Numa tradução grosseira, a terminologia “one-shot” quer dizer “um disparo”. Na minha cabeça, a expressão vem acompanhada da imagem do T-800 em cima da Harley, atirando com a Winchester 1887 de cano cerrado. Arnold merecia o Oscar 92 só por causa daquela girada cheia de charme, ainda que ela fosse uma homenagem ao Peregrino.
Antes que isso vire um texto sobre o Exterminador do Futuro 2, gostaria logo de dizer que nos quadrinhos, o one-shot é o sal da vida. Aquele gibi maroto com início, meio e fim que, além de se resolver em si mesmo, deixa seu leitor livre e desimpedido para seguir com sua vida. Algo, por sinal, cada vez mais raro, já que os autores contemporâneos sempre estão priorizando arcos longos ou, se muito, produzindo histórias curtas para antologias; o que não é a mesma coisa[1].
Até dei uma olhadinha por aí, para ver se o termo nas HQs tem uma origem exata e atribuível a alguém, mas parece mesmo que one-shot foi importado da indústria cinematográfica e televisiva. Por trás das câmeras, o nome diz respeito a uma produção que é concluída numa única sessão ou episódio. Nos comics, é provável que surgiu no calor da Era de Ouro (1930-1950), naquele afã editorial em busca de formatos e novos estilos de publicação.
Em outra vida, eu cheguei a inaugurar uma seção só para falar sobre historinhas assim. Por que estou trazendo isso à tona?
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A edição contempla as duas artes acima, sendo a do Casamento (Michael Netzer) usada na 4ª capa. |
Por esses dias, recebi a 1ª edição da nova temporada de A Saga do Batman, e eis que no miolo, no cantinho da página 84, após uma interação entre Jim Gordon e Sarah Essen, somos informados via nota de rodapé que o casal havia se casado. O detalhe é que o editor do volume te avisa que a Panini não publicou o matrimônio, mas você pode encontrar a dita revista em Batman Anual nº 3, da Abril.
Foi
isso mesmo que você leu: um quadrinho publicado em novembro de 1994, quase 30
anos atrás. Só que o detalhe maior é que a relação turbulenta entre o
Comissário e a Sargento não foi algo en
passant, superficial, explorada rapidamente numa passagem digna de Troféu
Cata-Piolho e ficou por isso mesmo. Pelo contrário. Trata-se de um affair iniciado lá atrás em Ano Um de Frank Miller e David
Mazzucchelli, e desde que Dennis O’Neil ganhou o status de editor da linha do
morcego, sempre esteve na ribalta. Não por acaso, em 1992, é o próprio Denny
quem escreve Votos, o conto em que
os dois urubus pombinhos resolveram trocar alianças[2].
Publicado originalmente em Legends of the Dark Knight Annual nº 2, com arte de Michael Netzer, passou-se toda uma década desde aquele beijo numa noite chuvosa. O primeiro casamento de Jim foi pelo ralo, não exatamente pelo caso extraconjugal com Sarah, mas pela devoção do então Capitão aos seus princípios éticos; ao ponto de colocar em xeque a própria vida de Jimmy Júnior. Em Votos, a história começa com Sarah provando um vestido de noiva na frente de Jim e, como diz a tradição, isso costuma dar azar. Flass, o ex-detetive, denunciado e expulso do DPGC por corrupção, reaparece vingativo, dizendo ter sequestrado o menino Jimmy e, para libertá-lo, quer que o pai lhe entregue as provas que implicavam o Juiz Liptic em negociatas.
O lance é que o Juiz sujo era candidato a prefeito de Gotham e a eleição ocorreria dali a oito horas. Mesmo ao custo da vida do filho, Jim segue resoluto e não quer entregar o material a Flass; ou melhor, até entregará, mas não antes de enviar cópias anônimas para veículos de imprensa. Vale dizer, um risco pessimamente calculado. O fato, porém, é que esse drama azeda ainda mais o desejo do Comissário de se ver casado novamente. E pensando bem, isso só ocorreu[3] porque ele imaginava que estariam mortos dali a alguns instantes.
Em 58 páginas, o Batman só aparece por volta da 30ª, no que seria o último choque ideológico com a noiva, tornando-se um padrinho acidental e, instintivamente, contrário à união com seu maior aliado. Se tivesse deixado de lado o coração e dado ouvidos à razão, talvez numa leitura sensata daquele homem alquebrado, eu creio que o destino final da futura Sarah Essen Gordon poderia ter sido bem diferente.
Aos
13 de idade, Votos era só mais um gibizão do Batman. Aos 42, penso que aquilo foi a
primeira vez que interagi com uma relação tóxica. Ou, vá lá, talvez era só algo maduro e endurecido, que não se quebraria tão facilmente.
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Falando em primeira vez, isso também é o que anuncia a capa da outra história de Batman Anual nº 3: “o primeiro contato com o Coringa”.
Normalmente, dado o tamanho da superexposição do vilão nos últimos tempos, eu já me dou por satisfeito de HQs com sua onipresença. Não obstante, como o objetivo era reler a respectiva edição da Editora Abril, me obriguei a tanto. Na realidade, a quem quero enganar, foi trabalho nenhum. Acabei fazendo outra viagem no tempo.
Imagens saiu lá fora em Legends of the Dark Knight nº 50 (1993), novamente com Dennis O’Neil e agora com a arte de Bret Blevins. Se a história Votos estava alinhada à trama de Ano Um, por coincidência ou não, a segunda remetia A Piada Mortal, o clássico-mor do Palhaço do Crime. Só que em 94, eu estava a 5 anos de ler pela primeira vez a obra-prima de Alan Moore e Brian Bolland, mais precisamente na reedição de 99.
