quarta-feira, 27 de novembro de 2024

FRACASSO DE PÚBLICO

De nossa última transmissão para cá, eu voltei com o rabo entre as pernas para o Twitter, Trump[1] venceu a agenda “woke”, trinta e poucos aloprados foram indiciados, provou-se que Putin é um robô e, no lado de cá, preciso admitir que fui fraco e curti Absolute Batman nº 1. Me sinto tão mal com isso que, toda vez que fecho os olhos, vejo um Dennis O’Neil cabeludo me julgando.

Sim, parece que estava de férias do blog, sem redigir nada, mas foi justo o contrário. Recentemente, no lado d’os Escapistas, nós concluímos as gravações da nossa série dedicada ao Starman. No total, para vencermos as oitenta edições, especiais e minisséries, foram necessários oito episódios; separados por meses e até anos para concluirmos tudo. Enquanto dura essa fase de (re)leituras, pesquisa, anotações, redação de pautas e, finalmente, o plugue conjunto de microfones com o elenco, os brutos já produzidos ficam salvos e intocados. Com a minha paranoia, mantenho tudo em HDs externos, DVDs de dados e drives na nuvem.

Consequentemente, a solitária fase de edição e tratamento dos áudios só começa quando me dou por satisfeito nesses atos preparatórios. A “pós-produção” já foi mais light, e agora me demoro demais justo pelos dissabores oficiosos da vida cotidiana. O déjà vu não é por acaso, visto que sempre entro numa espiral doida de mau humor quando uma série, de fato, conclui, tendo publicado todos os episódios. Dessa vez, acrescentei um ingrediente à mistura que piorou minhas crises existenciais.

Guarde esse pensamento.

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Não sou o maior fã de Chip Zdarsky. Em termos de Batman, eu acho que ele tem entregado se não o pior, certamente um dos piores runs que já li do personagem. Dos Novos 52 para cá, não tenho a menor dúvida. É o pior.

Posto isso, nesse meio-tempo que sumi, encarei Domínio Público, uma obra totalmente autoral desse roteirista/desenhista. É outro Zdarsky. Um que te dá a exata noção do mal-estar que atravessa a atual geração de criadores em meio a editoras majors. O temor de, inadvertidamente, criar um “Soldado Invernal” e ter que lidar com as mesmas frustrações que Ed Brubaker.

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Se estavas em Marte em 2021, à época da estreia da minissérie de Sam & Bucky no Disney+, Brubaker fez um desabafo na sua newsletter, a princípio rasgando elogios as pessoas de Anthony Mackie e Sebastian Stan...

[...] mas, ao mesmo tempo, na maior parte, tudo o que Steve Epting e eu recebemos por criar o Soldado Invernal e seu enredo é um 'obrigado' aqui e ali, e ao longo dos anos isso se tornou cada vez mais difícil de conviver. Vi até altos escalões do lado editorial tentando levar o crédito pelo meu trabalho algumas vezes, o que foi bem irritante (para deixar claro, NÃO estou falando de Tom Breevort, que foi um ótimo editor e muito prestativo). Então, sim, sentimentos mistos, e talvez seja sempre assim (mas espero que não). Trabalho por encomenda é o que é, e sinceramente estou emocionado por ter cocriado algo que se tornou uma parte tão grande da cultura pop - ou mesmo da subcultura pop com toda a ficção slash Bucky-Steve - e aquela temporada no Cap, enquanto fazia quadrinhos de super-heróis, foi um dos momentos mais felizes da minha carreira. Além disso, tenho uma ótima vida como escritor e muito disso é por causa do Cap e o Soldado Invernal trazendo tantos leitores para meus outros trabalhos. Mas também não posso negar que às vezes me sinto um pouco enjoado quando minha caixa de entrada enche de pessoas querendo comentários sobre o programa."

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Voltando para o presente, ou melhor, para Domínio Público, o enredo de Zdarsky vai ao encontro exatamente desse medo contemporâneo de não ser dono do seu trabalho. Na realidade, esse nem é o dilema do desenhista Syd Dallas. É o da esposa e dos filhos, que descobrem que um super-herói criado na juventude do artista, ao contrário do que acredita a multinacional que o explora economicamente, pertence ao seu marido/pai.

Adoraria falar mais sobre, mas para os fins desse texto, o que ficou de verdade comigo foram três páginas. Elas mostram que Syd, mesmo sabendo a verdade, teme o alvoroço jurídico e o entrechoque com os publishers, dos quais sempre nutriu uma relação profissional amistosa. Contudo, o que ele não percebe é que o seu trabalho teve um alto custo na vida pessoal, e quem pagou a conta foram os entes queridos. Então, lutar pela aquela propriedade intelectual é um dever por aqueles que sempre estiveram no andar de cima, aguardando pacientemente [ou não] o término daquelas artes:

Taí... O Zdarsky me pegou nessa. Tanto que não tive como não trazer para minha própria realidade. Quer dizer, quantas vezes me peguei diminuindo o valor do meu trabalho, seja o oficial, que lida com os boletos, seja o que faço n’os Escapistas...?! E eis que, na esteira de Domínio Público, quando faço isso, percebi que não sou o único que está pagando essa conta, são as pessoas que contam comigo.

É sempre o problema de precificar algo tão do nosso cotidiano, que sequer imaginamos que do outro lado, quem está produzindo, encara aquilo como um trabalho e ficaria muito feliz que sua tapinha nas costas lhe rendesse alguns trocados. Inclusive, pensei nisso enquanto lia o e-mail do Érico Assis, tentando motivar os leitores de sua newsletter a pagar por uma assinatura. Acho justíssimo.

Por aqui, queria ver também se conseguia levantar um tutu para arcar com alguma despesa d’os Escapistas, e a forma que arrumei foi utilizar minhas anotações e materiais de pesquisa como encartes dos programas. Na estreia de Starman – nesse momento com dois episódios publicados –, lancei esses encartes como E-Books do Amazon Kindle. Cada um dos oito podcasts acompanhará um encarte do que chamei de Noites Estreladas.

