Pelos
últimos textos, dá para perceber que ando numa fase meio niilista, com um humor
ranheta típico de quem aprecia o inverno de Northampton e agora é verão na cidade. Talvez por isso esteja me voltando tanto para o Noir e/ou
historinhas mais urbanas, pessimistas até. Quer dizer, setembro mal chegou a
metade e, fazendo um balanço parcial, tudo o que consumi, basicamente, foi
nessa toada.
A começar
por Fogo contra Fogo (Heat, 1995), de Michael Mann. Uma reprise
que, até então, acredite ou não, jamais havia feito. Dá para dizer que, depois
de tanto tempo, foi como ver o filme pela 1ª vez, já que lembro vividamente de
alugar a fita VHS quando ainda era lançamento; talvez em 96? Enfim, acho que as
quase três horas de projeção foram o que chamam de experiência religiosa. E não
errei na colocação do substantivo: foi projeção mesmo![1]
***
As linhas
gerais do enredo ainda estavam intactas na memória: uma quadrilha altamente
especializada, liderada pelo ladrão mestre Neil McCauley (Robert De
Niro), é caçada pela unidade de crimes especiais de L.A, sob a supervisão do detetive-tenente
Vincent Hanna (Al Pacino). Por outro lado, toda a argamassa entre esses
dois, já havia se esfarelado na cachola e tornou a experiência em algo novo.
Logo, as relações que os dois antagonistas constroem – e/ou destroem –, quase
no nível de um seriado de TV, dada a pressa inexistente para desenvolvê-las,
são coisas que ficaram comigo.
" Hanna
era assombrado por sonhos, cadáveres em uma mesa comprida olhando para ele.
Eles ficaram em silêncio. A aparência deles impunha obrigações, mas McCauley
não reconhecia obrigações. Ele tivera sonhos nos quais não conseguia respirar,
estava se afogando. Talvez estivesse ficando sem tempo, sugeriu Hanna. Eles
eram iguais, porque sabiam que a vida era curta, nós somos pegadas em uma praia
esperando a maré subir. E cada um navegava pelo futuro que vinha em sua direção
com os olhos bem abertos. Sensíveis, opostos em algumas questões, eles eram
iguais na compreensão de como o mundo funcionava, livres de ilusões e
autoengano. Ao mesmo tempo, cada um explodiria o outro sem hesitação. Eles
também sabiam disso. Mas aquilo poderia nunca acontecer. Eles poderiam nunca
mais se ver. "
Da metade para o clímax acachapante, McCauley está decidido a buscar uma vida mundana, tratando o roubo final como seu
último trabalho, mas joga tudo para o alto quando cai na provocação de Hanna e deixa-se levar pelo
próprio ego. Já Hanna não poderia estar mais longe da normalidade, vendo o trabalho
sepultar outro casamento (3º). Ambos são obsessivos natos, tão gigantes que sequer
cabem juntos dentro da telona. E não cabem mesmo. Mann jamais enquadra o ladrão
e o policial num mesmo plano. Jamais. Isso é incrível.[2]
“ O
mantra do criminoso era sair em trinta segundos caso sentisse o fogo inimigo
dobrar a esquina. Nate o lembrou disso. Hanna poderia cometer erros, poderia
acertar ou errar. Neil não poderia se dar ao luxo de errar uma única vez. ”
Curiosamente, o mantra de McCauley é testado por Hanna, exatamente quando ele se vê com a (futura) ex-esposa no hospital, numa vigília pela enteada que acabara de salvar de uma tentativa de suicídio. O seu bip toca e ela, pelo hábito da vida a dois, sabe que é um chamado e Hanna, fatalmente, não aguentaria e iria atendê-lo. Eu não voltei para cronometrar a passagem, mas gosto de pensar que a cena não dura mais que trinta segundos. Assim, o mantra de McCauley vale não apenas para a iminência de ser preso, mas, sim, de não se apegar a nada que levasse trinta segundos para largar e fugir.
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No fim
das contas, foi esse o erro de McCauley, de passar mais que trinta segundos
para desapegar. E nem me refiro a Eady (Amy Brenneman), o interesse
amoroso que, supostamente, o levaria à vida mundana na Nova Zelândia. A derrocada
foi ignorar os instintos e ir, resoluto, para a armadilha que a polícia montou em torno de Waingro
(Kevin Gage). Uma ponta solta que ficou atravessada num nível que impele McCauley a se desviar do final feliz, rumo ao avião da fuga, e ir ao hotel matar o ex-colaborador/serial
killer/dedo-duro.
