quinta-feira, 25 de abril de 2024

20 ANOS DE DESOLAÇÃO

Mike Jones era um agente do MI6 que exagerava tanto na bebida que, vire e mexe, acabava se voluntariando como cobaia em experimentos obscuros. O motivo? Fugir do trabalho para passar semanas de molho, apenas dormindo. Entretanto, um dos testes fez exatamente o oposto: privou-lhe do sono por um ano e, de quebra, o deixou parcialmente sem sentidos[1], sem pigmentação da pele e alérgico à luz solar. 

Isso foi há alguns anos. Hoje, Mike faz parte de uma comunidade de operativos clandestinos, muitos dos quais também envolvidos em procedimentos similares, confinados na área que as autoridades de Los Angeles apelidaram de “Cidades dos Espiões”, mantendo-a selada e legalmente invisível. Essa seria, digamos, a origem secreta do protagonista de Desolation Jones, de Warren Ellis e J. H. Williams III; quadrinho publicado em 2005 pela WildStorm, mas que em dezembro próximo mudará de casa e ganhará uma reedição especial pela Image Comics.

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Continuando. O tal distrito é administrado por Jeronimus, um ex-agente da C.I.A considerado uma obra-prima cirúrgica: ele só precisa comer quatro vezes ao ano. Porém, quando precisa fazê-lo, tem que ingerir muita proteína. Grandes quantidades de proteína! Muita carne! O que ele faz? Ora, vai a uma região de UFOs, com histórico de sacrifícios massivos de vacas, e come carne na floresta. Por conta disso, é o único com permissão para sair dos limites de L.A – sob permanente vigilância armada, é claro.

O mesmo Jeronimus é uma espécie de empresário de Jones, que lhe arruma serviços de detetive dentro da comunidade. Eventualmente, também é assessorado por sua vizinha, Robina, capaz de improvisar e bolar qualquer tipo de situação, às vezes como uma “Q” baixa renda, quase sempre como um ombro amigo. Como disse, Jones é um investigador que presta serviços exclusivamente para os membros de sua comunidade. Certa feita, ele recebe o chamado de um velho coronel para investigar o furto de um vídeo pornô de sua propriedade, produzido, dirigido e estrelado por ninguém menos que Adolf Hitler.

A partir daí, o trabalho toma corpo quando começa a buscar informações nos últimos degraus do underground los angeleno. É nessa busca que somos apresentados a personagens ainda mais intrigantes. A começar por Filthy Sanchez, dona de uma loja que comercializa todo tipo de fitas pornô. Cercada de sodomitas, quando questionada por Jones sobre o tal “Santo Graal da Sacanagem Cinematográfica”, vira a casaca e tenta obtê-la para si própria.

E o que dizer de Emily Crowe? Uma ex-agente que também vive em exílio na cidade, mas sua condição por si só já funciona como cárcere. Seus atributos especiais? Ela deveria ser a femme fatale definitiva com o poder de superproduzir feromônios sexuais. Não funcionou, aliás, tal como Jones, o que aconteceu foi justo o inverso. Quem se aproxima dela sente medo e repulsa; algo indescritivelmente perturbador. A solidão que isso lhe resulta é patente. Apena Jones é imune aos seus dons e, obviamente, o único que tem contato físico com ela. Aliás, chega a ser tocante quando ela lhe implora para que fique em sua casa por pelo menos mais uma hora.

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Uma sequência em especial chama a atenção no gibi:

Durante a busca, Jones topa com uma atriz pornô veterana defendendo uma novata que está com alguma infecção. Ela se chama Nicole, tem 27 anos, e numa conversa de bar, acaba fazendo um verdadeiro check-in da profissão, relatando o cotidiano dessa indústria ao detetive. São seis páginas difíceis. No nível do texto bruto, a cena em si já é pouco convencional, mas ela é levada para outro nível graças à arte de J. H. Williams III e as cores de José Villarrubia; que confere às visões de Jones – consequências do experimento – algo que se pode ser comparada com as alucinações despertas de Rust Cohle em True Detective. As visões mais comuns são os anjos perdidos de Los Angeles, uma espécie de sensibilidade ao ambiente.

Assim, Jones tem delírios da garota emulando tudo que acabara de falar. Em alguns casos, a coisa é brutal, em outros, degradante num nível que faz Black Kiss de Howard Chaykin parecer um gibi carola. Piora quando você não resiste e acaba fazendo uma leitura anacrônica, trazendo o recente retrospecto de Warren Ellis para dentro das páginas. Quer dizer, em 2005, tínhamos apenas uma passagem excêntrica do celebrado escritor de Authority e Planetary, mas, em 2024, a coisa soa como se ele já estivesse transparecendo alguns fetiches e temas aos quais tinha interesse.

