quinta-feira, 14 de setembro de 2023

O EDITOR ESTÁ NU

 

Não, eu não pretendo começar esse texto comentando o clássico clip aí em cima, embora seja um ótimo som do Bee Gees para ouvir enquanto você lê nossas próximas linhas. Mas já que trouxe isso à tona, duas infos rapidinhas: 1) a canção Night Fever ocupa a 47ª posição na lista das cem melhores músicas de todos os tempos na revista Billboard; e 2) Night Fever foi a canção mais reproduzida nas rádios brasileiras em 1978; impulsionada, claro, pelo sucesso de Embalos de Sábado à Noite (Saturday Night Fever), do qual estava incluída no setlist da trilha sonora.

A expressão em língua inglesa é mais conhecida justamente pela lembrança da película de John Travolta, porém ela tem outros sentidos. No cotidiano médico, a tal Febre Noturna costuma ser uma exceção à febre comum, que é mais facilmente sentida durante o dia. Ao ocorrer à noite, pode ser um indício que a pessoa pode ter piorado e, como se pode imaginar, ela desperta ensopada de suor. Se cavar mais um pouco, vamos encontrar a expressão atrelada à Igreja Católica, como uma noite de oração dirigida a não praticantes; de modo que voluntários ficam nas proximidades de bares e casas noturnas, prontos para identificarem e convidarem indivíduos dispostos a fazerem as pazes com Deus.

Night Fever também é a mais recente graphic novel original fruto da parceria Ed Brubaker e Sean Phillips. O sentido do título pode ser um mix de tudo isso acima, já que o protagonista Jonathan Webb, um respeitado publisher, egresso de New Rochelle nos EUA, se vê seduzido pela exótica vida noturna em uma cidade francesa[1]  onde ocorre uma feira literária. De dia, ele está a trabalho, representando e buscando novos negócios para sua editora, mas à noite isso fica em segundo plano quando o barato da adrenalina nos pequenos desvios de conduta escalona para crimes mais sérios. Se me perguntassem, eu diria que Night Fever é o casamento perfeito entre Pulp Fiction e De Olhos BemFechados.

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Os leitores mais atentos aos trabalhos recentes de Brubaker – e isso inclui até sua Newsletter –, já deve ter percebido a inadequação e a insatisfação do escritor com os tempos atuais. As críticas, porém, têm sido transpostas com certo anacronismo em enredos que se mantém a uma distância segura do século 21[2] . Então, o desgosto surge como uma antecipação aos dissabores (artísticos) que virão nas próximas décadas; daí estão os Srs. Hal Crane, Max Winters e Ethan Reckless que não me deixam mentir.

Em Night Fever, a frustração interna de Jonathan Webb está numa criação artística que nunca apostou de verdade, e o próprio modo de produção de um tempo pré-revolução digital. Estamos em 1978 e, como disse mais acima, o protagonista é um editor de uma era onde o ofício costumava mesclar editoração com agenciamento de escritores, revelação de talentos e um meio de campo comercial com as livrarias interessadas em vender o catálogo de produtos das editoras. Note que, nessa época, o leitor em momento algum entra nessa equação – daqui a pouco, eu desenvolvo melhor isso.

Toda a preocupação de Webb repousa em duas circunstâncias: 1º) fazer uma acareação com o novo autor que, supostamente e insolitamente, furtou-lhe um sonho e o transformou em romance; e 2º) se vai perder o emprego após ignorar os compromissos e reuniões com revendedores. No fundo, as desventuras e a identidade que ele assume nas noites de jogatina, crime e violência viram uma busca pela catarse que a vida desperta lhe nega. 

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A propósito, uma bela canção do Bowie.

Por sinal, “Griffin”, o nome falso que ele adota, não é uma alcunha qualquer. É o nome do Homem Invisível de H.G. Wells. Um indivíduo amoral que, no manto da invisibilidade, tem a liberdade que os seres humanos normais, visíveis a olho nu, não podem ter. Não se quiserem mesmo viver em sociedade, porque a alternativa é uma existência atrás das grades. Logo, é muita coincidência que Webb use “Griffin” para ficar invisível e anônimo naqueles dias. Aliás, falando em coincidências, vejam esse trecho do posfácio de Brubaker:

Não tenho certeza de onde veio este livro e não tenho certeza se quero tentar explicar de onde acho que veio. É melhor deixar algumas coisas para você descobrir sozinho. […] Mas esta é uma história sombria, admito. E como eu disse, não sei de onde vem tudo isso (nenhum escritor sabe realmente de onde vêm suas ideias). Mas depois dos últimos anos, se todos nós não tivermos alguns pensamentos sombrios no fundo de nossas mentes, eu ficaria muito surpreso. Eu penso em escrever como uma espécie de terapia, e se isso é verdade, então este livro pode ser qualificado como um grito primal. Meu padrasto tinha uma caixa de grito primal em seu escritório e eu rastejei para dentro dela uma vez e realmente me soltei, e enquanto a claustrofobia disso me atingiu, o grito conseguiu alguma coisa. E espero que este tenha feito algo por você também.”