Foi isso que me afastou do Pulse. A edição dos programas e a reescrita[2] dessas anotações. Algo que vem me consumindo... e me frustrando mais do que o habitual. Por que motivo, você me pergunta. Porque nossa audiência é razoável para um podcast de quadrinhos, e pior que isso, um podcast completamente especializado, que foca em séries longas e passa até meses sem que outra se inicie.

Um episódio nosso tem em torno de 600... 800 plays. Um número irrisório para um canal de YouTube, mas para o nosso microcosmo, é até uma audiência razoável. Não raro, Os Escapistas figura nas paradas nacionais do seguimento Hobbies; vale dizer, até em paragens internacionais, ganhando algum destaque entre nossos irmãos lusitanos.

Logo, vejam meu raciocínio: cada um dos Noites Estreladas custa apenas R$ 2,00. Vamos combinar que é um valor simbólico, do qual faço questão de mencionar que funcionaria como um apoio ao programa, já que não temos condições de manter uma campanha de financiamento em Catarse ou congêneres. Para ser franco, foi o único meio que consegui viabilizar para arrecadar algo, tendo em vista que a periodicidade é bem esporádica, quase como se fizéssemos séries/antologias documentais sobre temas específicos. Também não é algo que mudará minha vida financeira, tampouco conto com isso, mas dá um trabalho daqueles.

Nos dois primeiros programas, faço questão de pedir com todas as palavras o apoio do ouvinte que gosta do nosso podcast.

No dia 27 de novembro de 2024, esse é o número (provisório) de vendas dos dois Noites Estreladas juntos:

Essa é a dimensão do meu fracasso de público.

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O fato é que o negócio é praticamente de graça e ninguém deu bola. O ego dói um pouco... Ok. Dói muito. Se está assim no começo, deve ir até o final sem [quase] ninguém interessado, muito embora, em respeito a esse quinteto de boas almas, irei até o final, publicando todos os oito encartes. Só não garanto que voltarei mais a produzir podcasts. Na minha cabeça, Starman será a última série d’os Escapistas.

Meu momento “Syd Dallas” foi quando me vi no dia do aniversário, editando o podcast e o texto do encarte... E de algum modo, me senti incomodado porque ia sair sem concluir os trabalhos, sendo que, naquele instante, minha família me aguardava para comemorar esse natalício. Foi ali que a ficha começou a cair.

Não vale a pena. A conta não fecha. É hora de fechar. É hora da última escapada.



[1] O que não me diz nada, ou melhor, até diz, mas sigo na toada do Paulo Coelho.

[2] Longe de mim me comparar ao grande Moacyr Scliar, mas me lembrei desse trecho enquanto reescrevia meus garranchos: “[...] A ideia que as pessoas têm é que o escritor é um cara que escreve com tremenda facilidade, que vai botando as palavras. Mas não é assim. O escritor tem essa facilidade, mas, ao mesmo tempo, ele tem um nível de exigência que o comum das pessoas não tem. Vejo pelos e-mails que escrevo. A pessoa escreve uma frase, pode não estar bem escrita, mas tudo bem, porque serve para transmitir o pensamento dela. O escritor não se contenta com isso. Ele quer transformar a palavra num instrumento de criação estética, e isso exige um esforço. Daí a necessidade de reelaborar. Garcia Marques, em O outono do patriarca, reescreveu 16 vezes o primeiro parágrafo. E eu mesmo, na Zero Hora o pessoal me conhece, reescrevo muito. Mando a minha matéria, aí releio e penso: isso aqui eu podia melhorar. Aí melhoro, mando de novo, e digo, vale essa, aí mando uma terceira vez. E eles já estão acostumados. Jornalista, geralmente, não faz isso, escreve e manda. Tem muitos editores que tiram as obras dos escritores: “chega de mexer”, dizem. Na verdade, escrever é reescrever."

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

30 SEGUNDOS

Pelos últimos textos, dá para perceber que ando numa fase meio niilista, com um humor ranheta típico de quem aprecia o inverno de Northampton e agora é verão na cidade. Talvez por isso esteja me voltando tanto para o Noir e/ou historinhas mais urbanas, pessimistas até. Quer dizer, setembro mal chegou a metade e, fazendo um balanço parcial, tudo o que consumi, basicamente, foi nessa toada.

A começar por Fogo contra Fogo (Heat, 1995), de Michael Mann. Uma reprise que, até então, acredite ou não, jamais havia feito. Dá para dizer que, depois de tanto tempo, foi como ver o filme pela 1ª vez, já que lembro vividamente de alugar a fita VHS quando ainda era lançamento; talvez em 96? Enfim, acho que as quase três horas de projeção foram o que chamam de experiência religiosa. E não errei na colocação do substantivo: foi projeção mesmo![1]

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As linhas gerais do enredo ainda estavam intactas na memória: uma quadrilha altamente especializada, liderada pelo ladrão mestre Neil McCauley (Robert De Niro), é caçada pela unidade de crimes especiais de L.A, sob a supervisão do detetive-tenente Vincent Hanna (Al Pacino). Por outro lado, toda a argamassa entre esses dois, já havia se esfarelado na cachola e tornou a experiência em algo novo. Logo, as relações que os dois antagonistas constroem – e/ou destroem –, quase no nível de um seriado de TV, dada a pressa inexistente para desenvolvê-las, são coisas que ficaram comigo.

" Hanna era assombrado por sonhos, cadáveres em uma mesa comprida olhando para ele. Eles ficaram em silêncio. A aparência deles impunha obrigações, mas McCauley não reconhecia obrigações. Ele tivera sonhos nos quais não conseguia respirar, estava se afogando. Talvez estivesse ficando sem tempo, sugeriu Hanna. Eles eram iguais, porque sabiam que a vida era curta, nós somos pegadas em uma praia esperando a maré subir. E cada um navegava pelo futuro que vinha em sua direção com os olhos bem abertos. Sensíveis, opostos em algumas questões, eles eram iguais na compreensão de como o mundo funcionava, livres de ilusões e autoengano. Ao mesmo tempo, cada um explodiria o outro sem hesitação. Eles também sabiam disso. Mas aquilo poderia nunca acontecer. Eles poderiam nunca mais se ver. "

Da metade para o clímax acachapante, McCauley está decidido a buscar uma vida mundana, tratando o roubo final como seu último trabalho, mas joga tudo para o alto quando cai na provocação de Hanna e deixa-se levar pelo próprio ego. Já Hanna não poderia estar mais longe da normalidade, vendo o trabalho sepultar outro casamento (3º). Ambos são obsessivos natos, tão gigantes que sequer cabem juntos dentro da telona. E não cabem mesmo. Mann jamais enquadra o ladrão e o policial num mesmo plano. Jamais. Isso é incrível.[2]

O mantra do criminoso era sair em trinta segundos caso sentisse o fogo inimigo dobrar a esquina. Nate o lembrou disso. Hanna poderia cometer erros, poderia acertar ou errar. Neil não poderia se dar ao luxo de errar uma única vez.

