segunda-feira, 11 de julho de 2016

SOBRE MENINOS & MONSTROS

Cena01: Por volta dos meus nove anos de idade, durante um bom tempo, eu e alguns amigos da rua, fomos aficionados por dois filmes que eram figurinhas tarimbadas na programação da Globo: Ninja III: A Dominação (Ninja III: The Domination, 1984) e  Guerreiro Americano (American Ninja, 1985). O furor que o recém descoberto Ninjitsu tinha conosco era tamanho que chegamos a instalar uma “academia secreta dos ninjas paraibanos” numa instalação desativada da unidade da Sucam (Fundação Nacional de Saúde). O que fazíamos por lá? Ora, treinávamos com katanas/shurikens de plástico e líamos a Bíblia Ninja e manuais de kung fu.

Cena 02: Tenho quase certeza que o rock me descobriu [e não o contrário] a partir da trilha sonora internacional da novela Top Model, de 1989, com a faixa Stay do grupo Oingo Boingo. Na época, como tudo mais, afinal, eram tempos de hiperinflação, um LP custava uma pequena fortuna, mas fitas K-7 eram acessíveis e funcionavam como botes salva-vidas para pequenos falidos como eu. Bastava ficar de prontidão, ou melhor, de ouvidos na rádio, e “REC”. Coincidentemente, nesse mesmo ano, minha escola estava “revolucionando” o sistema de ensino brasileiro ao substituir a campainha do recreio por toques musicais, abrindo espaço para que os alunos levassem de casa suas próprias músicas via fitas K-7. Não era fácil, havia uma espécie de lista de espera e, ainda por cima, eles analisavam o que podia ou não tocar. No dia que minha Stay tocou, pensei mesmo que tudo iria mudar dali em diante.

O que quero dizer com tudo isso? As duas sequências que determinam toda a cadeia de plot twists que tomam conta de 20th Century Boys, de Naoki Urasawa, edição após edição, partem exatamente de duas premissas análogas às minhas experiências da meninice. Uma delas é exatamente a transmissão da canção do grupo T-Rex, 20th Century Boy, que inspira o título do mangá. Daí, não por acaso, passam a impulsionar a leitura de forma saborosa, às vezes com uma intensidade que só os melhores [e mais viciantes] quadrinhos são capazes. A trama básica é a seguinte: no ano de 1969, uma turma de crianças funda um clubinho oculto num terreno baldio para se divertirem, lerem mangás e criarem suas próprias histórias.

Corta para 1997, o emblema que Kenji Endo e seus companheiros criaram e julgavam esquecido em meio a uma “cápsula do tempo”, ressurge como a logomarca de uma misteriosa seita, liderada pelo enigmático “Amigo”; pior, o roteiro de uma narrativa absurda que escreveram àquela época, coincidentemente, começa a ganhar vida, aniquilando vidas ao redor do globo. Kenji suspeita que esse “Amigo” pode ser alguém que fez parte de seu clubinho, e a única forma de conter a ameaça final profetizada por eles mesmos – no que ficaria conhecido como “Réveillon de Sangue”, em 31 de dezembro de 2000 – seria investigando a fundo uma teoria conspiratória da qual ninguém estava dando crédito, mas começava a corroer a sociedade japonesa bem como suas instituições.

Como 20th me ganhou? Ao trabalhar com especial sutileza os flashbacks dos “Meninos do Século XX” enquanto crianças e suas espetaculares transições para a vida adulta. Por incrível que pareça, 20th é um mangá que, como sugerido mais acima, cria uma interface de identificação com o seu leitor. Quer dizer, é impossível que Kenji, Maruo, Yoshitsune, Keroyon, Mon-chan, Yukiji, Otcho ou Fukubei não lhes remetam a companheiros das antigas, que ficaram pelo caminho no curso da vida, nos levando a se questionar, inclusive, num exercício de “antes e depois”, como comportam-se nossos sonhos ou metas de outrora no “adultecer”.

Diferencial: Mais que um quadrinho maniqueísta, 20th Century Boys é uma narrativa bem construída que abusa de intertextos e metalinguagem, transitando livremente entre idas e vindas em linhas temporais que põem em movimento um vasto elenco de personagens maiores ou menores. Com efeito, tanto o texto quanto a arte de Urasawa não vão ao encontro de excessos e vícios histriônicos, tão habituais no percurso dos mangás; o que, geralmente, justifica minha ojeriza com uma parcela expressiva dos títulos publicados no Brasil. É igualmente digno de nota o trabalho de edição da Panini, mantendo glossários de termos nipônicos intraduzíveis e informações pontuais que só enriquecem a leitura.


Bob Lennon: Canção de Kenji Endo [ou Naoki Urasawa], que vira Hit pós-apocalíptico em 20th.

Em que pé estamos? No momento, foram publicadas vinte e duas edições [bimestrais] de vinte e quatro, sendo que as duas últimas se chamarão de 21th Century Boys. Um número suficientemente decente para investir numa maratona de leituras, e a tempo de ficar à espera do tão aguardado final. Por sinal, observem que tentei ser o mais vago possível aqui, afinal, quanto menos souberes a respeito do enredo de 20th, melhor para sua experiência de leitura.