E aí... Bem,
não sei se acontece com vocês, mas sempre que estou lendo algo, talvez por
sincronicidade, algumas coisas passam a tangenciar outras. Ocorreu agorinha
enquanto lia Parker: The Outfit, de Richard Stark, mais precisamente quando o
protagonista deixa transparecer algo que, em tese, talvez batesse com a
mecânica de um Neil McCauleuy mais jovem:
" Foi
um sinal ruim quando um homem como Handy começou a possuir coisas e começou a
pensar que poderia se dar ao luxo de ter amizades. Posses amarram um homem e
amizades o cegam. Parker não possuía nada; os homens que ele conhecia eram
apenas isso, os homens que ele conhecia. Eles não eram seus amigos e não
possuíam nada... Quando um homem como Handy começou a ansiar por posses e
amizades, isso significava que ele estava perdendo a dureza. Foi um mau sinal.
"
Essa
dureza de Parker parecia estar ali no comecinho de Fogo contra Fogo, de McCauley não
carregar bagagem. De McCauley simplesmente ser como uma rocha – ou os metais
que estudava para um golpe – ou uma montanha ou uma lei da natureza. Um bom exemplo da "materialização" desse vazio existencial está no(s) apartamento(s). McCauley tem nada menos que uma geladeira e a vista para o mar; Hanna, uma TV de 19" polegadas. São homens experientes que, embora corroídos pelo Nada, seguem em frente... inexoráveis. Por outro
lado, olhando em perspectiva, é engraçado pensar em De Niro e Pacino como dois homens
velhos, sendo que, à época, o primeiro tinha 52 anos e o segundo, 55; e ambos
estavam inteiraços.[3]
***
A propósito, os excertos em prosa sobre Fogo contra Fogo pertencem a sequência romanceada pelo mesmo Mann, e ladeado da escritora Meg Gardiner. A história do livro começa poucas horas depois dos acontecimentos do filme e, por incrível que pareça, faz quase dois anos que foi lançado no Brasil. Digo isso porque me enquadro no público-alvo e não lembro de ter visto qualquer divulgação. Como o diretor pretende filmar a continuação, é questão de tempo até que o romance comece a atrair a atenção de Booktubers & derivados.
De todo modo, se vale de alguma coisa, estou lendo Heat 2, alternando com Parker... Logo, meu Noir interior tá saindo pelo ladrão.
***
Link Afiliado
[1] Comprei um mini projetor e, desde então, tudo virou
cinema em casa.
[2] A foto que ilustra e encabeça o post é puro bait.
É de bastidores.
[3] Sendo franco, estão melhores que eu, com 42. Porra... Preciso cuidar melhor da carenagem.
5 comentários:
Clássico com todas as letras (maiúsculas). Senti uma rápida inveja por você ter visto poucas vezes, mas lembrei que o filme tem camadas que só aparecem depois de várias assistidas atentas. Aparecem não, brilham...
Curioso esse trecho:
"Hanna poderia cometer erros, poderia acertar ou errar. Neil não poderia se dar ao luxo de errar uma única vez."
Quase certeza que o Mann (ou a Gardiner) se inspirou no piloto de Columbo, onde o Peter Falk dizia exatamente isso, em 1ª pessoa, a um criminoso mega-inteligente que ele queria prender.
Também curto traçar convergências (o mal das mentes deterioradas por longos anos de cultura pop). A Brenneman, p.ex., repete o tom da Eady na série The Old Man, com Jeff Bridges. Dado o que acontece lá, poderia tranquilamente ser a mesma personagem, décadas depois.
Até soube da continuação quando o livro foi divulgado, mas o burburinho foi mínimo. Acho que o filme precisa ser redescoberto. Especialmente pelas gerações Z/alpha que estão no controle do fluxo. Velhuscos como eu já conhecem tanto FCF quanto o original, Os Tiras de Los Angeles, de cabo a rabo e em todas as mídias possíveis, rs.
Que delícia de post. A cena do tiroteio no projetor em casa deve ser uma coisa, hein. Avemaria.
Abração!
Dogg, preciso te dizer que não sou - ou não era - muito de rever ou reler. O podcast meio que inaugurou essa prática em termos de releitura de gibis, mas c/ filmes/séries, isso é algo que só ando praticando bem por esses dias. Parece estranho, mas sempre tive esse tique nervoso de imaginar que reler/rever é uma espécie de perda de tempo, de que poderia estar usando meu tempo p/ conhecer coisas novas.
