Nome fácil nos círculos literários contemporâneos, Milton Hatoum não é romancista de vasta produção, mas as sutilezas da mesma têm cacife para ensejar, por vários e vários anos, uma bela fortuna crítica. Doutor em Teoria Literária pela Universidade de São Paulo (USP), embora admita que a própria trajetória pessoal seja o motor de propulsão na tessitura de seus textos, o ponto fulcral de Dois Irmãos (2000), por exemplo, é o flerte com a ambiguidade. Trocando em miúdos, até que altura do que ele escreve é realidade ou ficção? Vamos mais longe: quem seria Hatoum na obra homônima? Se os leitores forem à cata de informações sobre a biografia dele, certamente encontrarão dados que corroboram com a teoria que o personagem de Yaqub e autor são na verdade a mesma pessoa. Por outro lado, quem é que pode garantir isso? Melhor ainda, quem é a figura do autor? Eis os mistérios da Literatura.
Esses são apenas alguns temas que aventam Dois Irmãos como uma leitura que propicia, em circunstâncias distintas, diferentes interpretações por um só indivíduo e, de igual modo, pode ser lido por variados indivíduos e ter infinitas possibilidades de transformações. Algo que nos remete diretamente ao instituto das adaptações ou traduções. Isto é, apropriações, filhos bastardos dos melhores cânones, que existem e são necessárias porque toda e qualquer sociedade necessita da atualização de seus discursos, sejam artísticos, filosóficos, jurídicos, científicos, políticos, religiosos. Os quadrinhos como um meio de expressão, de histórias, de ideais, veio a ser outro espécime de tradução da obra de Hatoum, com roteiro e arte de Fábio Moon e Gabriel Bá, como um trabalho de permuta, barganha, perda, troca e negociação da HQ com a literatura e da literatura com a HQ.
Logo, toda sociedade precisa que esses valores estejam apropriadamente atualizados, o que nos remete à sina de Jorge Luis Borges, qual seja, de que os grandes autores são imortais e a boa literatura, eterna. Todavia, os escritores morrem e seus leitores igualmente. Como, em tal caso, dá-se a efetiva permanência da obra literária? A resposta não demanda longos floreios ou epifanias circunstanciais, na verdade, é bastante simples, basta o investimento em novos públicos e, para tanto, a adaptação constitui uma estratégia astuta para apresentar às gerações vindouras de leitores um discurso literário que legitima a mensagem do autor-criador.
Adaptadores como Moon e Bá[1] são desafiados intelectual e ideologicamente a resumirem e reescreverem o enredo, decidindo como ou que partes o texto integral poderá receber cortes. A edição, por sua vez, não pode deixar pontas soltas, como passagens ou diálogos inúteis, carentes de significação. A narrativa resumida é, por que não, uma nova narrativa, que deve contar uma história com início, meio e fim. Tem de ser autossuficiente, bem resolvida, e ainda assim, corresponder ao argumento de outrora, afirmando-se paradoxalmente como outro ao saciar o horizonte de expectativas dos leitores. A reconfiguração elencada pode ser vista ao traçar-se um paralelo entre o texto de Hatoum e a página da história em quadrinhos que o corresponde. E não se trata apenas de desenho gráfico com letras, mas, especialmente, de imagens fomentadas intelectualmente e materializadas em linguagem capaz de provocar um desvio do que seria o aguardado, propiciando um estranhamento que salta aos olhos.
No caso da versão de Dois Irmãos, de Moon e Bá, publicada pelo selo Quadrinhos na Cia. (Companhia das Letras), por exemplo, a ideia é o traço preponderante, mas requer a sinestesia das duas mentes em questão, isto é, depende da conduta individual do roteirista e cartunista para que a narrativa almejada encontre um equilíbrio próprio. É desse modo que o roteirista pode reforçar o processo de tradução, no fornecimento de descrições mais apuradas que não precisam ser reproduzidas, mas servem de guia para o cartunista. Consequentemente, redigir no meio gráfico denota redigir para o ilustrador. O escritor cede o conceito, o argumento e a lista de personagens. Suas linhas de diálogo nos balões são dirigidas ao leitor, contudo, a descrição da ação é endereçada ao tradutor gráfico[2].
