que permitisse às equipes criativas uma chance de manipular personagens de um universo ficcional, fossem eles populares ou obscuros, indubitavelmente, ter-se-ia em mãos (sempre) um belo produto. Sei que não é desse jeito que a banda toca, mas, se eu tivesse voz e poder, O Bravo e o Audaz seria tombado como patrimônio histórico da DC Comics tal como são Action Comics e Detective Comics.

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A primeira encarnação do título (1955-1983) durou exatas duzentas edições e serviu de palco para verdadeiros monstros dos quadrinhos, entre eles, Robert Kanigher, Gardner Fox, Joe Kubert, Bob Haney, Neal Adams e Jim Aparo[1]. Já uma de suas versões mais recentes (2007-2010) fechou as portas com trinta e cinco números, sendo os últimos nove sob a chancela do roteirista J. M. Straczynski

É de conhecimento comum que o curto período em que o autor colaborou com a DC Comics foi tão conturbado quanto seus últimos instantes na Marvel. Vendo hoje a coisa em retrospectiva, até que entendo o lado do autor, mesmo que seja bastante amargo confiar numa série em que o capitão do barco tem o hábito de pular fora antes de seus passageiros. Controvérsias à parte, fato é que um currículo com O Povo da Meia-Noite, Poder Supremo e Surfista Prateado: Réquiem ainda têm cacife para comprar e sustentar sua credibilidade com o leitor.

Sua passagem por O Bravo e o Audaz senão é um de seus trabalhos mais inspirados, pelo menos entrega um produto digno dos melhores dias da revista. E isso, pelo menos para mim, foi o suficiente. No Brasil as edições que compreendem essa fase foram publicadas entre maio de 2010 e julho de 2011 na extinta Dimensão DC: Lanterna Verde #21-23, 31-35. Em agosto de 2011 foi lançada uma compilação que reproduziu na íntegra as edições originais (#27-35) sob o nome Team-ups of the Brave and the Bold. Como fã, não custa sonhar com um lançamento nacional desse encadernado[2].

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A morte de um herói (#27) → Ao furtar objetos de hóspedes de um quarto de hotel em Gotham, um bandido fajuto acaba se deparando com o artefato alienígena conhecido como Disco-H[3]. Similar a um disco de telefone analógico, o mesmo traz consigo dez símbolos que equivalem a letras do alfabeto terrestre. Ao girar o dispositivo, o indivíduo é instintivamente levado a discar a palavra “Herói”, o que lhe garante por 24hs o manejo de habilidades especiais e indumentárias a cada nova transformação. No conto em questão, Straczynski resgata das páginas de House of Mystery #156, o usuário original – e vítima do furto –, o adolescente Robby Reed. Por outro lado, Travers Milton, o gatuno que acaba acessando o poder do Disco-H, vive seu momento de redenção ao auxiliar o Batman em uma onda de crimes sincronizados e idealizados pelo Coringa.

Na linha de fogo (#28) → Numa visita com fins científicos à cidade de Bastogne, Bélgica, Barry Allen utiliza seus dons para ajudar um pesquisador local em um experimento com a velocidade da luz. Contudo, quando o feixe de luz e o monitor de medição interagem com sua frequência vibracional, o Flash é sugado por um vórtice que o faz voltar no tempo, arremessando-o precisamente no combate que deu notoriedade àquela região. Na ocasião, Barry acaba interferindo no conflito, deixando de lado sua identidade heroica para atuar como soldado ao lado dos Falcões Negros. No gibi, ele se machuca e passa um tempo até se recuperar; nesse ínterim, a dura realidade da 2ª Guerra Mundial se impõe frente ao seu juramento de não matar.

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Apostaria um frasquinho de chucrute que o longa animado da Sociedade da Justiça (2021), ambientado na 2ª Guerra, valeu-se exatamente desse enredo.

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Histórias perdidas de ontem, hoje e amanhã (#29) → O conto reapresenta o Irmão Poder, personagem que Joe Simon (Capitão América) criou no final da década de 1960 como um boneco de pano que ganha vida de modo similar ao Frankenstein de Mary Shelley. O que há de mais intrigante no personagem reside no fato de que, tal como Solomon Grundy[4], o Irmão Poder é também um Elementalimperfeito”, simbolizando, nesse último caso, um totem das representações humanas em objetos. O caminho do boneco em questão – nessa versão, um manequim – cruza com o de Batman. No Brasil, a Panini republicou na coletânea Dias da Meia-Noite, de Neil Gaiman, uma história do Monstro do Pântano, “Irmãos”, estrelada pelo Irmão Poder no contexto da Vertigo.