Curiosamente, o mantra de McCauley é testado por Hanna, exatamente quando ele se vê com a (futura) ex-esposa no hospital, numa vigília pela enteada que acabara de salvar de uma tentativa de suicídio. O seu bip toca e ela, pelo hábito da vida a dois, sabe que é um chamado e Hanna, fatalmente, não aguentaria e iria atendê-lo. Eu não voltei para cronometrar a passagem, mas gosto de pensar que a cena não dura mais que trinta segundos. Assim, o mantra de McCauley vale não apenas para a iminência de ser preso, mas, sim, de não se apegar a nada que levasse trinta segundos para largar e fugir.

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No fim das contas, foi esse o erro de McCauley, de passar mais que trinta segundos para desapegar. E nem me refiro a Eady (Amy Brenneman), o interesse amoroso que, supostamente, o levaria à vida mundana na Nova Zelândia. A derrocada foi ignorar os instintos e ir, resoluto, para a armadilha que a polícia montou em torno de Waingro (Kevin Gage). Uma ponta solta que ficou atravessada num nível que impele McCauley a se desviar do final feliz, rumo ao avião da fuga, e ir ao hotel matar o ex-colaborador/serial killer/dedo-duro.

E aí... Bem, não sei se acontece com vocês, mas sempre que estou lendo algo, talvez por sincronicidade, algumas coisas passam a tangenciar outras. Ocorreu agorinha enquanto lia Parker: The Outfit, de Richard Stark, mais precisamente quando o protagonista deixa transparecer algo que, em tese, talvez batesse com a mecânica de um Neil McCauleuy mais jovem:

" Foi um sinal ruim quando um homem como Handy começou a possuir coisas e começou a pensar que poderia se dar ao luxo de ter amizades. Posses amarram um homem e amizades o cegam. Parker não possuía nada; os homens que ele conhecia eram apenas isso, os homens que ele conhecia. Eles não eram seus amigos e não possuíam nada... Quando um homem como Handy começou a ansiar por posses e amizades, isso significava que ele estava perdendo a dureza. Foi um mau sinal. "

Essa dureza de Parker parecia estar ali no comecinho de Fogo contra Fogo, de McCauley não carregar bagagem. De McCauley simplesmente ser como uma rocha – ou os metais que estudava para um golpe – ou uma montanha ou uma lei da natureza. Um bom exemplo da "materialização" desse vazio existencial está no(s) apartamento(s). McCauley tem nada menos que uma geladeira e a vista para o mar; Hanna, uma TV de 19" polegadas. São homens experientes que, embora corroídos pelo Nada, seguem em frente... inexoráveis. Por outro lado, olhando em perspectiva, é engraçado pensar em De Niro e Pacino como dois homens velhos, sendo que, à época, o primeiro tinha 52 anos e o segundo, 55; e ambos estavam inteiraços.[3]

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A propósito, os excertos em prosa sobre Fogo contra Fogo pertencem a sequência romanceada pelo mesmo Mann, e ladeado da escritora Meg Gardiner. A história do livro começa poucas horas depois dos acontecimentos do filme e, por incrível que pareça, faz quase dois anos que foi lançado no Brasil. Digo isso porque me enquadro no público-alvo e não lembro de ter visto qualquer divulgação. Como o diretor pretende filmar a continuação, é questão de tempo até que o romance comece a atrair a atenção de Booktubers & derivados. 

De todo modo, se vale de alguma coisa, estou lendo Heat 2, alternando com Parker... Logo, meu Noir interior tá saindo pelo ladrão.

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[1] Comprei um mini projetor e, desde então, tudo virou cinema em casa.

[2] A foto que ilustra e encabeça o post é puro bait. É de bastidores.

[3] Sendo franco, estão melhores que eu, com 42. Porra... Preciso cuidar melhor da carenagem.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

RÉQUIEM PARA OS MEUS SUPER-HERÓIS

Com a abstinência do Twitter, estou redescobrindo que antes de ser um tuiteiro aplicado, eu costumava usar esse blog como um espaço de descarrego. Não exatamente como cantilenas vazias, mas para comentar rapidinho o que estou assistindo, lendo e, claro, a inquietação do momento. Lógico que, com 280 caracteres, o papo lá era reto, retíssimo... Ainda assim, ao longo dos anos, deixei vários insights[1] que, hoje, por estarem inacessíveis, me arrependo bastante de não tê-los salvo num bloco de notas mínimo. Um erro que não cometerei mais. Ou irei de um jeito diferente e estranhamente parecido. De todo modo...

Apartar-se inteiramente da sua própria espécie é impossível. Para viver no deserto é preciso ser santo.[2]

✨✨✨

Nós nos achamos imortais. Compramos pilhas e pilhas de gibis, alguns dos quais, com dimensões e pesos que inviabilizam até mesmo suas leituras com alguma dignidade e ergonomia. O imediatismo ou a mera certeza da invencibilidade não dá chance para cogitar se, num futuro próximo/distante, sequer teremos condições de, por nossas próprias forças, retirar volumes assim da estante. Aliás, caso a (remota) possibilidade de virarmos ração de verme se concretize, só peço que Deus tenha piedade dos nossos entes queridos.

