quinta-feira, 9 de abril de 2015

A VINGANÇA DE ABEL

Nome fácil nos círculos literários contemporâneos, Milton Hatoum não é romancista de vasta produção, mas as sutilezas da mesma têm cacife para ensejar, por vários e vários anos, uma bela fortuna crítica. Doutor em Teoria Literária pela Universidade de São Paulo (USP), embora admita que a própria trajetória pessoal seja o motor de propulsão na tessitura de seus textos, o ponto fulcral de Dois Irmãos (2000), por exemplo, é o flerte com a ambiguidade. Trocando em miúdos, até que altura do que ele escreve é realidade ou ficção? Vamos mais longe: quem seria Hatoum na obra homônima? Se os leitores forem à cata de informações sobre a biografia dele, certamente encontrarão dados que corroboram com a teoria que o personagem de Yaqub e autor são na verdade a mesma pessoa. Por outro lado, quem é que pode garantir isso? Melhor ainda, quem é a figura do autor? Eis os mistérios da Literatura.

Esses são apenas alguns temas que aventam Dois Irmãos como uma leitura que propicia, em circunstâncias distintas, diferentes interpretações por um só indivíduo e, de igual modo, pode ser lido por variados indivíduos e ter infinitas possibilidades de transformações. Algo que nos remete diretamente ao instituto das adaptações ou traduções. Isto é, apropriações, filhos bastardos dos melhores cânones, que existem e são necessárias porque toda e qualquer sociedade necessita da atualização de seus discursos, sejam artísticos, filosóficos, jurídicos, científicos, políticos, religiosos. Os quadrinhos como um meio de expressão, de histórias, de ideais, veio a ser outro espécime de tradução da obra de Hatoum, com roteiro e arte de Fábio Moon e Gabriel Bá, como um trabalho de permuta, barganha, perda, troca e negociação da HQ com a literatura e da literatura com a HQ.

Logo, toda sociedade precisa que esses valores estejam apropriadamente atualizados, o que nos remete à sina de Jorge Luis Borges, qual seja, de que os grandes autores são imortais e a boa literatura, eterna. Todavia, os escritores morrem e seus leitores igualmente. Como, em tal caso, dá-se a efetiva permanência da obra literária? A resposta não demanda longos floreios ou epifanias circunstanciais, na verdade, é bastante simples, basta o investimento em novos públicos e, para tanto, a adaptação constitui uma estratégia astuta para apresentar às gerações vindouras de leitores um discurso literário que legitima a mensagem do autor-criador.

Adaptadores como Moon e Bá[1] são desafiados intelectual e ideologicamente a resumirem e reescreverem o enredo, decidindo como ou que partes o texto integral poderá receber cortes. A edição, por sua vez, não pode deixar pontas soltas, como passagens ou diálogos inúteis, carentes de significação. A narrativa resumida é, por que não, uma nova narrativa, que deve contar uma história com início, meio e fim. Tem de ser autossuficiente, bem resolvida, e ainda assim, corresponder ao argumento de outrora, afirmando-se paradoxalmente como outro ao saciar o horizonte de expectativas dos leitores. A reconfiguração elencada pode ser vista ao traçar-se um paralelo entre o texto de Hatoum e a página da história em quadrinhos que o corresponde. E não se trata apenas de desenho gráfico com letras, mas, especialmente, de imagens fomentadas intelectualmente e materializadas em linguagem capaz de provocar um desvio do que seria o aguardado, propiciando um estranhamento que salta aos olhos.

No caso da versão de Dois Irmãos, de Moon e Bá, publicada pelo selo Quadrinhos na Cia. (Companhia das Letras), por exemplo, a ideia é o traço preponderante, mas requer a sinestesia das duas mentes em questão, isto é, depende da conduta individual do roteirista e cartunista para que a narrativa almejada encontre um equilíbrio próprio. É desse modo que o roteirista pode reforçar o processo de tradução, no fornecimento de descrições mais apuradas que não precisam ser reproduzidas, mas servem de guia para o cartunista. Consequentemente, redigir no meio gráfico denota redigir para o ilustrador. O escritor cede o conceito, o argumento e a lista de personagens. Suas linhas de diálogo nos balões são dirigidas ao leitor, contudo, a descrição da ação é endereçada ao tradutor gráfico[2].

Tanto o romance quanto a história em quadrinhos de Dois Irmãos narram a ascensão e a derrocada de uma família de imigrantes libaneses marcada pela rivalidade fraternal dos gêmeos Yaqub e Omar. O pilar da discórdia parte da predileção da matriarca, Zana, pelo mais novo, Omar, cujos mimos desde a tenra idade passam a sabotar não apenas a relação com o irmão, mas também as próprias interações com o marido, Halim, e os demais entes. Ambientada em Manaus, a adaptação em quadrinhos é a obra de traço mais estilizado e minimalista que já vi de Moon e Bá, ostentando, em suas páginas, pretos & brancos não apenas estéticos, mas que agregam graficamente uma carga simbólica a dicotomia retratada no texto de Hatoum.

