Acredito
que, de modo geral, qualquer pessoa razoável vêm acompanhando com espanto e
preocupação genuína o número alarmante de relatos sobre suicídios. Por
natureza, trata-se de um tema dificílimo que polariza opiniões, muitas das
quais sem estofo ou, vá lá, redutoras pela mera adjetivação. Recentemente, tive
contato com uma situação dessas e testemunhei coisas absurdas sendo atribuídas
ao sobrevivente, creditando-lhe – injustamente – parte da culpa por aquele
óbito. Acertadamente, faz parte da práxis da imprensa evitar a veiculação desse
tipo peculiar de obituário, algo que, por um lado, respeita a dor das famílias
e não dá azo a glamourizações da prática; e, por outro, mascara a existência do
problema. Reitero, não é fácil.
A
cena pop, contudo, é irascível e, como já disse Humberto Gessinger, “não poupa
ninguém”. Quer dizer, esse tipo de anonimato corriqueiro dos civis sequer é
opção para famosos, a exemplo das tragédias que cercaram recentemente
as perdas de Chris Cornell (Soundgarden/Audioslave) e Autumn,
filha do diretor de BvS e Liga da Justiça, Zack Snyder. Na ficção, discussões
acaloradas têm sido feitas a respeito da série 13 Reasons Why (Netflix/2017)
sobre o triste destino de Hannah Baker, personagem polêmico que decide tirar
sua vida e elenca treze motivos que lhe levaram a isso, registrando-os em treze
lados de sete fitas cassete, de modo que cada nome ali citado as ouvisse post-mortem.
Há
quem detrate e há quem acolha a trajetória dessa suicida como alerta à
sociedade, e não apenas à localidade norte-americana. A única opinião que
carrego comigo até agora é que não há lados certos aqui.
***
Como
disse, o tema desafia até os mais sensatos e a inclinação natural de qualquer
um é mudar logo de assunto. Matar ou
Morrer (Kill or be Killed), de Ed
Brubaker e Sean Phillips, vai
nessa contramão e, guardadas suas devidas proporções, tateia a mente de um
depressivo que sobrevive a duas tentativas frustradas de suicídio. Indicada ao
Eisner Awards 2017 nas categorias Melhor Série, Roteirista e Capista[1],
a história dá voz a Dylan Cross,
universitário de vinte e oito anos que partilha um apartamento com Mason,
colega anos mais novo, que a seu contragosto namora Kira, sua melhor amiga.
Logo
no início, tal como tantas outras histórias de Brubaker, a narrativa é feita em
primeira pessoa, mas com um diferencial: o julgamento do protagonista está
nublado pela depressão e nada do que diz, deve ser tomado como verdade absoluta
para o leitor. Isto é, aquela é a verdade segundo Dylan, se ela é ou não
fatual, aí cabe à interpretação de cada um.
Fato
mesmo é que na segunda tentativa malograda de suicídio, Dylan passa a creditar
sua terceira “segunda chance” a um demônio interventor, que de bom samaritano
não tem nada e deseja sua parte: uma vida por mês. A princípio, julgando-se
delirante, dada a dor da queda que acabara de sofrer, ignora o “contrato” e à
medida que o dia de pagar o “aluguel” da própria vida vai se aproximando, ele
começa a adoecer, entrando e saindo de hospitais. Rapidamente nos questionamos
se Dylan viu o que quis ver e aquela doença era puramente seu corpo somatizando
o que a mente vinha ditando (?!). Porém, isso somos nós (os leitores), o
personagem mesmo se entrega ao desespero e faz sua primeira vítima, usando como
muleta moral um vigilantismo trôpego e hipócrita, mais puxado para o lado “Travis Bickle”
da coisa do que “Dave Lizewski”.
Era a fuga perfeita, mas não impune ou imune ao preço que mentiras e hematomas – muitos hematomas! – começaram a infligir no resto de vida pessoal que ainda tinha. Ao passo que as vinte edições avançam, mais e mais Brubaker vai lançando novas sombras sobre a jornada de Dylan, do qual, em determinado momento, faz as vezes de um “justiceiro” de rede social e isso foge completamente do controle. Em dado momento, ele se sente tão invencível que decide confrontar mafiosos russos, tecendo planos cada vez mais ousados. No nível pessoal, o texto brinca com a possibilidade de que o pai de Dylan – igualmente suicida – pode ter lidado com o mesmo demônio que, hoje, atormenta o filho.