Enfim, não digo isso como alguém puritano, censurando uma obra ficcional. Longe de mim, porém, me pergunto se interessa ao Ellis desengavetar Desolation Jones em um momento onde sua presença (virtual) vem sendo retomada de forma discreta, passando longe de qualquer vespeiro. Afinal, o tribunal da internet não está para brincadeira, e de tão ameaçador, passamos do paradigma de um “SE” hipotético para a certeza do “QUANDOteremos outro Ed Piskor.

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Voltando aos desenhos do gibi, gostaria de dizer que nada contra John Cassaday, o vencedor do Eisner Awards 2006[2], mas o grande vencedor moral naquela sexta-feira do dia 21 de julho de 2006 foi J. H. Williams III. A sinergia do traço meticuloso em mosaico agregou gradações oníricas únicas ao texto ácido de Warren Ellis. Só não digo que foi um casamento perfeito, porque o artista tem um fraco notável para roteiristas ingleses; vide sua excelência em Promethea (Alan Moore) e Sandman Prelúdio (Neil Gaiman).

No mais, me parece que Desolation Jones é um trabalho desconhecido, mas – mesmo na releitura - o julgo como um dos melhores que já li de ambos os autores. É uma verdadeira dedada no olho.

 

Outro detalhe interessante: Michael Jones parece que foi forjado sob encomenda para um dia ser vivido por Hugh Laurie. A semelhança é tanta – devido ao uso imoderado de ácidos para aliviar as alucinações -, que em dado momento, o tradicional Vicodin do mau bom doutor é até citado. Outros pontos de convergência entre Gregory House e Mike são: a indisfarçável fragilidade física e o fato que ambos estão cagando para o mundo.

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“Cavalheiros ingleses sempre deixam suas acompanhantes bêbadas e chapadas. É a única maneira de fazermos as pessoas dormirem conosco” (JONES, Michael). 


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[1] Uma condição que, em certa medida, me lembrou o agente Holden Carver, de Sleeper. No entanto, Jones ficou bem mais sequelado que o personagem de Ed Brubaker e Sean Phillips; dormindo, se tanto, apenas uma hora por noite e, embora imune a dor, seu sistema imunológico é uma porcaria. Tanto é que antes um beberrão inveterado, agora ele poderia sofrer um choque tóxico se tomasse uma gota sequer de álcool.

[2] Aliás, nessa época, o Cassaday foi tricampeão do Eisner Awards na Categoria Desenhista/Arte-Finalista, conquistando o troféu nos anos de 2004, 2005 e 2006.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

O SUPERMAN DE CADA UM

Se alguma vez tivéssemos de lidar com um incêndio, eu salvaria a capa do Superman de Christopher Reeve e o cartaz autografado que ficam no lobby de casa. Uma vez seguros, eu correria de volta para dentro e ajudaria minha esposa e filhos.”[1]

Esse trecho acima é só uma pequena amostra da devoção que o Mark Millar tem com o Homem de Aço. Na verdade, além dessa memorabilia milionária, ele diz ter em seu acervo o gatinho que o personagem salvou no comecinho do filme de 78. “Gatinho?”, você me pergunta. Sim, o gatinho original... empalhado. Excentricidades à parte, no posfácio do encadernado de Wanted, o escritor resgata uma memória da infância e relembra de onde surgiu a história de Wesley Gibson. Para encurtar a conversa, ele diz que nos seus cinco anos de idade, afanou da minibiblioteca nos fundos da sala de aula, um livro capa dura sobre os Estados Unidos.

Revela que a imagem da Estátua da Liberdade o enfeitiçou e, ainda que não tivesse nada a ver com o Super, isso o levou longe: “[...] foi uma experiência tão grandiosa e transformadora quanto o momento em que Moisés, rumo a sei lá onde no deserto (histórias em quadrinhos cativavam muito mais o meu interesse que o Velho Testamento) recebe um telefonema divino transmitido por um arbusto em chamas. Eram tempos de vacas magras e pessoas, literalmente, magras, já que a população escocesa – segundo ele – era àquela altura a que tinha o mais baixo índice de obesidade do mundo ocidental. Sequer havia TV a cabo no Reino Unido, então todo o entretenimento que se tinha, você valorizava ao máximo.

E o tal livro sobre um país rico e moderno, lar do super-herói favorito, atiçou sua imaginação: O que aconteceu com o Superman? Por que a gente ainda vê desastres aéreos nos noticiários? Por que acontecem terremotos? Se o Superman é o maior herói norte-americano, por que não ajuda as pessoas na vida real, como faz nos gibis?”. Esses questionamentos foram regurgitados para Bobby, o irmão mais velho (17)[2], que em tom de troça lhe devolve como trágicos esclarecimentos: O que aconteceu com o Superman? Você nem ficou sabendo? Superman desapareceu depois de uma batalha colossal contra os supervilões. Superman, Batman, Homem-Aranha, Capitão América, Mulher-Maravilha... todos eles sumiram em meio a esse terrível conflito e nunca mais foram vistos novamente”. Desolado, o pequeno Mark virou pro lado e tentou dormir, porém, lhe restou uma pergunta sem resposta: “E o que aconteceu com os supervilões?.