Particularmente, em termos de roteiro, o que mais ganhou minha atenção na obra foi a capacidade dos gêmeos quadrinistas de manterem intacta a ambiguidade sugerida por Hatoum no romance. Quer dizer, não há um lado correto ou errado na história dos dois irmãos, há apenas lados. E se o leitor comete o descalabro de julgar a mãe deles, Zana, pelo exílio de cinco anos do filho mais velho, Yaqub, mais lá na frente, provavelmente, pode voltar atrás e crer que, mesmo involuntariamente, ela acabou atuando para que essa ruptura prematura do cordão umbilical fosse o gatilho necessário para que esse rebento pudesse dar início ao seu próprio projeto. Algo que, por tanto, Omar nunca chegou a ser capaz.

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 Prévia da minissérie em 10 capítulos exibida em 2017 pela Globo, e que hoje consta no catálogo Globo Play.

Aliás, uma leitura atenta vai acabar chegando a conclusão que Dois Irmãos pode ser interpretada como uma leitura às avessas do mito fundante de Caim e Abel; ou, quiçá, pode ver a coisa como uma remitologização de Édipo-Hamlet, sobretudo porque o herói (Yaqub?) não pode mais permanecer inocente diante da deusa da carne (Zana?); pois ela se tornou a rainha do pecado. Na mesma via, Joseph Campbell[3] diria que “aquele que busca a vida além da vida deve labutar por ultrapassar a mãe, superar as tentações do seu chamado e lançar-se ao éter imaculado do que se acha além”.

Bom, pelo menos, foi o que Omar, definitivamente, não fez.

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Link Afiliado


[1] Não é a primeira travessia de texto literário para quadrinhos que Moon e Bá estiveram a frente. Eles já adaptaram o poema épico de Rolando e o conto de Machado de Assis, O Alienista. Sendo o último agraciado com o Prêmio Jabuti em 2008.

[2] Ações que, na verdade, se misturam no modus operandi dos gêmeos quadrinistas, mas, de acordo com Érico Assis, nesse álbum em específico, as ilustrações ficaram mais a cargo de Bá.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

BRAVOS & AUDAZES DE ONTEM, HOJE & AMANHÃ

Até que se prove o contrário, todo leitor engajado é um corneteiro capaz de emprestar o gogó à trombeta do apocalipse. Quer dizer, dentro de sua mente, se encontra as soluções para que uma editora saia criativa e financeiramente do buraco, o melhor line-up em um título, as mudanças que precisam ser feitas, seja avançando alguns passos, seja voltando outros.

Se eu fosse editor da DC Comics, confesso que seria uma espécie de capricho pessoal a luta pela manutenção do título O Bravo e o Audaz (The Brave and The Bold) nas solicitações dos lojistas, inclusive sob pena de reiterados fracassos de vendas. Quem tem alguma intimidade com a trajetória do Universo DC, sabe que diversos medalhões saíram daquelas páginas; como, por exemplo, o Esquadrão Suicida original (#25), a Liga da Justiça (#28), o Gavião Negro (#34), os Titãs (#54) ou o Metamorfo (#57).

Num mundo perfeito em que, no final das contas, sem importar tantos as conta$, sempre seria a liberdade criativa que vigoraria. Assim, um quadrinho que permitisse às equipes criativas uma chance de manipular personagens de um universo ficcional, fossem eles populares ou obscuros, indubitavelmente, ter-se-ia em mãos (sempre) um belo produto. Sei que não é desse jeito que a banda toca, mas, se eu tivesse voz e poder, O Bravo e o Audaz seria tombado como patrimônio histórico da DC Comics tal como são Action Comics e Detective Comics.

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A primeira encarnação do título (1955-1983) durou exatas duzentas edições e serviu de palco para verdadeiros monstros dos quadrinhos, entre eles, Robert Kanigher, Gardner Fox, Joe Kubert, Bob Haney, Neal Adams e Jim Aparo[1]. Já uma de suas versões mais recentes (2007-2010) fechou as portas com trinta e cinco números, sendo os últimos nove sob a chancela do roteirista J. M. Straczynski

É de conhecimento comum que o curto período em que o autor colaborou com a DC Comics foi tão conturbado quanto seus últimos instantes na Marvel. Vendo hoje a coisa em retrospectiva, até que entendo o lado do autor, mesmo que seja bastante amargo confiar numa série em que o capitão do barco tem o hábito de pular fora antes de seus passageiros. Controvérsias à parte, fato é que um currículo com O Povo da Meia-Noite, Poder Supremo e Surfista Prateado: Réquiem ainda têm cacife para comprar e sustentar sua credibilidade com o leitor.