É curioso que entre o 3º e o 4º e último arco, o quadrinho passa a exalar algumas associações com os primórdios do Homem-Aranha, com o Dylan ressoando como um worst case scenario do que Peter Parker poderia ter se tornado. A própria inquietação (e chatice) de Peter nos anos sessenta lembra a animosidade de Dylan com o (seu) mundo. Chega num ponto em que Brubaker e Phillips nem escondem mais a rima aracnídea, e chegam a dar os rostos de Stan Lee e Steve Ditko aos detetives envolvidos na caçada ao vigilante de Matar ou Morrer. A capa da derradeira edição (nº 20), inclusive, é uma óbvia homenagem a Amazing nº 50, da icônica imagem de Peter abandonando a vida de super-herói.
***
Não
só isso. O psiquiatra que cuida de Dylan, desacreditando-o da ideia fixa que
ele tinha sobre o demônio e os atos vigilantismo, é a cara e o focinho do Dr. Fredric Wertham,
autor do controverso A Sedução dos Inocentes (1954); obra que desencadeou toda
sorte de perseguições à indústria e os produtores de quadrinhos na segunda
metade do século XX.
É
engraçado que lendo agora a entrevista que dupla criativa concedeu ao site CBR para falar sobre Matar
ou Morrer como um todo, Brubaker deixa transparecer que essa abordagem
metaficcional talvez tenha surgido no curso da escrita, e não como algo
deliberado desde os argumentos iniciais: “ [...]
Sempre pretendi que terminasse do jeito que está terminando, mas não sabia
quanto tempo levaria para contar a história, e ela acabou se expandindo e
fazendo coisas diferentes do que eu tinha pensado inicialmente. Tornou-se muito
mais sobre a voz de Dylan, suas lutas e sua história do que eu esperava. Mas a
estrutura, pelo menos no início, era muito simples: um cara mascarado que tem
que sair uma vez por mês (mensalmente, entende?) e ser um vigilante. Era sobre
pegar essa estrutura que todos nós, que crescemos indo à banca toda semana, no
dia que chega quadrinhos novos, temos gravada em nossas mentes e usá-la para
fazer algo diferente e familiar ao mesmo tempo. E, claro, quanto mais você
entra na história, mais ela se torna sua própria coisa. Ou pelo menos, espero
que sim. [...] É definitivamente um estudo de personagem sobre como pode ser
uma pessoa relativamente normal que se encontra em um lugar sombrio e o que ela
estaria disposta a fazer, mesmo quando se trata de ‘Eu não quero voltar a ser
quem eu era antes, a versão segura de mim’. Mas Dylan provavelmente tem tanto
em comum com Holden Caulfield quanto com Walter White. [...] Para mim, uma grande parte de Matar ou Morrer foi sobre não
glamorizar a violência, sobre evitar esses clichês. A violência era sempre
rápida e brutal, e tinha impacto ou repercussões. Sempre causava mais problemas
”.
Já
Sean Phillips repetindo a façanha dos tempos de Hellblazer com Paul Jenkins, quando
John Constantine era uma caricatura de si, o Dylan de Matar ou Morrer vira, de
fato, um autorretrato. Se pensar direitinho, o próprio pai do protagonista,
caracterizado como um artista de peças pin-ups de pornô bizarro dos anos
1960/1970, é também um duplo de Phillips; esse, último, partilhando da mesma assinatura
hiperrealista que o consagrou: “ Como eu
desenho cada personagem evolui lentamente ao longo de um quadrinho, algumas
vezes até de forma intencional. Acho difícil manter os personagens com a mesma
aparência o tempo todo, então Dylan acaba se parecendo mais comigo no final.
Ele é desenhado propositalmente com uma aparência mais cansada e sem se
barbear. Tudo o que ele passou tem um impacto em seu rosto. [Por outro lado] Não
estou certo de que sua linguagem corporal mude muito ”.
***
No fim, Matar ou Morrer é a consagração do duo, com o que pode ser seu personagem mais controverso, para não dizer complexo. Penso que, daqui para frente, eles têm um desafio quase impossível de entregar algo melhor. O que não será surpresa alguma se entregarem. Brubaker e Phillips, indubitavelmente, têm um demônio cobrando uma dívida. Graças a Deus.
***
Links Afiliados
[1] Do qual perdeu em todas para Saga e seus criadores, Brian K. Vaughan e Fiona Staples.
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