Mais que uma locação onde o arquétipo herói vivencia sua rotina, a urbe de Batman, Gotham City, com o tempo e a alternância das equipes criativas, se tornou quase um personagem à parte na mitologia do personagem. Um organismo vivo que entre arranha-céus e camadas de concreto armado, corroídos e esquecidos pelo tempo, absorve a essência dos seus munícipes. Assim como a Central City de Will Eisner, cidade de Spirit, combatente do crime mascarado, alter ego de Denny Colt, e tantos outros personagens secundários, Gotham transcende o conceito de cenografia e passa a se estabelecer como um formato. Um formato ideal para tecer contos poéticos de seres marginais na grande metrópole.
Fã confesso que sou do Eisner, foi irresistível não cometer a heresia de relacionar sua urbe maior – depois de Nova Iorque, vai?! – com uma Gotham sob a perspectiva de Scott Snyder, atual roteirista do título homônimo e carro-chefe de Batman. Quer dizer, nas narrativas desse escritor, fica visível a olho nu toda a sorte de implicações e privações que os gothamitas têm que se desvencilhar no cotidiano para vencerem incógnitos às armadilhas da própria cidade. Abraçado pela crítica especializada e alçado ao nível de clássico instantâneo, seu debute, o arco Espelho Sombrio, sobressaiu todos os superlativos possíveis e imagináveis.
Publicado originalmente na revista Detective Comics entre as edições nº 871-881 em 2011, saiu no Brasil pela finada A Sombra do Batman nº 18-23 (1ª Série).
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Com a colaboração dos artistas, Marc "Jock" Simpson e Francesco Francavilla, Snyder construiu em o Espelho Sombrio uma ode à Gotham City, lidando especificamente com as idiossincrasias das personas vividas por Dick Grayson e James Gordon, relativizando suas desventuras particulares ao campo magnético soturno que os limites da cidade exerce sobre seus habitantes. Para tanto, uma subtrama salta aos olhos, costurada em meio a dois enredos: 1) um sobre leilões dirigidos a aristocratas das classes abastadas, ofertando-lhes artigos exóticos e utensílios outrora manejados pelo casting de antagonistas de Batman, e 2) o outro em relação às ameaças que uma banqueira vem recebendo por ser filha de Tony Zucco, um mafioso de estirpe e assassino confesso dos pais de Dick.
Já na referida subtrama, esculpida à conta gotas em histórias curtas ilustradas por Francavilla, somos reapresentados a um personagem clássico que nasceu, literalmente, no Ano Um de Frank Miller e David Mazzucchelli. Estou falando de James Gordon Júnior, o primogênito do Comissário Gordon, nascido nas páginas daquela obra seminal e alvo do atentado que tomou o clímax da história. Não lembra? Aquele bebê que fora arremessado da ponte por Johnny Falcone e apanhado por Batman à luz do dia e à paisana. De lá para cá, parece que ninguém nunca havia se dado ao trabalho de contar o que havia ocorrido com o guri, e talvez seja por isso que a história nova te pega no pulo.
Jimmy reaparece em Espelho Sombrio já como um jovem adulto, encarado com desconfiança e temor pela própria família. Não sem razão, na intimidade, o Gordon caçula é uma representação tridimensional tão perturbadora da maldade que ele teria cacife para ficar numa mesma mesa de boteco com o Coringa e o Zsasz. Detentor de um histórico assustador, Jimmy é a exacerbação do termo "ovelha negra", sendo que seu estado mental era uma velha pulga atrás da orelha do Comissário Gordon, dada a violência da célebre queda e a possibilidade daquilo ter interferido na química cerebral do recém-nascido. Vai saber?
Suposições à parte, o mote desse regresso também traz à tona feridas nunca cicatrizadas, tanto do pai, quanto da meia-irmã, Bárbara, e levadas às últimas consequências no magistral conto Garotos Perdidos, publicado em Detective Comics nº 875. Brincando com a percepção do leitor, Snyder divide a história em duas frentes, quais sejam: uma, na infância, em um distante final de semana em família numa casa de campo; e a outra, confrontando os instintos policiais de Gordon sobre o desaparecimento de uma amiga de Bárbara no período anteriormente relatado e um caso de arquivo morto.
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Off-topic, mas nem tanto:
No arco Lealdades, de John Ostrander e David Lopez, publicado em Legends of the Dark Knight nº 159-161 – inédito no Brasil –, temos um vislumbre que sugere outro trauma da infância de Jimmy. Trata-se de um conto ligeiramente posterior a Ano Um, no qual apresenta a premissa que levou à adoção da sobrinha Barbara Gordon – então filha de Roger, irmão mais novo do Comissário. Ambientada em Chicago, o enredo mostra a futura Batgirl levando a vida ao lado de Jennifer, a mãe enviuvada, àquela altura tomada pela depressão. Um fato, no entanto mudou completamente a relação da menina com o tio.
Ela foi testemunha ocular de um crime que implicava Hatchett, um gangster local, e só quem conhecia a identidade da denunciante era o próprio Jim. Às vésperas do julgamento, o detetive capitão do DPGC é capturado e sofre tortura para revelar quem era o tal dedo duro. E aí mesmo quando a esposa e o filho pequeno são ameaçados, ele não quebra diante do que estava em jogo e mantém-se firme; algo que choca a mãe de Jimmy e, entregue ao desespero, a faz entregar o nome de Barbara. Quase que paralelamente, Jennifer, dopada com antidepressivos, sofre um acidente de carro e morre.
Ao fim, o casamento de Jim Gordon termina e a filha do seu irmão passa a ficar aos seus cuidados em Gotham. Olhando agora para a história de Snyder, é difícil não imaginar que Jimmy, em tão tenra idade, não tenha crescido com a imagem de um homem sendo executado a sangue frio bem na sua frente, com o pai nu e acorrentado logo ao lado.
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A ambiguidade moral aliada a uma imprevisibilidade crônica faz de Jimmy um verdadeiro enigma a ser decifrado não só pelo pai, mas também por nós leitores que ficamos paralisados frente à angústia de embustes recheados de psicologia reversa. Mais a frente, nossa percepção é novamente testada quando se é sugestionado pelo próprio serial killer que teria sido ele o catalisador da fatalidade advinda em A Piada Mortal de Alan Moore e Brian Bolland. Segundo o próprio, além de ter informado o endereço de Bárbara ao Coringa, ele diz que lançou no ar a ideia de condená-la a uma cadeira de rodas. Claro que não dá para interpretar isso ao pé da letra, já que dada a psicopatia do personagem, isso soa mais como sadismo gratuito.
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Figurinha fácil nas listas de melhores histórias do Batman, curiosamente, Espelho Sombrio não é sobre Bruce Wayne e, sim, sobre o seu primeiro protegido. Afinal, no período em que fora publicada, estava em curso uma fase encabeçada por Grant Morrison onde o morcego assumia uma faceta empreendedora: ele percorria o globo em busca de nações onde o crime estava fora de controle e investia em indivíduos com potencial para ser o “Batman” local. Então, enquanto o original estava fora nessa turnê mundial, Grayson era, portanto, o Batman de Gotham City.
Penso que essa história acabou sendo uma das maiores provações do Robin original e, hoje, para fins de continuidade, dada as regressões ou inconsistências temporais recentes, não sei dizer se Espelho Sombrio e seu “psicopata americano” ainda existem para fins de Novos 52 e além. Traduzindo: Jimmy, tal como um gato assustador, talvez tenha (ou não) entrado de volta numa caixa de Schrödinger.
Um dia, quem sabe, ele volta. Para o bem dos leitores, para o mal dos personagens.
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