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Falei lá em cima que voltaria ao tópico da falta de voz do leitor na HQ e, claro, nesse período pré-revolução digital. Na verdade, eu disse isso sob a influência da bela aula (gratuita) que o Sr. John B. Thompson ministrou sobre o futuro do livro.

Thompson é sociólogo, professor da Universidade de Cambridge e um dos grandes pesquisadores da atualidade sobre o crescimento monopólico da Amazon, e como isso vem repercutindo no storytelling de marcas, nas novas formas de monetização e ressignifica o conceito do que é um livro. Para tanto, não é uma discussão de orelha. Pelo contrário, ele traz consigo vários dados empíricos e chega a conclusões que começam a saltar aos nossos olhos.

Uma delas é que para sobreviver, a indústria livreira atual está se voltando diretamente para o leitor e não mais ao revendedor. Logo, o editor clássico como o Jonathan Webb de Night Fever tem perdido espaço para publishers comunicadores, com presença constante em mídias sociais, canais de You Tube e podcasts. E me parece que essa presentificação 24/7 virou a chave e tem cobrado um alto preço às pessoas, porque não basta mais fazer o trabalho que precisa ser feito, você precisa também gritar aos quatro ventos que o trabalho existe.

E mais: se o trabalho antes importava ao profissional um status de entidade abstrata, onde o editor, se muito, poderia ser um personagem (inalcançável) dentro do próprio quadrinho, hoje ele está virtualmente nu e vulnerável ao escrutínio público. 

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Nesse contexto, o editor se tornou tão humano que, assim como a maioria de nós mortais, virou algo descartável[3], uma redundância do sistema que escritores e artistas contemporâneos julgam – erroneamente! – não precisarem mais. Por essas e por outras que acho que Night Fever[4] é um grito de socorro de uma espécie em extinção.



[1] No posfácio, comenta-se que Phillips se refestelou nessa história porque foi a primeira vez em muito tempo em que o lápis dele perambulou por seu Velho Mundo e não no Novo Mundo de Brubaker.

[2] A única exceção que me vem à mente agora é a de Dylan, de Matar ou Morrer (Kill or be Killed). Onde o próprio protagonista lembra um revolucionário de textão de Facebook que saiu do controle.

[3] Só para ilustrar, cerca de 1/3 dos cargos editoriais na DC Comics foram extintos em 2020. Não escapou nem o editor-chefe, Bob Harras, que ocupava a função desde 2010. Nesse rastro de destruição, vários editores assistentes foram dispensados; a exemplo de Mark Doyle, que cuidava da revista regular do Batman, líder de vendas da companhia.

[4] Night Fever ainda não foi publicada no Brasil, mas como a Editora Mino vem lançando tudo da dupla, aposto uma cerveja gelada que o gibi estará relacionado nos planos da editora em 2024.

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

ERAS ESPACIAIS

A expressão “Era Espacial” costuma ser associada à corrida espacial e toda a sorte de inovações socioculturais que surgiram a partir de 1957; na esteira do lançamento do satélite soviético Sputnik 1.

Na verdade, essa Era ainda está em curso e, se comparada com a ficção científica de For All Mankind[1], devo dizer que ela tem sido bem frustrante. Isso porque, na realidade imaginada pelo seriado de Ronald D. Moore na Apple TV, no lugar de Neil Armstrong, o primeiro homem que pisou na Lua foi o russo Alexei Leonov, em 26 de junho de 1969. Quase um mês antes dos norte-americanos da História factual, em 20 de julho de 1969.