Tanto o romance quanto a história em quadrinhos de Dois Irmãos narram a ascensão e a derrocada de uma família de imigrantes libaneses marcada pela rivalidade fraternal dos gêmeos Yaqub e Omar. O pilar da discórdia parte da predileção da matriarca, Zana, pelo mais novo, Omar, cujos mimos desde a tenra idade passam a sabotar não apenas a relação com o irmão, mas também as próprias interações com o marido, Halim, e os demais entes. Ambientada em Manaus, a adaptação em quadrinhos é a obra de traço mais estilizado e minimalista que já vi de Moon e Bá, ostentando, em suas páginas, pretos & brancos não apenas estéticos, mas que agregam graficamente uma carga simbólica a dicotomia retratada no texto de Hatoum.
Particularmente, em termos de roteiro, o que mais ganhou minha atenção na obra foi a capacidade dos gêmeos quadrinistas de manterem intacta a ambiguidade sugerida por Hatoum no romance. Quer dizer, não há um lado correto ou errado na história dos dois irmãos, há apenas lados. E se o leitor comete o descalabro de julgar a mãe deles, Zana, pelo exílio de cinco anos do filho mais velho, Yaqub, mais lá na frente, provavelmente, pode voltar atrás e crer que, mesmo involuntariamente, ela acabou atuando para que essa ruptura prematura do cordão umbilical fosse o gatilho necessário para que esse rebento pudesse dar início ao seu próprio projeto. Algo que, por tanto, Omar nunca chegou a ser capaz.
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Prévia da minissérie em 10 capítulos exibida em 2017 pela Globo, e que hoje consta no catálogo Globo Play.
Aliás, uma leitura atenta vai acabar chegando a conclusão que Dois Irmãos pode ser interpretada como uma leitura às avessas do mito fundante de Caim e Abel; ou, quiçá, pode ver a coisa como uma remitologização de Édipo-Hamlet, sobretudo porque o herói (Yaqub?) não pode mais permanecer inocente diante da deusa da carne (Zana?); pois ela se tornou a rainha do pecado. Na mesma via, Joseph Campbell[3] diria que “aquele que busca a vida além da vida deve labutar por ultrapassar a mãe, superar as tentações do seu chamado e lançar-se ao éter imaculado do que se acha além”.
Bom, pelo menos, foi o que Omar, definitivamente, não fez.
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[1] Não é a primeira travessia de texto literário para quadrinhos que Moon e Bá estiveram a frente. Eles já adaptaram o poema épico de Rolando e o conto de Machado de Assis, O Alienista. Sendo o último agraciado com o Prêmio Jabuti em 2008.
[2] Ações que, na verdade, se misturam no modus operandi dos gêmeos quadrinistas, mas, de acordo com Érico Assis, nesse álbum em específico, as ilustrações ficaram mais a cargo de Bá.
[3] Em O Herói de Mil Faces (2007).
2 comentários:
Leitura e assimilação nível hard, hm? Esse traço mimetizando alguns recursos Mignolanescos parece ser o ideal na proposta e reforça um pouco o clima meio voyeurístico que senti nessas amostras. Pela coincidência de fatores, lembrei de um conto de horror do mestre Flávio Colin de nome "Juventude Transviada", publicado na velhusca Spektro #15 (facilmente googlável).
E cá pra nós, ainda quero ver uma fusão entre a 6ª e a 9ª arte tão definitiva quanto a obra máxima do Hal Foster.
Abraço!
Dogg, dada a proximidade dos gêmeos com o Mike Mignola por conta dos trabalhos no B.P.R.D., é bem possível que os embriões desse traço mimetizado tenha surgido ali. O Érico Assis pescou essa mesma referência ao Flávio Colin em Dois Irmãos, o que confesso, desconhecia.
Príncipe Valente é até covardia! E dependendo do caso, acrescente na fusão a 3ª também!
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