Então, vejam vocês, minha leitura original de Piada foi mediada com o que tinha visto em Imagens. Mas do que trata finalmente essa história?
Era a primeira[4] vez desde Batman nº 1 (1940) que a estreia do Coringa seria recontada para novos leitores. A linha-guia manteve-se intacta com o psicopata envenenando à distância figurões da sociedade gothamita. Não obstante, O’Neil inova trazendo a figura de um suposto primo com histórico de doença mental, que teria sido o criador do famoso composto químico que mata suas vítimas sorrindo.
Além disso, o saudoso roteirista acrescenta uma triste ironia, que levaria Bruce a se culpar mais tarde. Como estamos no princípio do ano dois, o Batman está longe de ser o super-herói infalível de hoje e, eis que logo no comecinho, ao invadir o covil de bandidos pés-de-chinelo, ele deixa o Coringa sair da cena do crime sem se tocar que aquele era o mesmo homem descrito por Jim em duas oportunidades[5].
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Um equívoco que custaria várias vidas no decorrer da(s) história(s). |
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Enfim, cheguei a sugerir ao responsável pela edição de A Saga do Batman que, pelo menos, Votos saísse em algum dos próximos números, mesmo que de forma extemporânea. Se ele leu o tuíte, nunca saberei. Que comeu bola, esquecendo dessa historinha, eu seria capaz de apostar.
O grande plot twist é que não tenho esse gibi. O exemplar que tive acesso, na época mesmo do lançamento, pertencia a um amigo. Hoje, provavelmente, ele sequer deve se lembrar que possuiu essa revista. Eu, por outro lado, era a cópia descarada daquele guri de Criminal. Na verdade, ainda sou, a diferença agora é que estou disposto a pagar o que aquele filho da mãe está cobrando.
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Link Afiliado
[1] Se for agora mesmo ver a lista de indicados ao Eisner 2024, poderá conferir em primeira mão que existem categorias tanto para histórias curtas (Best Short Story) quanto one-shots (Best Single Issue).
[2] Mais ou menos... O negócio foi bastante complicado, sobretudo para a Sarah.
[3] E veja só: o Juiz de Paz que celebrou o casamento foi o mesmo cuja reputação iria para a vala quando os registros e gravações viessem à tona. Outro detalhe cabuloso é que Sarah passa a edição inteira trajada com o vestido de noiva e uma jaqueta do DPGC. Casca grossa é pouco!
[4] Pelas minhas contas, Imagens foi a primeira de três versões, sendo a segunda O Homem que Ri (2005), de Ed Brubaker e Doug Mahnke; e A Carta Vencedora (2023), de Tom King e Mitch Gerads, como a terceira.
[5] Uma vez no final de Ano Um e a outra aqui, em Imagens.
Cravo nestes fins de maio de 2024: dá pra ficar relendo Batman desse tempo pro resto da vida com muito gosto. É um prazer que sinto parecido com o de reler Tex, de 100% de aproveitamento e diversão mesmo nos contos mais esquecíveis. Saga do Batman pode varar Zero Hora, passar por Contágio e O Legado do Demônio que tô dentro.
ResponderExcluirO Batman/Gordon da administração O’Neil é a Bateria Central da cronologia quiróptera. Um deleite e uma das melhores coisas dessa indústria vital.
ResponderExcluirAgora, difícil mesmo é organizar tudo nessa ordem de leitura entre-editoras que você faz tão naturalmente (e com isso não quero dizer que seja fácil, nem a pau). Um dos meus sonhos é (re)ver o icônico guia de leitura que você montou e postou no Jurassic Pulse. Quem sabe até revisado e atualizado. E no Catarse.
E cara... revendo esses excertos da Abril bateu uma puta saudade do letreiramento manual. Era muito mais bacana!
Abração.
Ps: o link "o que tinha visto" tem um pedaço de url cortado no início.
Do Vale, não sei como consegue arrumar tanto tempo entre leituras e releituras. Queria um tutorial... Mas em termos de Batman, com o (des)nível dos gibis atuais, é muito compreensível nos voltarmos para essas zonas de conforto que o Dennis O'Neil nos propiciava. Eu tenho um projeto doido de (re)ler tudo o que ele fez no morcego, seja como escritor, seja como editor. Fosse você fazendo isso, eu levava mais fé. A conferir.
ResponderExcluirDogg, eu tenho aquela tranqueira arquivada por aqui. De certa forma, ele teve uma reencarnação em dois podcasts* que produzi em comemoração aos 80 anos do Batman. Gosto muito do que fizemos ali. Como você já deve ter percebido, aos poucos, tô recuperando muita coisa do(s) blog(s) antigos e republicando por aqui. Alguma hora, vou dar uma garibada naquele "Guia", porém, com um medo terrível de olhar para aquele abismo e ele olhar de volta para mim.
Também tenho um carinho por aquele letreiramento, vide o que fizeram nesse relançamento do Spawn e mais lá atrás com Asilo Arkham. Na realidade, se a gente começar a conversar sobre isso... Esse papo vai pro lado da colorização, da arte-final, das capas... No geral, tenho mais a reclamar do que elogiar essa Era do Quadrinho 2.0.
Sobre os links... Corrigidos. Brigadão pelo toque.
Abraços, pessoal.
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(*) https://osescapistaspodcast.com.br/tag/guia-clandestino/