Gosto de imaginar que a epifania criativa que levou Ed Brubaker a construir o roteiro de sua mais recente graphic novel veio do derradeiro volume de Kill or be Killed [Vol. 4]. Naquela ocasião, Dylan, o protagonista, estava interno em uma clínica psiquiátrica, buscando um tratamento mais efetivo frente aos “demônios” que o atormentavam. A Ellie de My Heroes Have Always Been Junkies bem que poderia estar naquele mesmo lugar, ao fundo, no refeitório, numa sessão conjunta de terapia; só que, diferente de Dylan, sua obsessão era dirigida a músicos viciados em drogas – muitos dos quais, integrantes do mórbido Clube dos 27.
No entanto, é impossível não se deixar seduzir pelos argumentos de que as drogas ajudaram aquelas pessoas a transcenderem-se artisticamente, musicalmente; e à medida que o enredo vai ganhando corpo, não entra em cena um falso moralismo, um dedo acusador, pelo contrário, há sim algo quebrado em Ellie e, embora a própria saiba disso, se diverte com isso, desafiando o senso comum. Ela está internada, contudo não para se desintoxicar ou praticar os 12 passos; a resposta para tanto só virá perto do fim, e dará à narrativa um temperinho mais familiar, ao estilo Criminal.
My Heroes deve ser lido com o Spotify [ou análogo] a tiracolo, até porque o texto exige isso. Quer dizer, não dá para ignorar as menções a álbuns, canções e os casos [verídicos] que ecoam na vida da personagem. Ela internaliza seus ídolos e a biografia deles se confunde com a dela, em especial às de Billie Holiday, Gram Parsons e John Lennon.
Logo, não há outra maneira, é preciso ouvir e sentir. Se My Heroes fosse um filme, ele seria um filme indie, com uma trilha de fundo tocando baixinho, quase que incidentalmente. Passando a limpo, eis os tais heróis de Ellie:
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Vic Chesnutt, “Stevie Smith” [faixa]
The Beach Boys, “Pet Sounds” [álbum]
The Velvet Underground & Nico [álbum]
David Bowie, “Hunky Dory” [álbum]
Billie Holiday, “Darn That Dream” [faixa]
Billie Holiday, “Strange Fruit” [faixa]
Billie Holiday, “Carnegie Hall Concert” [álbum]
The Byrds, “Hickory Wind” [faixa]
Elliott Smith, “Between The Bars” [faixa]
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De longe, a minha sequência favorita é quando Ellie, aos 12 anos de idade, convence seu tutor a se hospedarem no Joshua Tree Inn, num quarto vizinho a suíte que Gram Parsons teve uma overdose de heroína e morreu em 1973. Dois detalhes saltam aos olhos: (1) a namorada de Parsons tentou reanimá-lo, colocando cubos de gelo na bunda dele; e (2) o melhor amigo do cantor, dizendo seguir o último desejo do falecido, roubou o caixão e queimou o corpo no deserto. Essa passagem virou até filme em 2003, Parceiros até o Fim (Grand Theft Parsons):
Outra coisa: a citação a Elliott Smith me remeteu à trilha sonora de Gênio Indomável (Good Will Hunting, 1997) e isso levou a um paralelo que fez todo sentido na minha cabeça. Naquele filme, tínhamos Will, um sujeito espirituoso, que além de gênio, era genioso, de temperamento instável, e o gatilho para tanto tinha a ver com negligência e violência doméstica cometida pelo pai durante a infância dele. Volta para My Heroes. Lá atrás, eu disse que Ellie havia internalizado seus ídolos; na verdade, ela fez mais que isso. Ela heroicizou a dependência química da mãe de modo tal, que acabou substituindo o abandono afetivo[1] por uma causa maior: as drogas.
Outro detalhe importante, descobri nessa [excelente] entrevista com Ed Brubaker. A personagem Ellie tem um quê autobiográfico. Veja esse excerto:
[…] há certas experiências em sua vida que apenas se perdem na memória. Ficam mais vívidas que outras memórias do seu passado, certo? Estou numa idade em que olho para trás com carinho quando eu era muito infeliz na vida real, mas olho para trás e digo: “Aqueles eram os bons e velhos tempos…”
Minha infância foi bem estranha […] quando era criança, meus pais se divorciaram. Minha mãe se juntou ao A.A. e nos levava em todas as reuniões. Eu tenho todos esses momentos vívidos, quase táteis na memória, de estar nessas salas cheias de adultos falando sobre seu vício em drogas e alcoolismo. Todas essas coisas que eles fizeram. Acidentes de carro. Amigos que morreram. Só lembro de ouvir sobre coisas assim. Acho que por ter sido exposto a isso em tão tenra idade – ou talvez seja apenas minha própria natureza -, sempre senti empatia por esses tipos, que acabam viciados em drogas ou álcool. Eu também romantizo um pouco, já que minha mãe fazia parte daquele grupo, então eu sentia como se fosse algum tipo de tragédia familiar, ou algo do tipo.
Entre isso e essa glamorização dos viciados, claro, eu imediatamente disse: ‘Ei, drogas, vamos fazer isso!’ Eu entrei em muitas situações ruins, muitos problemas, mas sempre me recordo daqueles anos, dos meus 20 anos e de tudo aquilo passando de raspão em mim. Era jovem, estava com o ‘foda-se’ ligado, e a ficha não havia caído ainda. Só sabia que seria um artista e, sim, eu estava saindo com má companhia, cometendo pequenos delitos no caminho.
Mas isso ficou fora de controle, e eu entrei em sérios problemas e quase fui para a cadeia… então eu sempre tenho muitas lembranças daquela época. Eu acho que são algumas das memórias mais intensas da minha vida. Quando você chega perto de quase ir para a prisão, você nunca vai esquecer isso, quase como o jeito que você nunca vai esquecer a primeira vez que se apaixonou.
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Sobre o parceiro habitual de crime, Sean Phillips, a arte dele segue no crescendo de qualidade que afirmei em mais de uma vez. A curiosidade nesse trabalho em especial, contudo, fica por conta das cores: são de Jacob Phillips, filho de Sean. E não é mero nepotismo aqui, o rebento dá um verniz todo especial à jornada junkie de Ellie, com aplicações psicodélicas que sugerem uma viagem à base de narcóticos.
Acho que o pai ficou orgulhoso. Eu sei que fiquei.
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[1] Não por acaso, Mother, de John Lennon, é evocada na reta final.
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