No meu caso, além do lugar onde moro, possuo caixas e mais caixas de quadrinhos acondicionadas na casa da minha mãe e sogra. Quer dizer, no dia que eu me for, tenho certeza que meu bom nome seguirá sendo profanado por um tempinho. Mas conjecturas mórbidas à parte – batam na madeira! –, no alto dos meus 42 anos, confesso que estou começando a olhar com outros olhos para a existência física de tudo aquilo que sempre gostei de ler ou ver e manter comigo aqui, à distância do braço.

Paradoxalmente, isso passa pela inversão da história do vazio de William King, de que os indivíduos colecionam objetos ante a necessidade de preencher vazios interiores, às vezes, por causa de experiências de vida negativas, outras vezes para sobreviver num mundo que considera hostil[3]. Por que falei em inversão? Porque sinto que meu próprio vazio já começou a transbordar e precisa ser esvaziado. Ou, caso contrário, não precisa mais ser preenchido, ao menos não no sentido físico.

Eu me peguei pensando nessas coisas enquanto lia Nêmesis, de Isaac Asimov. Não que o livro trate desse tipo intermitência da morte – ou será que trata?[4] –, mas enquanto o devorava ocorria o mais recente Prime Day e, com ele, vi promoções bem sedutoras em torno das coleções da Fundação, Série dos Robôs e Império. E aí, por reflexo, coloquei os (quatorze) livros no carrinho. Quando estava na iminência de pagar, parei e pensei comigo mesmo: “eu paguei e li todos via Kindle, por que preciso tê-los na estante?”.

Antes não os tivesse lido. Antes tivesse acabado de assistir a O Mundo Depois de Nós, e me apavorado com uma existência sem mídia física. Não é o caso, e não me assusto fácil. O período em que esses pensamentos começaram a tomar de assalto meu cotidiano coincide com a época em que estava concluindo a leitura de Starman. O arco de despedida de Jack Knight abriu um rombo no meu peito e preencheu todos os vazios super-heroicos que ainda teimavam em existir.

Senti como se eu fosse o Névoa e o próprio Ted Knight estivesse me levando embora. Contudo, em vez de explodir lá em cima, na estratosfera, sigo aqui embaixo. Isto é, no lugar mais baixo que já estive como gibizeiro, comprando as Sagas[5] que coleciono com uma má vontade daquelas; pechinchando os volumes de Lúcifer com o risco de vê-los esgotados; e – acredite se quiser – até um pouco enjoado da mídia como um todo.

Obviamente, deve ser algo passageiro, o que não muda o fato de que, agora, em 4 de setembro de 2024, eu sinta que fui embora junto com Jack. Sim, quando virei a última página de Starman nº 80, apagou uma luz e algo me dizia que, em matéria de super-heróis, nada mais precisava ser dito. A partida de Jack, resolvendo todas as pendências em Opal City, dirigindo-se para uma nova vida em São Francisco, é uma metáfora que grudou em mim.

Caracterizado como um outsider num mundo ficcional, Jack começa Starman como um super-herói relutante, aceitando o legado de família desde que o pai, Ted, use a expertise em energia cósmica para criar coisas úteis à sociedade. Com o tempo, ele aprende a curtir a experiência, faz vários amigos, alguns poucos inimigos e até realiza um mochilão pelas galáxias. Perdeu o irmão sem nunca conhecê-lo de verdade. Ganha um filho em circunstâncias bizarras. Conhece melhor o irmão num insólito além-vida. Conhece o amor de uma mulher. Perde o pai. Será pai novamente. Dá as boas-vindas a novos heróis locais. Decide se aposentar da vida de combate ao crime. Decide viver a vida com a família em outra cidade. Viver outra aventura.

Depois disso tudo, me respondam com toda sinceridade: O que resta para ler de super-heróis...?!

🌟🌟🌟

Enquanto aguardo vossas deliberações, seguirei lendo o meu 2º romance da série Parker, de Richard Stark. Outra hora, falo sobre isso. Por ora, uma dica de amigo: evite ler Starman! Esse gibi vai acabar com a sua vida.

🌠🌠🌠

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[1] Porra! Lembrei agora de uma thread que fiz sobre a leitura da Biblioteca Eisner... Que ódio!

[2] Epígrafe contida em Golpe de Misericórdia, de Dennis Lehane.

[3] Uma ilação, hoje em dia, muito popular, saída das páginas da obra Collections of Nothing (2008).

[4] “ [...] a vida é uma sinfonia de perdas sucessivas. Perdemos nossa mocidade, nossos pais, nossos amores, nossos amigos, nosso conforto, nossa saúde e finalmente nossa vida. Negar as perdas é perder tudo isso de qualquer maneira e perder, além disso, o autocontrole e a paz de espírito. 

[5] Quais sejam: Sagas do Batman, Superman, Mulher-Maravilha, Flash, Vingadores e X-Men.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

LUGARES (AINDA MAIS) ESCUROS

" Essa é sempre a minha coisa; eu quero entreter as pessoas, mas é uma coisa de lobo em pele de cordeiro. A pele de cordeiro é a história do crime, eu acho. E o lobo é o verdadeiro significado da história, que eu muitas vezes nem sei quando estou escrevendo. [...] Eu nunca quero tentar fazer algo que pareça exatamente como o que fizemos antes. Até os livros Reckless parecem um pouco diferentes uns dos outros porque seus enredos são diferentes e acontecem em anos diferentes. A próxima coisa é sempre a mais difícil de escrever. É como um neo-noir de terror e suspense do Pânico Satânico. [...] É sobre uma mulher que fez parte [disso] nos anos 80 quando criança e que agora é adulta em nosso mundo moderno. Chama-se Houses of the Unholy. Sean disse que é a coisa mais estranha que já fizemos. Então, entenda isso como quiser. "[1]

***

Acabei de ler a graphic novel que o Ed Brubaker descreve acima. Tá quentinha ainda e faz só alguns dias que foi publicada, em 19 de agosto. Essa fala data de fevereiro de 2024. De lá para cá, o escritor pouco tem aparecido na internet; sua newsletter, por exemplo, foi atualizada pela última vez em junho último. À época, ele havia registrado apenas alguns bastidores das filmagens de Criminal. Nada de mais, já que, de um tempo para cá, Brubaker se tornou bem avesso à presença online, especialmente em redes sociais; das quais não mantém mais nenhuma.

