Costuma-se
dizer que quando uma história se liberta de seu criador, da segurança do
manuscrito, e passa a ser publicada e/ou exibida sob quaisquer suportes, enredo
e personagens já não mais pertencem àquele entusiasta de outrora. Tornam-se
parte do imaginário coletivo, a despeito do que o Copyright tenha a dizer sobre isso. Drácula
de Bram Stoker que o diga, publicado originalmente em 1897, foi tomado de
assalto no roteiro de Henrik Galeen para o filme Nosferatu (1922), de Friedrich
Murnau.
Quer dizer, sem ter autorização para isso, todos os tropos do clássico de Stoker foram explorados na icônica película do cinema mudo. Ironicamente, é no derivado extraoficial que se acrescenta à trama do Conde vampiro, o plot do interesse amoroso - ou chame-o do que quiser. Ironicamente², já em domínio público há três décadas, em 1992, Francis Ford Coppola fez um combinado, utilizando os elementos característicos de ambos. Ironicamente³, Coppola chamou seu "Frankenstein" de "Drácula de Bram Stoker".
Corta para 2024, nos créditos finais do mais novo remake de Nosferatu, vemos a informação que o filme fora inspirado tanto no controverso script de Galeen quanto no livro de Stoker. Trata-se de um sarrafo muito alto para o diretor Robert Eggers saltar, sobretudo quando se tem ainda muito vívida a marca imagética do que Coppola alcançou, especialmente nos dois primeiros atos. Então, na minha cabeça, enquanto assistia, um duelo interno estava sendo travado: Gary Oldman vs. Bill Skarsgård; Winona Ryder vs. Lily-Rose Depp; Keanu Reeves vs. Nicholas Hoult; Anthony Hopkins vs. Willem Dafoe e Monica Bellucci vs...?!
Enfim,
o time de 92 sempre estava vencendo os desafios contra o de 24, inclusive, no
nível do roteiro, porém, com uma única exceção: o terceiro e último ato, que
trata das três pragas de Nosferatu. Acho que elas conferem tetricidade, uma
sensação de desolação, como se as vítimas de Wisborg tivessem acabado de
sobreviver a um desastre natural. Uma desesperança ao qual espectador (ou
leitor) nenhum havia se deparado até então.
O que quero dizer é que, tenho minhas restrições[1] com o Orlok - humanizado por um bigode? - e a sensação incômoda de que aquela Ellen[2] é uma Regan (de O Exorcista) no filme errado, mas o Nosferatu 2024 tem, sim, arroubos estéticos/góticos merecedores de elogios[3] e, claro, aquele desejo irrefreável de recontar as grandes histórias que permeiam à coletividade. Um desejo que atiçou os ímpetos de Murnau, Coppola e, agora, Eggers também.
E isso eu respeito[4].
[1] Confesso que antipatizei também com Van Franz, o análogo de Van Helsing. Na versão revista, Eggers o transforma numa figura vacilante, que jamais chega a ser
determinante para a resolução da praga de Nosferatu. É como se o (ótimo) Willem
Dafoe estivesse ali apenas para fazer react como intelectual atestando que ia
dar merda. Já o Orlok me divide. Aprecio todo o esmero na caracterização do personagem, tanto do ator quanto da produção, mas em momento algum o achei assustador. Aliás, depois que vi isso... Sem chance!
[2] Dediquei quatro anos da minha vida a Mina Murray de Bram Stoker e, em especial, a subversão apócrifa da mesma por Alan Moore e Kevin O’Neill em A Liga Extraordinária. Então, modéstia à parte, creio que possa me indispor um pouco com essa Ellen amuada de Robert Eggers.
[3] [...] e as quatro indicações que recebeu no Oscar 2025, quais sejam: melhor fotografia, melhor figurino, melhor cabelo & maquiagem e melhor design de produção.
[4] Só não respeito esse ar um pouco pretensioso
que esse diretor exala quando dispara coisas como “a ideia de ter que fotografar um carro me deixa doente”.
Belo texto, chefe!
ResponderExcluirEssa desesperança/sensação de inevitabilidade é uma constante no filme. E me parece a verdadeira razão de muitos não terem curtido, já que "nada acontece".
O Orlok aqui é mais força da natureza do que indivíduo (gostei do "sou um apetite, nada mais"). Também curti a migalha sobre sua vida pregressa como Solomonari, um mago do folclore romeno.
Sobre a caracterização "camarada cossaco from hell" e a performance do Skarsgård, se esforçando para soar vagamente humano, pra mim, foram no alvo. E são meio que essenciais pra coisa toda funcionar, caso contrário...
Faltou foi um contingente de terceirizados para fazer a logística do Nosfera, coisa que o Coppola lembrou no vampirão dele. E outros análogos flagrantes são Lucy/Anna Harding (que cena magnífica a da chacina) e Renfield/Herr Knock.
Abraço.
Perdão pela demora. Nesse meio-tempo, vimos um Oscar 2025 esnobar completamente nosso triste Nosferatu. Quer dizer, perder na categoria figurino para Wicked...?! Espero que o Eggers esteja com a terapia em dia. Não é um filme que verei mais vezes, mas preciso admitir que ele está envelhecendo bem dentro da minha cachola; ou se mesclando às outras histórias de Drácula que já habitam nela.
ResponderExcluirAbração.