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Corta para 2004. Millar tem 34 anos de idade. No final da segunda edição de Wanted, o Professor Solomon Seltzer responde as dúvidas de Wesley, explicando como os vilões eliminaram toda a comunidade super-heroica em 1986. O jovem Matador fica incrédulo por não existir qualquer resquício dessa Era e, claro, por que ninguém tem memórias disso. O cientista fala que não era o bastante derrota-los, eles queriam apagar qualquer lembrança dos civis sobre os super-heróis. Para tanto, tinham tecnologia e pessoal para reescrever a realidade. Mais que isso: "Nós temos duendes da sétima dimensão e supercomputadores extraterrestres em nossas fileiras, sabia? Se nos mantivermos sempre unidos, nada jamais será impossível pra nós". No fim, Seltzer  mostra ao rapaz a capa do que parecia ser o Superman dali, a prova cabal daquela vitória arrasadora.

Corta para 2024. Millar tem 54 anos de idade e, tal como o vilão acima, tem uma capa do azulão como prova de que venceu na vida, fez fortuna[3] e se tornou um dos únicos profissionais da indústria que diz publicamente que só trabalha com quadrinhos por amor à mídia. Hoje em dia, aparentemente, com muito tempo livre[4], o escritor tem uma forte presença no Twitter/X e adora jogar conversa fora com gente do meio no seu canal de You Tube.

Mais que isso, vive cornetando às duas editoras majors com soluções para resolver o declínio do mercado direto; que, segundo ele, sofreria uma revolução caso houvesse uma distribuição (séria) de royalties e, claro, remunerasse melhor os artistas, em especial os que ganham destaque e viram os favoritos dos leitores. Não bastasse isso, vinha alardeando que gostaria de voltar à DC Comics para fazer um projeto com o Superman, sem falar os momentos em que se porta como um mero fã, pedindo que algo do seu interesse fosse republicado. Enfim, quase todo dia, o falastrão escocês aparece com pílulas de conhecimento e cascata em proporções iguais; o que ninguém contava é que ele saísse da missa de domingo com uma bomba-relógio como essa:

Sim, a bomba está armada e em menos de uma década, não só Mark Millar, mas o mundo todo poderá publicar seu gibizinho do Superman. Isso, claro, desde que as histórias se atenham aos parâmetros de Action Comics nº 1, de junho de 1938. O que não é pouco. Um bom exemplo do poder de destruição em torno dos elementos da edição que cairá em domínio público reside justamente no relançamento da revista em 2011, quando Grant Morrison[5] fez questão de explorar apenas as ideias contidas ali, do personagem em sua versão 1.0: o imigrante definitivo, o jornalista, o amante platônico e, evidentemente, o street fighting man com superpoderes - porém, àquela altura, ainda desprovido das demais extrapolações sensoriais.

O desafio do atual proprietário do Copyright é usar esse tempo que lhe resta para trabalhar formas que integrem o personagem ainda mais às especificidades do Universo DC. Na prática, isso já está acontecendo bem debaixo dos nossos narizes, ao ampliar o número de produtos culturais onde Clark Kent está associado a outras propriedades intelectuais, numa verdadeira relação sine qua non. O exemplo mais óbvio é o do patriarca de uma superfamília ou as histórias com grande elenco; ou você acredita realmente que todas as participações especiais no vindouro filme de James Gunn são só um capricho pessoal do diretor?

Por outro lado, falando em capricho, o manifesto de intenções só soa inédito para quem chegou agorinha no Millarworld; nesse caso, literalmente. Afinal, ele já assinou diversos roteiros para o personagem, entre eles os elogiados Superman Adventures e Entre a Foice e o Martelo; e extraoficialmente nos autorais Legado de Júpiter, Superior e Huck.

Na verdade, tanto a DC quanto Millar querem a mesma coisa. Um deseja produzir um Superman relevante, que ainda se destaque perante a concorrência; o outro, mesmo tendo realizado tudo e conquistado uma conta bancária invejável, parece saudoso dos tempos em que fora relevante, irreverente e seus quadrinhos não parecessem um looping irrefreável de repetição temas.

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Do lado de cá, se ainda seguir vivo e (ir)relevante, prometo voltar em 2033 para atualizar esse texto. Até lá.

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 Links Afiliados


[1] Postagem de Mark Millar no Facebook no dia 22 de outubro de 2020.

[2] Millar era o caçula de cinco, sendo quatro irmãos e uma irmã.

[3] Não dá para precisar quanto abocanhou na venda de dezessete franquias à Netflix em 2017, porque, obviamente, os valores foram rateados entre vários artistas, mas é seguro dizer que Mark Millar foi quem ficou com a maior fatia dos 25 milhões de libras; ou, vá lá, 31 milhões de dólares americanos.

[5] Amigo, mentor, desafeto e, para piorar, ainda dono do melhor gibi do Super com o Frank Quietely.