Sua passagem por O Bravo e o Audaz senão é um de seus trabalhos mais inspirados, pelo menos entrega um produto digno dos melhores dias da revista. E isso, pelo menos para mim, foi o suficiente. No Brasil as edições que compreendem essa fase foram publicadas entre maio de 2010 e julho de 2011 na extinta Dimensão DC: Lanterna Verde #21-23, 31-35. Em agosto de 2011 foi lançada uma compilação que reproduziu na íntegra as edições originais (#27-35) sob o nome Team-ups of the Brave and the Bold. Como fã, não custa sonhar com um lançamento nacional desse encadernado[2].

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A morte de um herói (#27) → Ao furtar objetos de hóspedes de um quarto de hotel em Gotham, um bandido fajuto acaba se deparando com o artefato alienígena conhecido como Disco-H[3]. Similar a um disco de telefone analógico, o mesmo traz consigo dez símbolos que equivalem a letras do alfabeto terrestre. Ao girar o dispositivo, o indivíduo é instintivamente levado a discar a palavra “Herói”, o que lhe garante por 24hs o manejo de habilidades especiais e indumentárias a cada nova transformação. No conto em questão, Straczynski resgata das páginas de House of Mystery #156, o usuário original – e vítima do furto –, o adolescente Robby Reed. Por outro lado, Travers Milton, o gatuno que acaba acessando o poder do Disco-H, vive seu momento de redenção ao auxiliar o Batman em uma onda de crimes sincronizados e idealizados pelo Coringa.

Na linha de fogo (#28) → Numa visita com fins científicos à cidade de Bastogne, Bélgica, Barry Allen utiliza seus dons para ajudar um pesquisador local em um experimento com a velocidade da luz. Contudo, quando o feixe de luz e o monitor de medição interagem com sua frequência vibracional, o Flash é sugado por um vórtice que o faz voltar no tempo, arremessando-o precisamente no combate que deu notoriedade àquela região. Na ocasião, Barry acaba interferindo no conflito, deixando de lado sua identidade heroica para atuar como soldado ao lado dos Falcões Negros. No gibi, ele se machuca e passa um tempo até se recuperar; nesse ínterim, a dura realidade da 2ª Guerra Mundial se impõe frente ao seu juramento de não matar.

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Apostaria um frasquinho de chucrute que o longa animado da Sociedade da Justiça (2021), ambientado na 2ª Guerra, valeu-se exatamente desse enredo.

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Histórias perdidas de ontem, hoje e amanhã (#29) → O conto reapresenta o Irmão Poder, personagem que Joe Simon (Capitão América) criou no final da década de 1960 como um boneco de pano que ganha vida de modo similar ao Frankenstein de Mary Shelley. O que há de mais intrigante no personagem reside no fato de que, tal como Solomon Grundy[4], o Irmão Poder é também um Elementalimperfeito”, simbolizando, nesse último caso, um totem das representações humanas em objetos. O caminho do boneco em questão – nessa versão, um manequim – cruza com o de Batman. No Brasil, a Panini republicou na coletânea Dias da Meia-Noite, de Neil Gaiman, uma história do Monstro do Pântano, “Irmãos”, estrelada pelo Irmão Poder no contexto da Vertigo.

O verde e o dourado (#30) → Considero não apenas a melhor dessa sequência, mas provavelmente uma das melhores histórias de super-heróis já escritas por Straczynski. E interessante que a narrativa se aproveita de uma deixa que ficou em banho-maria desde 1987 no desfecho do primeiro arco de histórias da LJI (#7) de Giffen, DeMatteis & Maguire. O team-up em foco ocorre quando Hal Jordan se vê acuado em um planeta sem vida, mas ao subestimar seu sistema defensivo, esgota praticamente toda a carga do anel energético e só Kent Nelson pode ajudá-lo. O problema é que o Senhor Destino original havia morrido há vários anos. Fino!

Pequenos problemas (#31) → Considero não apenas a pior dessa sequência, mas provavelmente uma das piores histórias de super-heróis já escritas por Straczynski. Sem piada, um remake de Viagem Insólita com Ray Palmer, tentando salvar a vida do Coringa, chega a ser mais inverossímil que o controverso Advogado do Diabo. Quer dizer, dá para relevar um Batman, amparado por um forte imperativo moral, tentando provar a inocência do arqui-inimigo num caso em que o vilão realmente não cometera um crime. Agora, esperar boa vontade dos outros numa missão para curá-lo de uma enfermidade...?! Pois é.

