Essa passagem acima pertence ao filme American Fiction, escrito e dirigido por Cord Jefferson. Nela, o editor Arthur (John Ortiz) surpreende o romancista Thelonious 'Monk' Ellison (Jeffrey Wright) com uma proposta de 750 mil dólares feita por uma editora pelos direitos de publicação sobre um livro que ele – sob pseudônimo – tinha acabado de escrever. Isso seria motivo de alegria para onze em cada dez autores, mas Monk não vê bem por aí já que o texto era apenas uma espécie de piada interna, uma história que explorava propositalmente os piores estereótipos das periferias afro-americanas.
Então, o autor envergonha-se que algo feito como uma anedota, expressando tudo o que ele despreza como intelectual e homem negro, esteja sendo aclamado por público e crítica; e mais que isso, que ele esteja ganhando o dinheiro que jamais ganhou com sua bibliografia oficial. Chega num ponto que Monk – ou “Stagg R. Leigh” – recebe 4 milhões de dólares de um produtor para adaptar a obra para o cinema. E aí todas as ofertas passam a ser tentadoras, sobretudo pelo péssimo momento que ele e sua família estão atravessando; com o diagnóstico de Alzheimer da mãe viúva, a morte da irmã que cuidava dela e o irmão caçula, totalmente falido, vivendo uma fase caótica após sair do armário.
Para
complicar, mais duas coisas: 1) sua namorada anda lendo o maldito bendito
livro – chamado provocativamente de “Fuck” para desencorajar sua publicação – e
está adorando; e 2) Monk é convidado para ser jurado de um prêmio literário e,
de última hora, o romance de Stagg R. Leigh[1]
entra na lista de indicados. E o pior melhor, mesmo a contragosto, “Fuck”
tem grandes chances de ser o vencedor.
Na vida real, American Fiction também chamou a atenção da Academia e recebeu cinco indicações no Oscar 2024, quais sejam: melhor filme, melhor ator (Jeffrey Wright), melhor ator coadjuvante (Sterling K. Brown; vivendo o irmão Cliff), melhor roteiro adaptado (Cord Jefferson; pela transposição do livro Erasure, de Percival Everett) e melhor trilha original.
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O filme é uma sátira mordaz à produção artística, à crítica erudita, à indústria do entretenimento, ao próprio público, ao privilégio branco, ao mito da democracia racial... Tem alfinetada para todos os bumbuns. Contudo, o que ficou de verdade comigo após os créditos finais foi essa cena da metáfora dos Johnnie Walker.
Dá para esticar, puxar e administrá-la em múltiplos cenários; de editoras que se esquecem da
existência de leitores menos abastados (RED) e centram poder de fogo em edições
luxo (omniBLUEs); de linhas editoriais que querem ser BLUE, mas são
BLACK... literalmente; de escritores BLUE que passaram a ver os quadrinhos como RED OLD EIGHT...
Cara, deu
até vontade de tomar uma
cerveja um
RED agora.
[1] Inicialmente, Stagg R. Leigh era apenas um pseudônimo, mas o editor Arthur vende a lorota que ele seria atualmente um foragido da justiça; o que aumenta ainda mais seu apelo comercial e ideológico.
Este filme foi uma surpresa e tanto. Imagina um filme dessa qualidade, até os 45 do segundo tempo, não ter sequer distribuição assegurada por aqui. Soube que já entra no Prime Video dia 27 deste mês. Vejamos se isso ajuda a fazer alguma justiça a ele.
ResponderExcluirLi seu comentário lembrando dessa fala do Matt Damon sobre esse novo contexto dos bons filmes numa era em que os estúdios já não podem mais contar com a grana da mídia física:
ResponderExcluirhttps://www.youtube.com/watch?v=gF6K2IxC9O8
Entrou no Prime conforme prometido, mas, criminosamente negligenciado, sem qualquer menção às cinco indicações ao Oscar, em categorias importantes. O "estagiário" não me ajuda a ajudá-lo.
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