Claro que esse tipo de pensamento é discutível. Ele meio que se enraizou em mim qdo sofri uma série de perdas de familiares no começo da década passada. A sensação de que, diferente do que o Mick acha, "o tempo não está do meu lado".
Ainda assim, a necessidade de rever tá se manifestando em mim por diretores, dando aquela vontade de maratonar a cinegrafia de alguns como o Michael Mann; e, sim, tem agora aquele mini projetor como um diabinho incentivando. Sim, o barulho do tiroteio rendeu até uma azucrinação extra da autoridade superiora aqui, se é que me entende... 😣
Li sobre The Oldman lá no BZ. Até comecei a assistir pelo finado Star, porém, aquele streaming era terrível aqui em casa. Sempre ficava dando pau, carregando ou do nada travando. Preciso recorrer aos meus contatos magnéticos na Romênia p/ resolver isso... Pq aquilo é muito foda p/ deixar ao léu. Aliás, tô c/ essa e Slow Horses na hitlist da vergonha.
Sobre novas gerações descobrindo FCF, confesso que tô perdendo ainda mais minha fé nessa humanidade TikToker. Esse fds, toquei o play em Parque dos Dinossauros p/ uma sobrinha e eis que: "- Tem T-Rex?! Bota logo na cena do T-Rex."
Qto a Heat 2, eu e Mauro estávamos a fim de bater um papo no podcast sobre o livro. Vamo vê se rola.
Abração, meu chapa.
Boa semana p/ ti.
Rezo para que Heat 2 esteja caindo em suas boas graças. Mas não spoilere sua opinião, quero conferir no podcast dedicado.
É muito real essa urgência sensorial e TDAH da galerinha pós-millennials. Tenho visto uns vídeos react de filmes (são sociológica e comportalmente fascinantes) e a maioria quase morre de ansiedade com buildups de mais de 5 minutos. Mas alguns também saem maravilhados.
Slow Horses também vegeta em minha lista. Shame on me.
Bem interessante essa perspectiva sobre reler/reassistir. É uma via de mão dupla - no caso dos filmes, pra que vou perder meu tempo com mais uma bomba direct-to-streaming quando poderia degustar aquele clássico uma vez mais e talvez até perceber detalhes que não vi/senti antes?
Ao mesmo tempo, a questão pessoal faz toda a diferença. A nossa jornada pessoal é sagrada. Ou não.
Em tempo... você e o André Barcinski estavam na mesma sintonia (fina): logo depois do seu post, ele fez uma live com um debate bacaníssimo sobre Fogo Contra Fogo:
https://youtu.be/VRCLYUt8LrM
Sincronicidade é pouco!
Abraço.
Do seu último comentário pra cá, queria registrar que toquei o play em The Old Man e acho que só parei quando vi Johnny e Harold partindo juntos para resgatar sua "filha". Que série e diálogos espetaculares. Por sinal...
"A Brenneman, p.ex., repete o tom da Eady na série The Old Man, com Jeff Bridges. Dado o que acontece lá, poderia tranquilamente ser a mesma personagem, décadas depois."
A Zoe é a Eady que o Neil não daria a volta. Nada menos que espetacular aquele xeque-mate financeiro que ela dá em Johnny. Aliás, as mulheres dessa série são um espetáculo à parte, da Belour à filha Emily. Por sorte, o timing me privilegiou com a 2ª temporada rolando agorinha. Hoje mesmo, já começo a ver e ficar vidrado com o compasso de espera pelos próximos.
Sobre reprises & releituras... O paspalho aqui tirou uma de gostosão e tá nesse momento relendo V de Vingança. 20 anos depois da minha 1º e única leitura. Os danos estão sendo intensos.
Sobre o vídeo do André Barcinski, verei. Gosto do sujeito.
Abração.
O showrunner é o mesmo de Jericho (lembra?). Ia esperar fechar essa 2ª temp., mas devo começar nesta semana mesmo. Gostei de como o "modelo antigo de assistir" fluiu na 1ª.
De Bridges e Lithgow nem precisa comentar. O mesmo pro Navid Negahban, para iniciados em 24 e Homeland. A Alia Shawkat que me surpreendeu, só a conhecia de Arrested Development (!). E o Bill Heck como o jovem Johnny. O cara mimetiza os trejeitos do Bridges à perfeição. Que castzaço.
Só leu V uma vez? Aquela atmosfera über-opressiva está muito bem preservada então. Tenha bons gatilhos aí...
Abração.
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