A mudança de nacionalidades só parece simples no texto, mas, no enredo, ela desencadeia um efeito borboleta que acirraria ainda mais a Guerra Fria e criaria um ímpeto expansionista que, se existiu no mundo real, ele ficou para trás no momento que Neil disse que aquele era “um pequeno passo para o homem, mas um gigantesco salto para a humanidade”. Pensando bem, não tão gigantesco, visto que só agora, 54 anos depois, é que as coisas estão começando a acontecer na Lua:

“O plano, dessa vez, não é ir para apenas fincar bandeira e voltar, mas desenvolver atividades permanentes e autossustentáveis de exploração, algo que se tornou possível ao longo das últimas décadas. “Até agora, a Lua ainda não foi explorada […] Cientificamente falando, tem muita coisa a se fazer lá. A cada dia, as pessoas estão fazendo mais e mais descobertas”, afirmou a VEJA o diretor sênior de estratégia para exploração humana e robótica da Agência Espacial Europeia (ESA), Stefaan De Mey”.

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No minuto que os norte-americanos se veem derrotados na corrida, o investimento humano e o aporte em verbas sofrem uma escalada sem precedentes. Mais que isso, sempre de olho no que o inimigo vermelho está fazendo, incluindo o envio de mulheres cosmonautas à Lua, os EUA se forçam a entrar também no jogo da representatividade e iniciam o recrutamento de aviadoras de carreira para serem treinadas no ofício de astronauta.

Algo que, por sinal, nesse continuum que vivemos, só ocorrerá em 2025, mas lá em For All Mankind, no início da década de 1970, a tripulante Molly Cobb da Apollo 15 não só pisa em solo lunar, como também descobre a existência de gelo no lado oculto da Lua; o que permitiria a instalação de bases fixas para exploração e colonização. Vale dizer que, dada toda a marra da personagem, quando nos deparamos com o sorriso de Molly[2], segurando a primeira amostra de gelo, ele te emociona por ser genuinamente encantador e inesperado. E inesperados também são os desdobramentos dessa descoberta; os quais desejo que você, caro leitor, a faça também.

For All Mankind tem três temporadas disponíveis, com mais uma vindo ainda em 2023. Do jeito que caminha, cada uma com saltos temporais e novos paradigmas, confesso que um dos meus sonhos atuais é ver o dia em que a série começará a propor a propulsão de dobra espacial e a humanidade dali passará da Lua e Marte para outras galáxias.

Claro, não ao sabor da extrapolação meramente pseudocientífica; parte da graça é que tudo nasce da ciência real e isso é devidamente apresentado ao fim de alguns episódios. O que muito me lembra a habilidade do romancista Andy Weir de trabalhar seu sci-fi dentro do que se conhece na física, química e engenharia; até com um didatismo pra lá de bem-humorado.

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Um paralelo rapidinho:

Nesse último fim de semana, assisti a Indiana Jones: O Chamado do Destino. O início do filme também vai ao encontro da Era Espacial, especificamente na época dos desfiles e festejos em comemoração à façanha dos três astronautas de volta à Terra. É um timing indigesto para alguém como o Dr. Henry Jones, que prestes a se aposentar da cátedra, vê com melancolia o clamor pelas estrelas em detrimento de sua agora ainda mais arcaica… arqueologia.

Se tivesse desacelerado o passo e investido mais nessa inadequação do velho Indiana, talvez o filme pudesse ter sido outro e não uma colagem frenética dos tropos da franquia. Ainda assim, diverte, sobretudo no comecinho, na passagem da 2ª Guerra Mundial com o Harrison Ford espantosamente rejuvenescido por inteligência artificial. Tanto que ele comenta sobre isso e deixa escapar um certo temor com a ferramenta:

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Como falei em paralelo, Indy 5 e For All Mankind guardam consigo uma semelhança interessante. O longa do diretor James Mangold aproveita o conceito da Operação Paperclip, no qual o Governo dos Estados Unidos recrutou cerca de 1.600 cientistas alemães e austríacos no pós-guerra; alguns dos quais envolvidos com nazistas. O mais notável, sem dúvida, foi o Dr. Wernher von Braun, conhecido pela expertise em foguetes e a contribuição com o pouso da Apollo 11 na Lua em 1969.

No seriado, Wernher é interpretado por Colm Feore e em Indy 5, Mads Mikkelsen vive o vilão Dr. Jürgen Voller, isto é, uma versão mais espalhafatosa da figura histórica; que aqui, diz ter conquistado o espaço e agora intentava desbravar o tempo.

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A Era Espacial também é o subtítulo de uma minissérie do Super-Homem que tem recebido muita atenção do público e da crítica especializada. Tanto que, recentemente, foi indicada ao Eisner 2023 na categoria melhor série limitada. Confiando nos bons elogios que Mark Russell e Michael Allred têm recebido, fiz algo que, nos dias de hoje, pessoas com as faculdades mentais intactas não costumam mais fazer: comprei o gibi sem o ter lido antes.