O verde e o dourado (#30) → Considero não apenas a melhor dessa sequência, mas provavelmente uma das melhores histórias de super-heróis já escritas por Straczynski. E interessante que a narrativa se aproveita de uma deixa que ficou em banho-maria desde 1987 no desfecho do primeiro arco de histórias da LJI (#7) de Giffen, DeMatteis & Maguire. O team-up em foco ocorre quando Hal Jordan se vê acuado em um planeta sem vida, mas ao subestimar seu sistema defensivo, esgota praticamente toda a carga do anel energético e só Kent Nelson pode ajudá-lo. O problema é que o Senhor Destino original havia morrido há vários anos. Fino!

Pequenos problemas (#31) → Considero não apenas a pior dessa sequência, mas provavelmente uma das piores histórias de super-heróis já escritas por Straczynski. Sem piada, um remake de Viagem Insólita com Ray Palmer, tentando salvar a vida do Coringa, chega a ser mais inverossímil que o controverso Advogado do Diabo. Quer dizer, dá para relevar um Batman, amparado por um forte imperativo moral, tentando provar a inocência do arqui-inimigo num caso em que o vilão realmente não cometera um crime. Agora, esperar boa vontade dos outros numa missão para curá-lo de uma enfermidade...?! Pois é.

Deuses da noite (#32)Jesus Saiz tem um traço elegante, bem aprazível aos olhos míopes desse velho leitor. É daqueles artistas que se espera que algum dia consiga uma colaboração que faça justiça a seu lápis, do mesmo modo como foi para Eduardo Risso com Brian Azzarello ou Tim Sale com Jeph Loeb. Para que uma parceria dessas surja e fique estampada no córtex alheio, é necessária a cominação de muitos fatores, mas o elemento sorte, indubitavelmente, me parece despontar na dianteira. A história dessa edição é visualmente impecável, mas se você já leu Namor: As Profundezas, de Peter Milligan e Esad Ribic, sabe que aquela conjunção inusitada de forças entre Aquaman e Etrigan poderia ter rendido mais.

Para piorar, nunca fez sentido para mim o uso de balões de diálogos no meio aquático, ou melhor, o fato dos atlantes vocalizarem dentro d’água como se estivessem na superfície.

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Off-topic, mas nem tanto:

Logo, por mais instigante que seja o roteiro, ao se ignorar o fator comunicação submarina, a história sofre um revés na suspensão de descrença. Pareço bobo, eu sei, mas desculpa, não dá. Claro, tem sempre o risco de que o Maravilhoso em Aquaman remete - por que não? - ao maravilhoso literário, das fábulas e contos de fadas, onde o sobrenatural pode ser factível porque o leitor abraça a convenção da narrativa; o que torna inteligível a existência do impossível, como o caso de animais falantes.

Entretanto, creio que um criador poderia pensar em alternativas mais práticas. Um bom exemplo está na Liga do Zack Snyder, mais precisamente quando Mera cria um bolsão de ar para conversar com Arthur. Outra solução seria usar a telepatia do Aquaman – dirigida à fauna marinha – para se comunicar com seus semelhantes. Nesses dois casos, já renderia um bom caldo de peixe.

Na verdade, não raro, nos deparamos com recursos narrativos que driblam limitações vocálicas dos personagens, entregando quadrinhos sofisticados, que transformam o portador de necessidades especiais em alguém que tem bastante a dizer, mas de um jeito pouco usual.

Para fundamentar isso, vou usar o Clint Barton de Matt Fraction que, em determinado momento, fica surdo e passa a se comunicar por linguagem de sinais; o roteiro de Matt Fraction vai até mais longe com Lucky, o cão de Clint, que tem balões simulando via símbolos como ele, supostamente, compreende o mundo ao seu redor. Com Raio Negro, o buraco é até mais embaixo, já que se trata de personagem cujo poder destrutivo da voz impele um automutismo que, se bem aproveitado, rende até Eisner; e no cinema, Oscar de melhor filme. Esse tipo de contexto, que desafia convenções linguísticas e/ou se adapta às dificuldades sensoriais dos falantes, tem cacife para oferecer uma experiência única, fora da caixinha – ou do aquário.