Não obstante, o que vinha sendo uma regra dos seus lançamentos da parceria com Sean Phillips eram as entrevistas a dois no canal do Forbidden Planet, além dos posfácios em todas as obras de Reckless (2020) em diante. Nesses espaços, era possível vê-lo numa posição desconfortável – acredito eu –, falando de onde vinham as inspirações de cada projeto, não raro, de memórias & angústias do passado. Em Casas do Profano não ocorreu nem uma coisa, nem outra.[2]

O que, de maneira nenhuma, não é ruim. Faz o quadrinho soar ainda mais enigmático, dada a temática tão pesada. Para começar, mesclar a histeria coletiva frente ao satanismo com algo como o plot de A Caça (2012), com Mads Mikkelsen. No filme de Thomas Vinterberg, um professor de jardim de infância em uma minúscula cidade dinamarquesa, por um mal-entendido que foge de controle, acaba sendo acusado de pedofilia por uma de suas alunas. Doravante, verdade ou mentira, sua vida estava acabada e a película mostra cada centímetro dessa descida ao inferno.

Na trama de Brubaker & Phillips, a denúncia é feita por seis crianças após uma colônia de férias, porém, com o elemento do abuso ritualístico. O caso vai a julgamento com um dos acusados chegando à capitular a própria vida, tamanha a pressão e a proporção que estava chegando. No fim, fica comprovado que tudo não passava de uma mentira e os “Seis Satânicos” sofrem os reveses disso, tendo suas vidas e a dos familiares destruídas.

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Off-Topic, mas nem tanto:

Ao caminharem por esses lugares escuros, infelizmente, Brubaker & Phillips têm um sem número de fontes. Muitas das quais, inclusive, virando exemplos célebres de investigações tendenciosas e erros judiciários crassos nos Estados Unidos. Um deles foi o Trio de West Memphis, que não passavam de adolescentes metaleiros implicados num múltiplo assassinato de crianças escoteiras. Sem qualquer chance de defesa, com a polícia fabricando indícios e provas, além de perjúrios descarados, eles foram julgados em 1994 e ficaram presos até 2011, quando exames de DNA levaram à conclusão que o material genético na cena do crime não era de nenhum dos três condenados. Circunstâncias tão cinematográficas que chegaram mesmo às vias de fato.

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De volta à HQ, mas mirando o presente, a trama se volta para Natalie Burns como uma investigadora à moda Jack Herriman. Assim como o protagonista de Cena do Crime, ela fora contratada para resgatar outra jovem impressionável cooptada por alguma seita nefasta. Seria (também) um dinheiro fácil, não fossem as circunstâncias voyeurísticas de um dono de motel – ou chalés – que pensa estar visualizando um sequestro pelas câmeras ocultas e faz uma chamada para a polícia.

Ao ser detida para interrogatório, Burns é liberada sob a custódia do Agente West do FBI. Porém, rapidamente descobrimos que ele não está interessado no suposto rapto, mas, sim, num caso que chamou sua atenção. Antes do 11 de setembro, West compunha a Unidade de Crimes Cultuais do Bureau, porém a divisão foi dissolvida quando os federais passaram a centrar esforços em terroristas e milícias de extrema-direita. Fora que não contribuía em nada incidentes como o dos Seis Satânicos, desacreditando qualquer trabalho sério.

Entretanto, West acredita que as outrora seis crianças da infância de Burns estão sendo alvos de um assassino que não segue um padrão verificável. Sendo que três já haviam sido mortos e Burns podia ser útil em sua caçada solitária ao serial killer, seja na interlocução com os demais, seja evitando mais vítimas. Logo, a busca vira um road movie com a dupla trocando traumas passados, com discussões acaloradas sobre os (nossos) demônios contemporâneos.

É curioso que, às vezes, o aprofundamento de um tropo vem depois que o leitor valida uma história anterior e o escritor sente-se confortável para esticar a corda. O que quero dizer é que Casas do Profano vem na esteira, por exemplo, de Matar ou Morrer e transforma críticas anteriores em soda cáustica. A exemplo do inconformismo velado de Brubaker com o nativo das redes sociais; manifestado na alienação do irmão mais novo de Burns.

Por outro lado, a nova história não vira um Taxi Driver com um anti-herói delirante, que faz o que faz se dizendo influenciado por um demônio. Não existe catarse nos demônios de Natalie Burns; eles estão numa memória não confiável - formatada até - e numa culpa quase paralisante. Eis um gibi difícil, tanto no recordatório quanto na estética dos Phillips; onde os vermelhos (de Jake) pontuam os trechos no passado, sempre te levando a lugares de ocaso e opressão. Já os tons azuis no presente transparecem tristeza e a maldição de ser racional em meio a um mundo irracional.

Se leu e ficou mal, parabéns! Você leu certinho.

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[1] Excertos extraídos de uma entrevista concedida por Ed Brubaker ao site Gizmodo, na época do lançamento de Onde Estava o Corpo.

[2] Talvez pela falta de tempo, já que o homem, como disse, está envolvido na produção de Criminal. Ahh, e se não ficou claro, o nome "Casas do Profano" é informal, já que a Editora Mino ainda não sinalizou como vai se chamar o título quando - ou se - for lançado no Brasil.

sábado, 31 de agosto de 2024

A SEGUNDA MORTE DO TWITTER

A primeira, vocês bem sabem. Foi quando a compra da rede social por Elon Musk foi oficializada. Do lado de cá, em 1º de janeiro desse ano, decidi reativar essa birosca com a intuição de que a coisa ia implodir... e implodiu. Acho uma pena. Hoje mesmo acordei e, como uma memória muscular, peguei o celular e abri o aplicativo do (e)X-Twitter para rolar a minha timeline. Dois segundos mais tarde, percebi que não estava atualizando, o que era esperado, dado o deadline da meia-noite estabelecido pela Anatel para interromper os acessos.

Então, a primeira coisa que me veio foi o Morpheus dando as boas-vindas ao Neo:

“Bem-vindo ao deserto do real.”