Deuses da noite (#32)Jesus Saiz tem um traço elegante, bem aprazível aos olhos míopes desse velho leitor. É daqueles artistas que se espera que algum dia consiga uma colaboração que faça justiça a seu lápis, do mesmo modo como foi para Eduardo Risso com Brian Azzarello ou Tim Sale com Jeph Loeb. Para que uma parceria dessas surja e fique estampada no córtex alheio, é necessária a cominação de muitos fatores, mas o elemento sorte, indubitavelmente, me parece despontar na dianteira. A história dessa edição é visualmente impecável, mas se você já leu Namor: As Profundezas, de Peter Milligan e Esad Ribic, sabe que aquela conjunção inusitada de forças entre Aquaman e Etrigan poderia ter rendido mais.

Para piorar, nunca fez sentido para mim o uso de balões de diálogos no meio aquático, ou melhor, o fato dos atlantes vocalizarem dentro d’água como se estivessem na superfície.

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Off-topic, mas nem tanto:

Logo, por mais instigante que seja o roteiro, ao se ignorar o fator comunicação submarina, a história sofre um revés na suspensão de descrença. Pareço bobo, eu sei, mas desculpa, não dá. Claro, tem sempre o risco de que o Maravilhoso em Aquaman remete - por que não? - ao maravilhoso literário, das fábulas e contos de fadas, onde o sobrenatural pode ser factível porque o leitor abraça a convenção da narrativa; o que torna inteligível a existência do impossível, como o caso de animais falantes.

Entretanto, creio que um criador poderia pensar em alternativas mais práticas. Um bom exemplo está na Liga do Zack Snyder, mais precisamente quando Mera cria um bolsão de ar para conversar com Arthur. Outra solução seria usar a telepatia do Aquaman – dirigida à fauna marinha – para se comunicar com seus semelhantes. Nesses dois casos, já renderia um bom caldo de peixe.

Na verdade, não raro, nos deparamos com recursos narrativos que driblam limitações vocálicas dos personagens, entregando quadrinhos sofisticados, que transformam o portador de necessidades especiais em alguém que tem bastante a dizer, mas de um jeito pouco usual.

Para fundamentar isso, vou usar o Clint Barton de Matt Fraction que, em determinado momento, fica surdo e passa a se comunicar por linguagem de sinais; o roteiro de Matt Fraction vai até mais longe com Lucky, o cão de Clint, que tem balões simulando via símbolos como ele, supostamente, compreende o mundo ao seu redor. Com Raio Negro, o buraco é até mais embaixo, já que se trata de personagem cujo poder destrutivo da voz impele um automutismo que, se bem aproveitado, rende até Eisner; e no cinema, Oscar de melhor filme. Esse tipo de contexto, que desafia convenções linguísticas e/ou se adapta às dificuldades sensoriais dos falantes, tem cacife para oferecer uma experiência única, fora da caixinha – ou do aquário.

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A noite das mulheres (#33) → Como sugere o título da história, o team-up aqui parte de um happy hour entre Batgirl, Mulher-Maravilha e Zatanna. Essa noite é justamente a da véspera de A Piada Mortal, o que a marca pelos extremos do dia seguinte: em 24hs, Barbara vai de um dos momentos mais felizes da vida para, indiscutivelmente, o seu pior.

Fora do tempo (#34-35) → São dois “one-shots” que se complementam: o primeiro une os três legionários originais, Garth Ranzz (Relâmpago), Rokk Krinn (Cósmico) e Imra Ardeen (Satúrnia) com a Patrulha do Destino; já o segundo, une – ou melhor, passa perto de “unir” – os dois primeiros grupos com a Legião dos Super-Heróis Substitutos e o Quinteto Inferior.

Basta dizer que essa última edição (#35) é uma das mais engenhosas e divertidas tramas de viagens temporais que já tive a oportunidade de ler, sendo, também, por que não, (mais) um canto do cisne para a revista, ainda que irreverente.

Não custa lembrar que isso só ocorreu por não ser eu quem dá as cartas na DC.

[1] A Panini publicou uma coleção de Lendas do Cavaleiro das Trevas com parte da trajetória do Batman ilustrado por Aparo, sendo que a maioria absoluta das edições compiladas perpassa exatamente a produção desse artista em O Bravo e o Audaz.

[2] Custou um pouco e o custo está bem salgado, mas, no dia da atualização desse texto, 2 de abril de 2024, está em pré-venda na loja virtual da Panini o respectivo encadernado.

[3] Em 2003, o roteirista Will Pfeifer esteve a frente de um ótimo revival desse conceito. Uma pena que não chegou a sair no Brasil por meios oficiais.

[4] Grundy é um Elemental "imperfeito" da Terra, posto, por sinal, ocupado pelo Monstro do Pântano.