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A noite das mulheres (#33) → Como sugere o título da história, o team-up aqui parte de um happy hour entre Batgirl, Mulher-Maravilha e Zatanna. Essa noite é justamente a da véspera de A Piada Mortal, o que a marca pelos extremos do dia seguinte: em 24hs, Barbara vai de um dos momentos mais felizes da vida para, indiscutivelmente, o seu pior.

Fora do tempo (#34-35) → São dois “one-shots” que se complementam: o primeiro une os três legionários originais, Garth Ranzz (Relâmpago), Rokk Krinn (Cósmico) e Imra Ardeen (Satúrnia) com a Patrulha do Destino; já o segundo, une – ou melhor, passa perto de “unir” – os dois primeiros grupos com a Legião dos Super-Heróis Substitutos e o Quinteto Inferior.

Basta dizer que essa última edição (#35) é uma das mais engenhosas e divertidas tramas de viagens temporais que já tive a oportunidade de ler, sendo, também, por que não, (mais) um canto do cisne para a revista, ainda que irreverente.

Não custa lembrar que isso só ocorreu por não ser eu quem dá as cartas na DC.

[1] A Panini publicou uma coleção de Lendas do Cavaleiro das Trevas com parte da trajetória do Batman ilustrado por Aparo, sendo que a maioria absoluta das edições compiladas perpassa exatamente a produção desse artista em O Bravo e o Audaz.

[2] Custou um pouco e o custo está bem salgado, mas, no dia da atualização desse texto, 2 de abril de 2024, está em pré-venda na loja virtual da Panini o respectivo encadernado.

[3] Em 2003, o roteirista Will Pfeifer esteve a frente de um ótimo revival desse conceito. Uma pena que não chegou a sair no Brasil por meios oficiais.

[4] Grundy é um Elemental "imperfeito" da Terra, posto, por sinal, ocupado pelo Monstro do Pântano.

6 comentários:

Tulio Roberto disse...

Úia!!! três posts e tão curto período de tempo!!! Parece e o Pulse voltou mesmo!!!! :D

Luwig Sá disse...

Túlio, parece mesmo! Bate na madeira!

doggma disse...

Belo guia de leitura. Essa história do Disco-H parece saída da série 1 de Twilight Zone. E que pescada fantástica essa sua do Sr. Destino! Nem o Depósito das Ideias faria melhor. Já copiei tudo pra botar na agulha do DC++ mais tarde.

Straczynski bastante polêmico de fato, mas também um criador altamente diferenciado. Quem curtia discordando muito era um antigo colaborador, o Fivo, que dedicou alguns textos ao Aranha fases Totem/Morlun.

Que pena ler sobre a posição do Stracza em relação a Poder Supremo. Eu ainda tinha esperanças, é mole? Pelo visto, as tais diferenças irreconciliáveis são mesmo... irreconciliáveis. Razão mais do que justa, no entanto. Esquadrão PG-13 não dá.

Ps: interessante sua apreciação da arte de Jesus Saiz. Único material que tenho dele está na mini Liga da Justiça: Batismo Negro e te digo... nada memorável. De 2001 pra cá muito nanquim já deve ter rolado naquele tinteiro.

Luwig Sá disse...

Dogg, como disse, esse conto do Lanterna/Destino foi qualquer coisa de genial. E o mérito da pescada é do Straczynski, que na pesquisa para escrever o roteiro dessa edição, provavelmente, deve ter derrubado algumas brejeiras com o Morrison no arquivo morto da DC.

Sobre Poder Supremo, sinto que seja eu a lhe dar a notícia, mas...

http://cdn2.denofgeek.us/sites/denofgeekus/files/styles/insert_main_wide_image/public/supremebodies2.jpg?itok=pVfQt96m

...foi humilhante, parceiro. Montinho! Publicado em NV #24 do Jon Hickman.

Por fim, pensei que a hora e a vez do Saiz seria no revival do Xeque-Mate do Rucka. Mas a série, embora muito boa, não chegou a emplacar.

doggma disse...

Não, cara. Não faz isso. Não...

Nooooooooo...

Luwig Sá disse...

Pois é, Dogg, montinho! Nuff said!