Sendo bem franco, não sei se foi um bom negócio. O gibi em si é intrigante e com o vigor estético de sempre da Família Allred. Na parte editorial, o que mais me impressionou foi o fato de o compilado ter 250 e poucas páginas, só que derivadas de apenas três fascículos; com cerca de 80, cada. De pedigree Black Label, assim como o Ano Um de Frank Miller, o roteiro de Russell também propõe uma nova ótica sobre os primeiros momentos do Super e vai além.

Quer dizer, percebe-se logo de início que a trama é ambientada em uma Terra paralela que, assim como tantas outras, encontrará seu destino final pelas mãos do Antimonitor. Sim, o McGuffin é engenhoso: narrar a história de um Clark Kent entre 1963 e 1985; isto é, o ano de publicação da Crise nas Infinitas Terras. O percurso, porém, não é nada que já não se tenha visto antes ou que implique, de fato, em fortes emoções.

A começar pelo título que, diferente de For All Mankind, a Era Espacial desse Super-Homem não brinca com as possibilidades da corrida espacial ou sequer serve de indício de uma aventura pelo cosmos. O Russell até rumina sobre isso, mais ou menos à altura em que é noticiado o assassinato de John Kennedy, especialmente quando americanos e soviéticos têm seu arsenal atômico apreendido pelo Homem de Aço – e escondido no lado oculto da Lua –, mas, de resto, a expressão fica esvaziada de sentidos.

Meu problema com o quadrinho, porém, não para por aí. Primeiro porque ao se cercar de referências tão óbvias e recentes, eu acabava me perguntando se deveria continuar lendo ou só ir ali na estante me refestelar direto na fonte. Creio que as alusões mais nítidas são as que Russell e Allred buscam em Grandes Astros Superman, de Grant Morrison e Frank Quitely, especialmente quando a contagem regressiva de A Era Espacial aponta para o fim e o Super-Homem muda sua abordagem com a percepção que aqueles serão seus últimos dias.

Então, tal como a obra de 2005-2008, o personagem registra uma espécie de diário testamento enquanto busca soluções para o desastre iminente através de sequenciamento de DNA. Nesse ponto, até a capa do encadernado remete à icônica All-Star Superman #10.

Só que nada é tão incômodo quanto a ladainha piegas de Russell de sensibilizar o seu leitor com um discurso exaustivo sobre esperança e heroísmo. Na verdade, o que não falta em A Era Espacial são momentos aleatórios de sabedoria que, de tão presentes, começam a soar artificiais; o que um amigo veio a chamar de “gibi de coach”. Achei genial. Se me permitem arriscar uma definição, gibi de coach é aquele quadrinho pensado para que algumas de suas páginas virem memes edificantes e sejam compartilhados à exaustão nas redes sociais.

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O Tom Taylor é ótimo nisso. Já seus quadrinhos, nem tanto.

Então, o Russell perde muito tempo tentando imortalizar[3] alguma(s) sequência(s) tocante(s), e esquece de balancear o ritmo da história e/ou trabalhar melhor os coadjuvantes. Com exceção de Lois Lane, todo elenco parece deslocado, ora com um humor bisonho – a exemplo do Flash à moda Ezra Miller –, ora com um falso protagonismo que chega a incomodar pelo excesso – como o do Batman.

Para ser justo, a qualidade de A Era Espacial depende bastante da quantidade de leitura que já se dedicou ao Super-Homem. Penso que a fruição fica bem comprometida quando você já cumpriu algumas metas (mínimas) como a da já citada Grandes Astros; leu outros recomeços como os de As Quatro Estações ou Alienígena Americano; e, por fim, encarou o mito do herói na esteira de JFK em DC: A Nova Fronteira.

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Link Afiliado


[1] Trata-se de uma expressão altruísta, que em português seria “Para Toda a Humanidade”. Contudo, ela trás consigo uma ironia fina, já que tudo o que vemos parte mais de uma obsessão pelo pioneirismo ou, vamos dizer, um imperialismo espacial.

[2] Inspirada em Jerrie Cobb, uma figura histórica da NASA, e vivida na telinha por Sonya Walger, a icônica Penny de Lost ou a a loba Carolyn de Tell Me You Love Me.

[3] Morrison e Quitely só precisaram de uma página, e quase silenciosa.