***

Não pretendo buscar um substituto como muitos estão fazendo, ou por receio de se perder presença online, não ter como divulgar seus conteúdos ou puro vício mesmo. Na realidade, confesso que estou furioso comigo mesmo de ter publicado tantos textos em algo tão efêmero e de baixa qualidade organizacional. Ontem, antes do fim, me vi tentando salvar todos os comentários que fiz sobre os dezenove livros lidos de 2021 para cá do universo literário de Fundação, de Isaac Asimov.

Tive êxito, claro, mas isso foi o mínimo. Compartilhei inúmeros pensamentos ou sentimentos sobre leituras e a vida acontecendo em tempo real. Acho que alguma hora a rede social voltará, tamanho são os interesses econômicos e políticos envolvidos. Talvez eu mesmo volte se ela voltar, no entanto, jamais voltarei a fazer o que fazia por lá nas duas primeiras vidas do Twitter.

💀💀💀

Mais Morte:

Se o Twitter estivesse ativo agora, o meu primeiro tuíte do dia teria sido uma foto segurando meu volume de Morte. Comecei a reler hoje cedo com a próxima gravação d’os Escapistas em mente; num último retorno a nossa série Sandman Anotado. Aliás, a primeira vez que iremos discutir um trabalho do Neil Gaiman após a avalanche de merda que vem enterrando sua reputação de bom moço.

Por sinal, a introdução escrita pela Amanda Palmer, me fez olhar para a ironia do destino, imaginando se sua atual ex-esposa, quinze anos depois[1], ainda mantém o que disse sobre " [...] como se pode avaliar a personalidade de uma pessoa com base em ela manter ou não uma amizade decente com ex-cônjuges ou ex-amantes. Porque quem não consegue manter a amizade nesses casos, provavelmente é um babaca ".

Fora isso, é um texto bem qualquer nota, assim como a esmagadora maioria dos prefácios da coleção dos 30 anos; no qual, notáveis são convidados para apresentar os volumes e eles falam de qualquer coisa, menos do gibi. No caso do relato da Amanda, metaforizando performances dela com a personagem Morte, soa até egocêntrico. Nada contra a artista que, por sinal, é um case de sucesso no lance do crowdfunding.

***

Por ora, estou em negação, mas amanhã tem Flamengo e Corinthians. Me pergunto como farei pra cornetar e xingar o Malvadão sem o ódio fácil e convidativo do velho Twitter (?!). 



[1] A tal intro data de 2009. Eles se casaram em 2011, e a separação foi anunciada em 2022. Em tempo, o fofoqueiro de plantão dentro de mim crê que a linha “ Eu falo demais e frequentemente me meto em problemas ” dá indícios de uma senhora esfregada da cara no asfalto.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

DA LAMA AO CAOS

" [...] de que não somos amados; de que o objeto de nossa afeição é frio e infiel... Por quê? Por que nunca vemos a traição nos olhos delas até ela ficar cara a cara conosco? Eu entendi tudo. Eles se viam desde o princípio. Provavelmente, planejaram o incêndio no museu de cera para me tirar do caminho. Quantas vezes? Quantas vezes ele subiu sorrateiro estas escadas do setor de livros e papelaria, passando pelo de acessórios de jardinagem até chegar ao departamento de roupas femininas? Quantas vezes ela tolerou meus beijos com desdém e escárnio, o tempo todo aguardando pelo sinal no céu que a avisaria de sua chegada? Quantas vezes? Sendo bem franco, isso não me importava mais. Eu não me importava mais quantas vezes, quantos homens e com que freqüência. Eu não me importava mais com números. Só havia um pensamento em minha mente, uma inabalável determinação: NUNCA MAIS. "

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Essa passagem pertence à história Barro Mortal, com roteiro de Alan Moore e arte de George Freeman, publicada em Batman Anual nº 11, de julho de 1987. Aqui no Brasil, foi lançada em fevereiro de 1988 pela Editora Abril, dentro da 6ª edição da segunda série mensal do Batman. Esse conto só voltaria a ser republicado quase vinte anos depois, em 2006, dessa vez pela Panini, dentro do encadernado Grandes Clássicos DC nº 9, dedicado integralmente ao barbudo. Fora de catálogo há um bom tempo, esse encadernado ganhou uma versão de luxo, trazendo novamente essa história em 2022; mas antes disso, também integrou a A Saga do Batman nº 1 em 2021.

O monólogo é de Preston Payne, o terceiro personagem da galeria de vilões do Batman a usar a alcunha Cara de Barro. Nela, ele está há alguns meses vivendo escondido em um shopping center, alimentando um insólito romance com um manequim que chama de Helena. Em algum momento, Payne começa a imaginar que está sendo traído e passa a acreditar que o Ricardão é o Batman. Trata-se de um singelo tratado de amor e ciúme, e a loucura que pode preencher as duas coisas.

Nas linhas a seguir, além de Barro Mortal, iremos ao encontro do arco Quadra de Lama, que desenvolveria posteriormente a condição de Preston Payne e o reuniria com os demais Caras de Barro.

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A primeira vez que encarei Barro Mortal foi justamente via republicação, em Grandes Clássicos DC nº 9. Uma curiosidade sobre a produção desse conto é que Alan Moore o escreveu após concluir o roteiro de A Piada Mortal, mas acabou que, provavelmente por conta do nível de sofisticação da arte do Brian Bolland, Barro Mortal acabou saindo bem antes, em julho de 1987; enquanto que Piada Mortal só viria à luz um ano depois, em julho de 1988. Como toda boa história, ela é atemporal. Se você estiver lendo esse texto daqui a cinco, dez anos ou mais, e tiver curiosidade sobre esse conto, vai lê-lo e ainda se deliciar com a delicada ironia presente aqui.

Pensando bem, pode-se dizer que esse tipo de HQ de super-herói anda em falta. Por que afirmo isso? Porque, hoje, via de regra, existe um excesso de protagonismo do personagem-título e, muito raramente, o leitor se depara com algo em que quem dita as ações no recordatório não sejam o próprio dono da revista; nesse caso, o Batman.

Vou até mais longe: a beleza de uma boa história do Batman está na condução de uma narrativa, talvez onisciente, mas que não sabe ou passe exatamente a ideia do que ele está pensando naquele momento. Algo que, na minha opinião, reforça o mistério sobre o personagem. O que tem para hoje, porém, tem sido um Batman nu. Um Batman transparente, que fala sobre suas angústias, suas paixões, sobre seus medos. Chora. Ele abraça. Abraça demais, e isso é tudo o que não aprecio no Batman contemporâneo.

E, veja só, num simples quadro aqui, o vemos estendendo a mão para o Cara de Barro, explorando, sem qualquer afetação, a compaixão como algo natural no herói. Então, é com muita alegria e tristeza que revisito Barro Mortal. Alegria, por reencontrar esse quadrinho excepcional. Tristeza, pela percepção de que as chances de voltar a topar com algo assim são bem remotas.

Do line-up da Saga do Batman inaugural, sem dúvida alguma, a melhor história é essa do Alan Moore com o Cara de Barro. Melhor, porém deslocada. Porque faria mais sentido segurar um pouquinho a mão e a relançar junto de Quadra de Lama, que sai originalmente entre Detective Comics nº 604-607 (1989); e no nosso Saga, dentro do Volume 13 (2022). Voltando um pouco a fita, esse arco de Alan Grant e Norm Breyfogle foi o destaque das edições nº 8-9 da 3ª série mensal do Batman pela Abril. Curiosamente, esses dois números saem sem um delay tão grande, que era a regra para época; precisamente entre setembro e outubro de 1990[1].

O que desde já fica bem claro, é que Grant procurou se inteirar sobre cada uma das quatro encarnações dessa alcunha vilanesca, mostrando uma aptidão pela pesquisa histórica que viria após aquele “Ano Vertigo”, dada a obrigação de, doravante, estar a par com as minúcias da cronologia do Universo DC[2]. Então, me parece seguro imaginar que o escritor passou os olhos no gibi do seu conterrâneo britânico e percebeu que havia ali uma deixa clamando por um desenvolvimento posterior, tanto é que o começo de Quadra já parte da premissa que Preston Payne está preso no Arkham, em companhia da manequim Helena.

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Karlo &

Hagen &

Payne &

Fuller.

O Cara de Barro original surgiu no princípio de Batman, na Era de Ouro, em Detective Comics nº 40 (1940); com roteiro de Bill Finger e arte de Bob Kane. Isto é, treze edições depois da estreia no nº 27. No Brasil, foi chamado inicialmente de o “Cara Suja”. Na realidade, ele era só um ator de filmes B chamado Basil Karlo, que se revolta ao descobrir que o estúdio faria um remake de seu maior clássico e acaba assassinando alguns atores da produção. O Batman entra em cena, justamente porque uma das atrizes da produção era Julie Madison, um dos primeiros interesses amorosos de Bruce Wayne.

Ao ser capturado, percebe-se que Karlo não passa de um homem com maquiagem grotesca simulando barro. Sua soltura só se daria em Quadra de Lama; editorialmente falando, foram quase 50 anos de cárcere! Na história de Grant e Breyfogle, parte dele a iniciativa de reunir os seus sucessores numa vendetta contra Batman, contudo, com uma agenda própria. Na recém-lançada série animada, Cruzado Encapuzado, ambientada nos anos 1940, Karlo é retratado como um ator que deseja melhorar sua aparência e se submete à fórmula experimental de um cientista. O resultado não é o desejado, mas lhe confere a capacidade de emular os rostos alheios.

Matt Hagen foi o Cara de Barro II e, provavelmente, o mais conhecido. Também criado por Bill Finger, mas com arte do Sheldon Modoff, seu debute se deu em Detective Comics nº 298 (1961). Trata-se de um caçador de tesouros que encontra uma caverna cujo interior havia uma piscina radioativa de protoplasma. Ao se banhar acidentalmente nesse lamaçal, ele desenvolve poderes transmorfos, superforça e invulnerabilidade. Todos, porém, temporários, o que o impunha voltar à câmara secreta para mais banhos. Em Lendas do Cavaleiro das Trevas nº 89-90 (1996), Alan Grant e Enrique Alcatena se juntam para dar novas camadas a essa origem.

Chamada simplesmente de Barro - inédita no Brasil -, a história tem lugar nas três primeiras semanas de Bruce como Batman. É explicado que Hagen acha a tal caverna ao fugir dos capangas do Chefe Xylas, o qual tinha passado a perna num roubo de diamantes. Lisa, sua namorada, ficou para trás e, eventualmente, ele vira o Cara de Barro e a liberta dos homens que a ameaçavam. Batman o vê destroçando os bandidos e tenta intervir. Não dá muito certo. Nada certo. Grant vende a ideia que foi nesse encontro que Batman descobriu da pior forma a existência de metahumanos. A experiência foi tão traumática que, ao se recuperar dos ferimentos, Bruce pede para atualizar seu testamento; fora a crise de insegurança que lhe acomete nos dias seguintes. Ao superá-la, ao domar o próprio medo, não importa a ameaça, humana ou super-humana, ele daria conta, controlaria o mundo

Todavia, o momento mais desconcertante de Barro é quando Lisa - a única outra pessoa que conhece a localização da piscina -, se vê exaurida com a mudança de Hagen, e pede para acabar o relacionamento. Eles se despedem num último abraço; para ela, literalmente. Já o namorado lamacento, se despediria, ou melhor, seria uma das vítimas da Crise nas Infinitas Terras. Inclusive, a participação em Quadra de Lama é mínima, numa tentativa em vão de usar os "restos mortais" para restaurá-lo.

Recapitulando: O Cara de Barro já foi um artista e um aventureiro. O próximo seria um cientista. Preston Payne era um pesquisador que sofria de acromegalia com hiperpituitarismo crônico. O tal gigantismo. Por conta de sua aparência, Payne tinha sido uma criança complexada, sem amigos e com Q.I. de gênio. Quando adulto, ele se emprega nos laboratórios DELTA e se especializa em doenças hormonais. Em algum momento, ele se interessa pela condição de Hagen e o visita na prisão, coletando uma amostra de seu sangue.

No laboratório, consegue isolar uma enzima que quando injetada no sangue tornava seus tecidos maleáveis. Dá tudo errado e aí ele não conseguia mais se manter sólido; para não derreter, projeta um traje de contenção similar ao do Senhor Frio. Mas o principal problema era que, o toque dele reduzia outras pessoas a protoplasma. Daí para sobreviver, periodicamente, ele tinha que liberar esse poder sobre outras pessoas. Daí a culpa de ter que fazer isso periodicamente acaba deixando-o louco; como vemos em Barro Mortal.

A Cara de Barro, ou Dama de Barro, chama-se Sondra Fuller. Criação de Mike W. Barr e Jim Aparo em The Outsiders/Renegados nº 21, igualmente inédita por aqui. Aliás, essa série funcionava como um Volume 2 de Batman and The Outsiders e, infelizmente, nenhuma das 28 edições foi lançada pela Abril na época que a editora cuidava da DC. Cá entre nós, seria um "Saga" que eu certamente pegaria se rolasse. E no caso de nossa Sondra Fuller, como Renegados nº 21 nunca saiu, a primeira aparição dela para o leitor BR acabou sendo mesmo em Quadra de Lama.

Fuller era uma agente da organização Kobra, que aceita se submeter a um processo para ganhar os poderes de Matt Hagen, sendo que a transformação dela era irreversível. E ainda tinha o trunfo de mimetizar os poderes de algum super-humano que ela assumisse a forma. É revelado, inclusive, que a vilã topa se submeter a isso pela baixa autoestima, por se achar muito feia. Então, passa a usar a imagem de atrizes e celebridades até um ponto que fica depressiva por não poder ser mais ela mesma. E como visto em Quadra, são as visitas dela a Basil Karlo na prisão que idealizam a reunião dos Caras de Barro.

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Na realidade, todos são ludibriados e explorados por Karlo numa busca por poder, que o faz mesclar as amostras de sangue de Payne e Fuller, injetando o composto como um o soro em suas próprias veias. O resultado é uma abominação que se autodenomina de Cara de Barro Supremo. E, ainda que traídos, os Caras de Barro III e IV acabam se engraçando e formando um casal, com um final (divertidamente) antecipado para o par, deixando para que o Batman e a Divina (dos Renegados) deem conta do Supremo. No clímax, Karlo chega a extrapolar tanto o poder originário de Payne, que ele acaba derretendo o chão e atravessando indefinidamente a crosta terrestre.

Dali então, ele jamais voltaria a ser visto a não ser em Terra de Ninguém, no Robinson Park, tentando dominar Hera Venenosa; só para perceber que não podia lidar com a fração do Verde que ela detinha. Ironicamente, Karlo é transformado em solo para o cultivo de alimentos para que Batman pudesse distribuir aos desabrigados. Para fins de registro, a edição em questão era a Detective Comics nº 735 (1999), com Greg Rucka e Dan Jurgens.

Quanto a Payne & Fuller, eles passam a viver afastados da sociedade e até concebem um filhinho e o batizam de Cassius... O que é uma bela ironia do escritor escocês. Porque se você acrescenta "Clay" de Clay Face, que é o nome inglês de "Cara de Barro", temos o nome "Cassius Clay". Isto é, o nome de batismo do boxeador Muhammad Ali. Mas no Brasil da Editora Abril, acredite, chamaram o bebê de "João de Barro". Dá até para extrapolar mais nessa brincadeira dos sobrenomes, porque "Payne" deriva de "pain" ou dor; "Fuller" detona algo "mais completo" e, paradoxalmente, tudo o que Sondra não é, é uma pessoa dona de si... completa. Nesse ponto, Grant acaba extrapolando a ideia inicial de Moore, brincando sadicamente com pessoas quebradas, entrando de cabeça - até de manequim - em relações abusivas.

A família Payne levava sua vidinha (quase) bucólica até que o assassino Matadouro - na época do Batman Azrael -, está passando pela área deles e sequestra o menininho enquanto os pais tinham saído para uma caminhada. Desesperados, eles precisam voltar a Gotham para reaver Cassius, porém, topam com Jean Paul-Valley e o casal acaba na custódia dos Laboratórios S.T.A.R. Tudo isso acontece em The Shadow of the Bat nº 26-27 (1994), com Alan Grant e Bret Blevins. Bem mais tarde, em Batman nº 550 (1998), de Doug Moench e Kelley Jones, descobriríamos que, diferente dos genitores, o filho - ou o Cara de Barro V - foi parar no DOE, o Departamento de Operações Extranormais.

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Em meados de 2023, enquanto começava a fazer essas releituras, eu fazia anotações e crescia uma vontade irresistível de produzir uma série de podcasts em torno dessa temática. O desafio seria imenso, porque realmente gostaria de conduzir papos sobre o run de Grant; que é, inegavelmente, meu escritor quiróptero favorito. Só que a (minha) realidade me fez recobrar o juízo, mas não antes de gravar um programa órfão:

Download audio 

Nele, Reginaldo Yeoman e Marcelo Miranda - com o Do Vale nas vinhetas - se juntaram a mim numa conversa que se debruçou em alguns pontos desse texto. Esse "Detetive Cast" - como chamo Os Escapistas dedicados ao morcego - não constará no feed oficial e foi desmembrado em duas partes. Uma sobre Quadra de Lama, disponível acima para download ou ouvir aqui mesmo; e a outra sobre Tulpa, com O Demônio de Jack Kirby, a ser publicado no nosso próximo resgate psíquico. 😈 

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Links Afiliados


[1] Uma coisa que me chamava a atenção na publicação da Abril eram as fichas no final, detalhando os aspectos técnicos e a origem de cada Cara de Barro.

[2] E isso não foi à toa. Com o sucesso em Detective Comics, não demorou e Alan Grant passou a encabeçar outros trabalhos paralelos. Dentre eles, passou a dividir os créditos com outros escritores e artistas por cerca de quarenta edições de L.E.G.I.O.N (1989), também quarenta em The Demon (1990) e sessenta e cinco em Lobo (1993).